Eis aqui um dado concreto para preocupar os militares obcecados com soberania nacional, que só têm olhos para buscar fantasmas entreguistas atrás de cada ONG: 1,4 milhão de quilômetros quadrados (km2) do Brasil são terra de ninguém.
Isso perfaz 17% do território de Pindorama, uma área superior à do Peru. O Estado brasileiro não tem controle algum sobre tal vastidão, porque nenhum de seus bancos de dados fornece registro sobre seu status de propriedade.
Nem à União elas pertencem, oficialmente. Não espanta que o país —em particular a Amazônia— tenha se tornado um paraíso para os grileiros, gente que aposta na confusão fundiária com o mesmo entusiasmo com que outros (se não os mesmos) espalham desinformação nas redes.
O instantâneo chocante da insegurança fundiária no país aparece em novo mapa elaborado para integrar o Atlas da Agropecuária Brasileira. Quatro universidades brasileiras (USP, Unicamp, UFPA e UFMG), um instituto federal (IFSP), dois suecos (KTH e SEI) e duas ONGs de pesquisa nacionais (Imaflora e Ipam) o apresentam em artigo no periódico Land Use Policy.
Sim, ONGs de pesquisa, e da melhor qualidade. Especialistas que se esmeram, em colaboração com a academia dentro e fora do país, para gerar informação que o governo deveria estar produzindo, se de fato estivesse preocupado em resolver o caos fundiário e não em manter apoio da banda podre do agronegócio.
Desta vez eles atualizaram as informações do Atlas compilando e comparando os registros de 17 bancos de dados oficiais, do Exército ao Incra, com os reunidos no Cadastro Ambiental Rural (CAR) instituído pelo Código Florestal reformado em 2012. Ao fazê-lo, revelaram um estado de completa confusão.
Não é só a ausência de designação de proprietários para 1/6 do país. Há uma ocorrência absurda de sobreposição entre áreas registradas nas várias categorias consideradas (fazendas, unidades de conservação, terras indígenas, áreas públicas etc.): 3,5 milhões de km2, o equivalente a mais de 40% da área do país.
Note que isso não significa que 2/5 do Brasil têm propriedade duvidosa e se encontram sujeitos a disputas e conflitos agrários. Um mesmo polígono pode estar registrado sob mais de duas categorias fundiárias.
Por exemplo, uma área pode aparecer no CAR com mais de um proprietário a reivindicá-la e, noutras bases de dados, como parque nacional, terra indígena etc.
Dá bem uma ideia, entretanto, do descontrole que comanda a posse da terra no Brasil, em particular no norte do país. Enquanto isso, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (Novo), só pensa em torpedear o Fundo Amazônia e açambarcar a sucata.
Oficiais do governo Bolsonaro prezam por afirmar que já se deu terra demais para indígenas, que eles são os verdadeiros latifundiários e assim por diante. É mentira.
As terras indígenas ocupam 13% do território nacional e abrigam mais de meio milhão de pessoas. Os verdadeiros latifundiários são, bem... os latifundiários: 97 mil grandes proprietários controlam 21,5% das terras do país.
Militares que gostam de dar murros na mesa e de mandar europeus procurarem suas turmas ficarão desconfiados com a presença de suecos entre os coautores do estudo. Eles não conseguem conceber que estrangeiros queiram contribuir genuinamente com a ordem e o progresso, ambiental e fundiário, do Brasil.
Enquanto isso, o inimigo interno —grileiros e madeireiros ilegais, pecuaristas que lavam dinheiro com bois, garimpeiros que usurpam índios e pistoleiros que matam agricultores por dá cá aquela palha— deita e rola aproveitando o descaso do Estado com seu próprio território.
Marcelo Leite
Jornalista especializado em ciência e ambiente, autor de “Ciência - Use com Cuidado”.
Fonte: Folha de São Paulo