Nova lei pode fazer explodir inúmeros litígios pelo país
O Brasil tem a sua própria Lei Geral de Proteção de Dados. Sancionada em 08 de julho de 2019, a norma cria direitos e obrigações que prometem proteger a privacidade do cidadão e criar uma enorme dor de cabeça para as empresas.
No terreno fértil que a Justiça Brasileira oferece para o demandismo, a nova lei é um rastilho para um paiol de pólvora, pronto para explodir em inúmeros litígios. Por isso, é preciso pensar em alternativas modernas e inovadoras para evitar essa explosão ou, ao menos, para conter um incêndio que pode – e muito provavelmente irá – se alastrar
Não é demais lembrar que a LGPD e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) mesclam-se em química volátil e explosiva. Isso porque, entre os diplomas, há vários dispositivos em comum, alguns, inclusive, transcritos ipsis litteris de uma legislação para a outra (LGPD, art. 22 e 42), repetindo contingências velhas e revelhas, como inversão do ônus da prova, solidariedade, responsabilidade objetiva e uma generosa possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica.1
Mas não é só. A inevitabilidade de incidentes de segurança que resultam em vazamentos já se mostra um prato cheio para medidas judiciais coletivas e individuais contra empresas. Another day, another leak.
É fácil prever, portanto, face à vulnerabilidade cibernética, hoje enfrentada em larga escala, o surgimento de enorme quantidade de demandas a partir do fim da vacatio legis da LGPD.
Mas para cuidar do Paiol de Pólvora, dirão alguns, temos a recém instalada Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Será que ela será capaz de evitar a temida explosão de demandas, criando normas racionais e gerando os incentivos corretos para que inovação tecnológica e privacidade convivam harmoniosamente?
As chances, pensamos, são bem pequenas.
Lembremos das autoridades de proteção de dados da União Europeia (DPAs), bloco econômico que regula a proteção de dados e a privacidade desde 1995, por meio da Diretiva nº 95/46/EC, ou seja, há mais de vinte anos. No âmbito do Regulamento Geral de Proteção de Dados de 2015 (GDPR), ainda hoje as DPAs carecem de orçamento e capacidade técnica para cumprir sua função fiscalizatória e de promoção do enforcement da proteção de dados.2
Será que no Brasil o cenário seria mais promissor? Pouco provável. Nosso país não possui qualquer cultura ou tradição de proteção de dados.
A nova legislação, inspirada no GDPR europeu, carece de maturidade técnica, jurisprudencial e doutrinária e não parece capaz de atender satisfatoriamente às demandas de violação à legislação de dados.
É bom lembrar também que a ANPD, diferentemente da ANP, ANEEL, ANATEL e demais agências setoriais, será responsável por fiscalizar todos os mercados e atividades. Dito de outra forma, a ANPD fiscalizará desde a padaria da esquina até as grandes empresas de tecnologia. De cada um desses cantos, risca-se um rastilho de pólvora para o paiol do Poder Judiciário. Será que a ANPD será capaz de racionalizar as demandas e evitar o pior? Parece-nos que a resposta é um retumbante “não”. A conta, naturalmente, sobrará para a sociedade.
E não para por aí. No Brasil, somos “viciados” em Poder Judiciário. O atual sistema de gratuidade da justiça escancara a porta para demandas frívolas. Os números já são conhecidos: existem quase cem milhões de ações judiciais em curso e os gastos com a justiça já atingem o patamar de 2% do PIB. Novamente, aqui nos parece óbvio que o Poder Judiciário não terá condições de lidar adequadamente com demandas judicias capituladas na LGPD e a já noticiada “tragédia da justiça”3 será agravada.
A obrigatoriedade de conciliação prévia e obrigatória, sugerida na Emenda nº 168, poderia ter sido uma saída. A alteração propunha, no §6° do artigo 55-J, que a tentativa de resolução amigável prévia seria condição à instauração de procedimento perante a ANPD e ajuizamento de ações. Em linhas simples, os titulares precisariam comprovar, primeiro, que tentaram – e não obtiveram êxito – resolver o problema junto ao responsável pelo tratamento dos dados. Infelizmente, a exigência não sobreviveu à tramitação no Congresso Nacional: a redação definitiva da Lei tratou a conciliação prévia como possibilidade, e não como dever da parte, sem trazer consequências jurídicas àquele que optar de forma imediata pelo contencioso judicial4.
