Notícias

30/07/2019

Artigo - Lineamentos do princípio da boa-fé no processo arbitral - Por José Rogério Cruz e Tucci

A boa-fé objetiva, nos domínios do Direito Privado, consubstancia-se numa cláusula geral que pressupõe um comportamento ético das partes contratantes, as quais têm o dever de lealdade, tanto na manifestação da vontade, ao ensejo do aperfeiçoamento do negócio jurídico, quanto na interpretação das cláusulas contratuais, durante a execução do contrato e até mesmo após o cumprimento das obrigações pactuadas. Concebida como um verdadeiro princípio, a boa-fé foi contemplada, em nosso ordenamento jurídico, no artigo 422 do Código Civil, com a seguinte redação: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

A aferição da boa-fé decorre da interpretação do padrão de conduta normalmente exigível dos sujeitos e dos efeitos jurídicos que razoavelmente deveriam ser esperados pelos contratantes. A resposta a essas duas indagações estabelecerá o conteúdo objetivo do negócio jurídico, ao qual estarão vinculadas as partes.

A teoria da boa-fé objetiva encerra um formidável instrumento de hermenêutica jurídica para detectar eventual abusividade das cláusulas contratuais expressas ou para reconhecer a inaplicabilidade parcial dos efeitos do negócio jurídico, ou ainda para proceder à interpretação integrativa da declaração de vontade, sempre que seja preciso restabelecer o equilíbrio contratual.

Na mesma linha principiológica, que marca as denominadas “Normas Fundamentais do Processo Civil”, constantes do preâmbulo do Código de Processo Civil em vigor, inspirando-se, por certo, na dogmática do Direito Privado, o legislador estabeleceu, no artigo 5º, uma cláusula geral de boa-fé processual, que deverá nortear a atuação, durante as sucessivas etapas do procedimento, de todos os protagonistas do processo: o juiz, as partes, o representante do Ministério Público, o defensor público e também os auxiliares da Justiça (serventuários, peritos, intérpretes etc.).

O fundamento constitucional da boa-fé decorre da cooperação ativa dos litigantes, especialmente no contraditório, que devem participar da construção da decisão, colaborando, pois, com a prestação jurisdicional. Não há se falar, com certeza, em processo justo e équo se as partes atuam de forma abusiva, conspirando contra as garantias constitucionais do due process of law.

A jurisprudência dos nossos tribunais tem se baseado no princípio da boa-fé processual como critério válido para rechaçar a invocação maliciosa das normas processuais e o comportamento inadequado de uma parte, em detrimento do direito à efetividade da tutela jurisdicional do outro litigante.

Isso tudo encontra campo fértil no âmbito do processo arbitral, no qual, com maior razão, a atitude leal e proba das partes deve estar presente desde o requerimento de instauração da arbitragem até a decisão final a ser proferida na respectiva demanda. Não se trata, como é cediço, de transplantar pura e simplesmente a referida norma do Código de Processo Civil para a arbitragem, mas, sim, de reafirmar a interação que deve existir — quando compatível e coerente — num mesmo ordenamento jurídico, entre diferentes sistemas processuais.

Note-se que a boa-fé processual se desdobra nos deveres de veracidade, de transparência e de lealdade na realização dos atos processuais, contemplados nos artigos 77 e 142 do Código de Processo Civil de 2015. O descumprimento desses deveres caracteriza ato atentatório à dignidade da Justiça e litigância de má-fé, cujas sanções estão detalhadamente previstas nos artigos 77, 80, 81, 100, parágrafo único, 334, parágrafo 8º, 536, parágrafo 3º, e 702, parágrafos 10 e 11.

Nada obsta, à evidência, que essas regras materiais sejam aplicadas pelos árbitros no processo arbitral, visando reprimir a conduta temerária do litigante, como bem frisado por Hermes Marcelo Huck, em original ensaio intitulado As Táticas de Guerrilha na Arbitragem (publicado na coletânea 20 Anos da Lei de Arbitragem, São Paulo, Atlas, 2017, pág. 312), ao asseverar que:

