Brasil é o quarto país do mundo em uniões desse tipo; segundo especialistas, pobreza e falta de oportunidades estão na raiz do problema
Alice vivia com a mãe e oito irmãos no interior do Nordeste. O pai abandonou a família. Passavam dificuldades, mas ela ainda ia à escola. Quando começou a se interessar por rapazes, foi expulsa de casa e terminou morando com a avó, que não falava com ela. Então, um vizinho se aproximou, namoraram e passaram a viver juntos. Ela tinha 15 anos. Ele, 56.
— Nunca vi gente boa como ele. Não me maltrata e não deixa ninguém em casa passar fome — diz ela, aos 17 anos, fora da escola e com um bebê de dois meses. — Quando eu era menor, dizia que queria ter 30 filhos, agora que tenho, queria que fosse só esse. Mas ele já disse que quer uma menina.
A história de Alice reverbera as estatísticas. O Brasil é o quarto país do mundo em números absolutos de casamento infantil, segundo estudo da ONG Plan International e do Instituto Promundo, a partir de dados do IBGE e do Ministério da Saúde. Com 2,9 milhões de uniões, só fica atrás de Índia, Bangladesh e Nigéria.
No mês passado, o país deu um passo para reverter esse quadro: foi aprovada a lei que proíbe o casamento infantil. Segundo o texto, a união de quem não atingiu ainda 16 anos de idade está proibida em qualquer circunstância. Até então, uma lei anterior permitia o casamento de menores de forma excepcional “para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez”.
— Isso trata de estupro de vulnerável (sexo com menores de 14 anos). Para o homem não ser preso por estupro, se fosse realizado o casamento, era como se o crime nunca tivesse acontecido — diz a advogada Paola Stroschoen Pinent.
De acordo com o estudo, a maior parte dos casos de casamento infantil no Brasil é informal, consensual e ocorre sobretudo na região Sudeste, entre meninas na faixa de 15 anos e homens em média 9 anos mais velhos.
Especialistas apontam motivos diversos para essas uniões como violência doméstica, violência urbana, controle da sexualidade, privação da liberdade, gravidez indesejada ou miséria e fome. E, no final, o fato de as meninas não serem casadas à força pela família dá a falsa ideia de que é uma opção.
— Tem gente que diz: “Elas escolheram se casar”. E eu pergunto: Mas escolheram casar entre quais opções? Quais escolhas elas tinham? — questiona Viviana Santiago, gerente de gênero da ONG Plan International.
'Legislação antiquada'
Para a advogada Paola Pinent, mesmo a proibição do casamento antes dos 16 anos é questionável. A legislação brasileira, lembra ela, diz que o indivíduo só tem capacidade civil aos 18 anos.
— Por que essa permissão para o casamento aos 16 anos? Isso é uma legislação antiquada, oriunda do direito canônico, em que se entendia que 16 anos era a maturidade biológica da menina. É desatualizada, não avalia aspectos emocionais — diz Pinent, lembrando que a Organização das Nações Unidas (ONU) considera casamento infantil toda união com menor de 18 anos.
Ainda assim muitos homens parecem não assimilar o mal que podem fazer a essas garotas. Em entrevista para um estudo da Plan Internacional, segundo Viviana, eles diziam que estavam casando para cuidar ou protegê-las.
_ Eles não querem entender que são meninas e não miniaturas de mulheres, cujo corpo está aqui para servir. Dizem ‘não quero que ela trabalhe’, mas ela passa 12 horas fazendo trabalho não remunerado em casa, limpando, cozinhando, arrumando e cuidando não só de filhos, mas de sogras e avós. Como assim está ‘cuidando’ se faz sexo com uma menina de 13 anos e isso é estupro de vulnerável ou está ‘protegendo’ se ela pode engravidar e ter complicações?
Hoje com 29 anos, Daniela dos Santos Alves, de Guarulhos (SP), casou-se aos 16, depois de engravidar de um rapaz de 20. À época, estudava e sonhava ser dançarina.
— Parei de estudar, ele tinha ciúmes, ligava toda hora para perguntar onde eu estava — conta ela, que, mais tarde, voltou a trabalhar, retomou os estudos e terminou o casamento. — Larguei muita coisa por um casamento abusivo, não podia sair, não podia estudar. Como mãe de menina, jamais vou aceitar que ela case com 16 anos, que pare de estudar. Se eu pudesse voltar atrás, eu voltaria. O casamento não é isso tudo. Tem o tempo certo para cada coisa.
A evasão escolar é de fato apontada como uma das consequências mais nefastas do casamento infantil, segundo a gerente da Plan International.
— A gente costuma dizer que, se a pobreza foi o principal motivo, a união vai fazendo a garota cada vez mais pobre, pois ela não desenvolve seus potenciais. Deixa a escola, perde oportunidades — diz Santiago, que também relaciona o casamento infantil ao feminicídio.
Para ela, longe de seu círculo familiar e ainda muito jovem, a garota acaba mais exposta a uma relação desigual de poder.
E parte da sociedade ainda pode pensar que "pelo menos ela não está mais passando fome" ou "pelo menos não será estuprada pelos criminosos do bairro".
— É preciso que essas meninas tenham outras opções. Só acham que o casamento é solução porque não conseguem ver que têm direito a muito mais. É a prática social do “pelo menos”. Mas todas as pessoas deveriam ter o direito a viver a vida “pelo mais” — defende Santiago.
Fonte: O Globo