Mas ainda há luz no final do túnel. Tentativa semelhante, porém, de abrangência mais ampla, é o bem-sucedido portal de conciliação Consumidor.gov. A plataforma consiste em iniciativa alinhada com a tendência da resolução onlinede disputas e seu avanço deve-se em grande parte à Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor e a alguns membros do Poder Judiciário. Alguns juízes vêm determinando a suspensão de ações judiciais envolvendo relações de consumo para que o demandante busque solucionar previamente sua pretensão pela plataforma Consumidor.gov. Caso não se comprove o registro da reclamação na plataforma, a demanda é extinta por falta de interesse de agir na modalidade “necessidade”, ou então a petição inicial é indeferida.5
Os sistemas online de resolução de disputas são comprovadamente eficientes.
No Brasil e no mundo, proliferam as tecnologias a respeito, trazendo inúmeros benefícios para pessoas físicas e jurídicas ao criarem um canal privado para a resolução de demandas. Em rápida consulta no sítio eletrônico da Associação Brasileira de Lawtechs & Legaltechs (AB2L), verifica-se que há mais de dezessete empresas brasileiras oferecendo serviços de ODR.6 Somente uma dessas empresas, a lawtech Sem Processo, transacionou R$ 1 bilhão em acordos dentro de sua plataforma.7
Quando se fala em ODR in company aqui no Brasil, temos o extremamente bem-sucedido caso do Mercado Livre, que já alcançou 98,9% de desjudicialização através de técnicas de promoção das melhores experiências para seus consumidores e usuários. Em linhas simples, o marketplace criou uma ferramenta chamada “Compra Garantida”, na qual o usuário, caso atendidos os requisitos pelo comprador e respeitado o prazo da reclamação, recebe seu dinheiro de volta. Na hipótese de o método não resolver a questão, a plataforma disponibiliza um chat para comprador e vendedor tentarem uma composição, podendo contar ou não com a ajuda de um terceiro, o mediador, que pode vir a participar do processo.8
A nosso ver, a mesma postura do Poder Judiciário em relação ao Consumidor.gov tem de ser adotada em relação à demais plataformas de ODR, sejam elas terceirizadas ou endógenas à empresa de onde originou-se o litígio, como o caso do Mercado Livre.
Imagine o leitor, por exemplo, o tamanho do benefício para a sociedade que decorreria da criação de um sistema de ODR dentro do INSS, por onde passariam obrigatoriamente todos os litígios previdenciários antes de alcançarem o Poder Judiciário. Segurados receberiam seus direitos muito mais rapidamente. A sociedade economizaria milhões de reais livrando-se de boa parte dos processos judiciais. Por fim, aqueles poucos casos que não alcançassem composição, adentrariam o sistema judicial com documentação probatória muito mais robusta. Mas, para funcionar, a tentativa de solução prévia via ODR teria de ser obrigatória.
Do ponto de vista prático, nossa proposta é que, para configurar-se o interesse de agir, a parte comprove, através de um protocolo eletrônico, formulário online ou qualquer outro documento, que buscou alguma forma disponível de conciliação prévia.
A modernização tecnológica tem um preço, isso é evidente. Toda inovação técnica gera tensão e novos conflitos. Com a velocidade da digitalização da vida em sociedade, pretender resolver todas estas novas disputas com o tripé papel-tinta-carimbo9 nos empoeirados balcões e abarrotados cartórios do Poder Judiciário parece-nos completo desatino. É hora de abraçar a inovação em todas as suas formas, inclusive quando o assunto é resolução de disputas.
Ao menos uma vez por semana tem-se ciência de um vazamento de dados de grandes proporções. Nenhum CEO, de nenhuma empresa, deleita-se em prazeres quando depara-se com um vazamento. Para além de prejudicar a reputação da companhia, dados valem dinheiro e ninguém gosta de jogá-lo pela janela. Ocorre que a guerra cibernética é bruta e dinâmica. Ataques hackers geram a evolução de sistemas de proteção que, por sua vez, estimulam a sua sofisticação e assim por diante.