“há práticas processuais de guerrilha que extrapolam os limites e podem ser consideradas litigância de má-fé. A tática primeira do guerrilheiro arbitral é fugir do processo. Tão logo notificado do requerimento de arbitragem ou se queda silente ou encaminha a petição à Câmara argumentando sobre o descabimento da arbitragem. São os brados de inarbitrabilidade objetiva ou subjetiva que primeiro são ouvidos pelas Câmaras. A lei oferece instrumentos para superar tais chicanas, porém a inafastável consequência dessas práticas — por mais infundadas que sejam — implicam o retardamento do início do processo. Não raro, a parte fugitiva, esgotadas as manobras diversionistas, acaba por surgir no dia da audiência para assinatura do termo, reiterando protestos e clamando ameaças de nulidade. Essa é apenas a tática inicial, pois outras tantas podem surgir, na sequência. Recusar-se ao pagamento das taxas administrativas e honorários de árbitro, mesmo com recursos para arcar com tais despesas, é comportamento pouco original. Essa recusa retarda o andamento do processo, além de transferir para a parte contrária o ônus financeiro da disputa. É incidente que pode desincentivar o seguimento da arbitragem ou mesmo decretar sua morte. Da mesma forma, e com certa frequência, nota-se o comportamento de guerrilha no momento da discussão do termo. O guerrilheiro faz exigências descabidas, convencido de que a parte contrária não as aceitará... Cabe também mencionar o velho estratagema de retardar o processo apresentando impugnações frívolas ao nome do árbitro indicado pela parte contrária ou ao presidente do tribunal. Casos há em que o guerrilheiro apresenta impugnação ao próprio árbitro por ele nomeado. Não raro, para postergar a formação do tribunal, a parte chicaneira submete questionários despropositados a serem respondidos pelos árbitros já indicados, e, quando não, levanta exigências solicitando revelações descabidas, que resultam em impugnações igualmente descabidas. A literatura arbitral é prolífica em tratar casos dessa estirpe que, ao final, são resolvidos — mas não raro —, implicam renúncias desnecessárias e significativo atraso no curso do processo”.

Permito-me aduzir a situação na qual a parte que perdeu ingressa com sucessivos e impertinentes pedidos de esclarecimentos, tentando “plantar” nulidade na sentença, além de baixar o nível, de forma absolutamente grosseira, em relação aos árbitros.

Expedientes dessa natureza devem ser reprimidos, com veemência, pelo tribunal arbitral, sendo de todo recomendável a imediata imposição à parte que abusa do processo desde advertência até sanção pecuniária, a evitar posteriores tentativas de procrastinação indevida do processo.

Bem é de ver que o Superior Tribunal de Justiça encontra-se atento a essa espécie de conduta, como se infere do julgamento pela Corte Especial da Sentença Estrangeira Contestada 3.709, da relatoria do saudoso ministro Teori Albino Zavascki, ao decidir que:

“a requerida ingressou no procedimento arbitral vislumbrando a possibilidade de dele auferir vantagens e assumiu, em contrapartida, de forma clara e consciente, os riscos decorrentes de eventual sentença em sentido contrário às suas pretensões, não podendo, ao não obter êxito em seu intento, alegar nulidade do compromisso arbitral, ferindo o postulado universal da boa-fé objetiva”.

Acrescente-se, por outro lado, que a legislação processual em vigor também exige comportamento ético e diáfano do órgão judicante, coibindo-o, por exemplo, de proferir “decisão-surpresa” (artigo 9º). A conduta leal do julgador em relação aos litigantes vem, outrossim, expressa na preciosa regra do parágrafo único do artigo 932, que confere prazo à parte para corrigir vício formal do processo.

Significativo precedente do Supremo Tribunal Federal bem destaca que: “O formalismo desmesurado ignora, ainda, a boa-fé processual que se exige de todos os sujeitos do processo, inclusive, e com maior razão, do Estado-Juiz” (1ª Turma, ED no ARE 674.231-RS, rel. min. Luiz Fux, v.u., j. 27/8/2013).

Os artigos 322, parágrafo 2º, e 489, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil dispõem, respectivamente, que a interpretação do pedido e da decisão judicial deve ser governada pela boa-fé.

De ressaltar-se, a propósito, que tanto o juiz quanto as partes não podem, sem motivo justificado, dar causa ao adiamento da realização de atos processuais, sob pena de responder, por força do disposto no artigo 362, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil, pelas custas de retardamento.

A experiência tem demonstrado, nesse particular, que, geralmente, os árbitros organizam e gerenciam o processo de modo muito mais profícuo do que ocorre na esfera do Poder Judiciário. Esse importante fator não apenas atende ao princípio da duração razoável do processo arbitral como também enaltece a lealdade e o diálogo que normalmente caracterizam o inter-relacionamento do tribunal arbitral e das partes.

Embora possa haver situações excepcionais, não seria arriscado afirmar que, no terreno da arbitragem, o alto nível dos advogados das partes e o reconhecido preparo dos árbitros permitem que a realização dos atos do procedimento arbitral atinja realmente o fim colimado por todos os integrantes do respectivo processo.

Vale ainda salientar que esse esperado liame cooperativo entre os protagonistas do processo arbitral, individualizado pelo comportamento ético e revestido de boa-fé, a um só tempo, minimiza o grau de tensão entre os litigantes e, sobretudo, direciona o processo, tanto quanto possível, para uma decisão rápida e justa!

Fonte: Conjur


•  Veja outras notícias