Em 30 de abril, foi editada a MP 881, ora em tramitação no Congresso Nacional, pretendendo regular o que se denominou de "liberdade econômica". Vários estudos vieram a lume, inclusive neste site. Atenho-me à análise de suas inconstitucionalidades formais e materiais, em relação às normas do Código Civil, que foram por elas alteradas ou acrescentadas.
Sobre inconstitucionalidade formal:
O parágrafo 1º, I, b, do artigo 62 da Constituição Federal não inclui explicitamente, entre as vedações de edição de medida provisória, matéria relativa a Direito Civil. Porém, decorre do sistema constitucional nela adotado, pois:
Sobre inconstitucionalidade material em geral:
A livre-iniciativa, na Constituição de 1988, configura um dos fundamentos ou uma das premissas do modelo de economia de mercado regulado, mantido e estruturado pelo poder constituinte. Não é norma constitucional. Não é princípio jurídico-constitucional fundamental, como o considera a MP 881. O princípio jurídico fundamental é o dos “valores sociais da livre-iniciativa”, prescrito no inciso IV do artigo 1º da Constituição. Se a livre-iniciativa fosse princípio jurídico fundamental, então nenhuma lei que regulasse determinada atividade econômica poderia ser considerada constitucional.
Essa precisa distinção entre o que é fundamento ou diretriz e o princípio fundamental encontra-se no voto condutor da ADI 319-4, proferido pelo relator ministro Moreira Alves, cujo julgamento ocorreu em 3/3/1993. Decidiu-se pela constitucionalidade da Lei 8.039/1990, que dispunha sobre critérios de reajuste de mensalidades escolares. Do acórdão, publicado no DJ de 30/4/1993, extrai-se o seguinte enunciado:
“Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e serviços, abusivo que é o poder econômico que visa a ao aumento arbitrário dos lucros”.
O voto condutor do relator esclarece a distinção, ao dizer que, ao contrário da Constituição anterior, a Constituição atual passou a ter a livre-iniciativa “como um dos dois fundamentos dessa mesma ordem econômica”, dando “maior ênfase às suas limitação em favor da justiça social”, instituindo como princípio fundamental “não a livre-iniciativa da economia liberal clássica, mas os valores sociais da livre-iniciativa”.
Sobre inconstitucionalidades materiais específicas:
A alusão constante na MP 881 à intervenção mínima e excepcional do Estado, “por qualquer dos seus Poderes” (exemplo, parágrafo único acrescentado ao artigo 421 do Código Civil) tem por alvo, não explicitado, o Poder Judiciário, pois é este o competente pela interpretação e aplicação das normas jurídicas incidentes nas relação econômica privadas. Não cabe ao Poder Executivo ou ao Poder legislativo tal mister.
Note-se que o caput do artigo 3º da MP 881 indica como fundamento da “declaração” o parágrafo único do artigo 170 da Constituição, excluindo propositadamente o caput deste artigo, pois com este ela é incompatível, dado a que desconsidera seus explícitos princípios jurídicos, incluindo os da função social da propriedade, da livre concorrência, da defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente e da redução das desigualdades. O parágrafo único do artigo 170 não pode ser lido e interpretado com ignorância do que disposto no caput, como se este não existisse e no qual a livre iniciativa comparece como um dos fundamentos da ordem econômica, mas que deve observar os ditames da justiça social e os princípios que enuncia. O parágrafo único do artigo 170 integra o todo deste, e tem por finalidade esclarecer que o exercício da atividade econômica, salvo os casos previstos em lei, não depende de autorização de órgãos públicos, como ocorria com o Estado absolutista, na primeira fase do Estado moderno.
Ainda no seu propósito de cercear a independência do Poder Judiciário na interpretação dos contratos, a MP 881 acrescentou o parágrafo único ao artigo 421 do Código Civil, que, além de estabelecer “a intervenção mínima do Estado”, limita de modo desarrazoado seu poder de revisão desses negócios jurídicos, quando contrariarem os princípios e outras normas de nosso sistema jurídico. A afirmação de que a revisão contratual é excepcional é abundante, pois é mínimo o número de demandas judiciais com esse desiderato e menor ainda o número de decisões que a acolhe. A aparência do óbvio mascara o intento de cercear a atuação do Poder Judiciário na revisão contratual, que já é excepcional. É norma vazia de conteúdo, pois o propósito do legislador esbarra na autonomia constitucional do Poder Judiciário, que não pode ser restringida por norma infraconstitucional. A aplicação de qualquer princípio jurídico, inclusive os instituídos pela MP 881, é exigente de intervenção do Estado-Juiz, para demarcação de seu conteúdo ao caso concreto.
Paulo Lôbo é advogado, doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), professor emérito da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e ex-conselheiro do CNJ.
Fonte: Conjur