Daí porque a tese do reforço do interesse de agir, pela demonstração de tentativa prévia de conciliação, pode varrer parte dos milhões de rastilhos que conduzem ao paiol de pólvora chamado Poder Judiciário, prestes a explodir com a química volátil da LGPD e das demais normas de proteção ao consumidor e de acesso ao Poder Judiciário.
Como diria Vinícius de Morais, estamos trancados no paiol de pólvora. Paralisados no paiol de pólvora.
É preciso que se faça algo, e rápido. Do contrário: vai pelos ares o paiol de pólvora, levando junto a riqueza gerada pela inovação, o orçamento público investido no Poder Judiciário e até mesmo o acesso à justiça.
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1 BECKER, Daniel; ALBERNAZ, Carolina; BRÍGIDO, João Pedro. LGPD e reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão de serviços públicos. JOTA. Disponível: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/lgpd-e-reequilibrio-economico-financeiro-dos-contratos-de-concessao-de-servicos-publicos-07072019 – Acesso em 12 de jul. 2019.
2 GOLLA, Sebastian. Is Data Protection Law Growing Teeth? The Current Lack of Sanctions in Data Protection Law and Administrative Fines under the GDPR. Journal of Intellectual Property, Information Technology and E-Commerce Law. Disponível em: https://www.jipitec.eu/issues/jipitec-8-1-2017/4533 – Acesso em 12 de jul. 2019.
3 WOLKART, Erik Navarro. Análise Econômica do Processo Civil: como a Economia, o Direito e a Psicologia podem vencer a tragédia da justiça. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2019.
4 LGPD, art. 52, §7º: Os vazamentos individuais ou os acessos não autorizados de que trata o caput do art. 46 desta Lei poderão ser objeto de conciliação direta entre controlador e titular e, caso não haja acordo, o controlador estará sujeito à aplicação das penalidades de que trata este artigo.Destaques nossos.
5 BECKER, Daniel; LEAL, Ana Luisa. Medo e delírio no Consumidor.gov. Disponível em: 12 de jul. 2019. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/medo-e-delirio-no-consumidor-gov-03042019 – Acesso em 28 de jun. 2019.
6 AB2L. Radar de Lawtechs e Legaltechs. Associação Brasileira de Lawtechs & Legaltechs. Disponível em: https://www.ab2l.org.br/radar-lawtechs/ – Acesso em 28 de jun. 2019.
7 LOURENÇO, Enio. Lawtechs podem acelerar a Justiça e transformar a carreiras dos advogados. Disponível em: https://www.startse.com/noticia/nova-economia/63709/lawtechs-startup-juridico-2 – Acesso em 28 de jun. 2019.
8 FREITAS, Tainá. Como o Mercado Livre atingiu 98,9% de “desjudicialização” na resolução de conflitos. Starse. Disponível em: https://www.startse.com/noticia/nova-economia/64894/mercado-livre-odr-resolucao-conflito – Acesso em 28 de jun. 2019.
9 CARVALHO, Ivan Lira. A internet e o acesso à justiça. Revista de Processo, vol. 100, outubro-dezembro de 2000.
DANIEL BECKER – Sócio do Lima ≡ Feigelson Advogados, Pós-graduando em Direito Público pela FGV Direito Rio, Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Diretor de Novas Tecnologias do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), Membro da Silicon Valley Arbitration and Mediation Center (SVAMC) e Co-fundador do portal LEX MACHINÆ.
EDUARDO BRUZZI – Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Visiting Scholar pelo Institute for Law & Finance da Universidade de Frankfurt. Especialista em Direito Societário e Mercado de Capitais pela FGV Direito Rio. Membro da Comissão de Direito Público da OAB/RJ.
ERIK NAVARRO WOLKART – Presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia. Juiz Federal, Doutor em Direito (UERJ/HARVARD LAW SCHOOL). Diretor da The Future Society (Brazilian Chapter, powered by Harvard Kennedy School). Coordenador Pedagógico do Instituto New Law e do Curso Ênfase.
Fonte: Jota Info