APELAÇÃO CÍVEL - REEXAME NECESSÁRIO - AÇÃO DE REVISÃO DE CLÁUSULA C/C DECLARATÓRIA DE ANULAÇÃO E/OU MODIFICAÇÃO DE CLÁUSULA EM ESCRITURA - DOAÇÃO DE IMÓVEL PELO MUNICÍPIO DE MONTES CLAROS - CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE - PRETENSA REVOGAÇÃO - LEI ORGÂNICA MUNICIPAL VIGENTE À ÉPOCA DA DOAÇÃO - EXPRESSA PREVISÃO DE SE TRATAR DE BEM DE FAMÍLIA DE GERAÇÃO PARA GERAÇÃO - LEI QUE FOI POSTERIORMENTE ALTERADA, COM PREVISÃO DE POSSIBILIDADE DE VENDA EM CINCO ANOS - RETROATIVIDADE - IMPOSSIBILIDADE - TEMPUS REGIT ACTUM - ARTIGO 1.676 DO CÓDIGO CIVIL/1916, VIGENTE À ÉPOCA - POSSIBILIDADE DE TEMPERAMENTO - POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - SITUAÇÃO EXCEPCIONAL NÃO COMPROVADA - SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA - REFORMA
- A jurisprudência pátria, inclusive a do Superior Tribunal de Justiça, vem flexibilizando o rigor da lei nas hipóteses em que a manutenção dos gravames decorrentes da doação se torna óbice à função social da propriedade, como disposto no art. 1.676 do Código Civil/1916 (vigente à época), permitindo o levantamento, mediante autorização judicial, das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade; no entanto, isso é permitido apenas em situações excepcionais, o que não restou comprovado pelo autor, existindo, por sua vez, expressa previsão na Lei Orgânica Municipal de que o bem se configura como bem de família de geração para geração, não podendo a alteração legislativa posterior retroagir para beneficiar o autor, mormente tendo em conta o brocardo tempus regit actum.
- No reexame necessário, reformada a sentença, prejudicado o apelo voluntário.
Apelação Cível/Remessa Necessária nº 1.0433.14.031820-8/001 - Comarca de Montes Claros - Remetente: Juiz de Direito da 2ª Vara Empresarial e de Fazenda Pública da Comarca de Montes Claros - Apelante: Município de Montes Claros - Apelado: Camilo Pereira dos Santos - Relator: Des. Judimar Biber
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em reexame necessário, reformar a sentença, prejudicado o apelo voluntário.
Belo Horizonte, 25 de outubro de 2018. - Judimar Biber - Relator.
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
DES. JUDIMAR BIBER - Trata-se de recurso de apelação cível aviado contra a sentença de f. 53/56, que julgou procedente o pedido inicial, para rever e anular a cláusula especial de inalienabilidade constante na Escritura Pública de doação juntada à f. 09, como também autorizar a venda do imóvel objeto da doação noticiada na inicial, mediante expedição de alvará judicial. Condenado o requerido ao pagamento de honorários advocatícios, estes arbitrados em 20% (vinte por cento) sobre o valor atualizado da causa. Custas, isentas.
Em suas razões recursais, aduz o apelante que constitui uma premissa clássica da aplicação das leis que o tempus regit actum, de modo que não há que se falar, no caso, de lei superveniente a um ato jurídico já perfeito, de modo que, no caso dos autos, à doação em questão, efetuada sob a égide da lei antiga, aplica-se esta, ou seja, não poderá o terreno mudar de proprietário, devendo permanecer com o apelado, como bem de família, de geração em geração, nos termos da lei orgânica municipal, não fosse por não terem restado demonstrados os fatos constitutivos do direito do autor, nos termos do art. 373 do Código de Processo Civil, pedindo, com tais considerações, a improcedência do pedido inicial e a inversão dos ônus sucumbenciais. Alternativamente, requer a redução do valor arbitrado a título de honorários advocatícios, dizendo-o exorbitante.
O recurso foi devidamente contra-arrazoado.
Desnecessária a intervenção da douta Procuradoria de Justiça.
É o relatório.
Passo ao voto.
Em primeiro lugar, o feito está submetido ao reexame necessário, tal como antevisto no art. 496, I, do novo Código de Processo Civil.
Por sua vez, presentes os requisitos legais, conheço do apelo voluntário.
No tocante ao tema central, cuida-se de ação de revisão de cláusula, c/c declaratória de anulação e/ou modificação de cláusula em escritura, em desfavor do Município de Montes Claros, alegando o autor que, em 4/4/2000, recebeu a doação de um lote de terreno de nº 03, quadra 04, com área de 150,00m², localizado na Rua C, do loteamento popular "Ciro dos Anjos", Bairro Maracanã, na aludida cidade, tendo construído uma casa no referido lote, onde residiu com sua família, e que, com o passar do tempo, e por diversas circunstâncias, ficou morando sozinho, e, por se tratar de bairro muito perigoso, decidiu vender seu imóvel para mudar de residência; no entanto, o contrato respectivo estabeleceu cláusula que impedia a venda do terreno, pedindo ao Judiciário que declare a nulidade do referido encargo.
Pois bem.
Na doutrina de Rodrigo da Cunha Pereira, a cláusula de inalienabilidade:
``É a manifestação unilateral de vontade do doador ou testador, por meio da qual limita o exercício do direito de propriedade conferido ao donatário, herdeiro ou legatário. Ao beneficiário é permitido usar, gozar e reivindicar o bem, faltando-lhe o direito de dispor do bem recebido. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade (art. 1.911, CCB). Ou seja, além de não ter a liberdade para dispor do bem, aquele que tem seu domínio não pode doar, permutar, dar em pagamento, oferecer como garantia real, hipoteca ou penhorar o bem recebido com tal cláusula'' (Dicionário de direito de família e sucessões: ilustrado. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 156).
O aludido doutrinador ensina ainda que, se a inalienabilidade não se referir a pessoa certa, diz-se que se trata de inalienabilidade absoluta. Por outro lado, havendo a possibilidade de alienação do bem a pessoas determinadas, tratar-se-á de inalienabilidade relativa.
Na espécie, conforme consta da Escritura Pública de Doação de f. 09, o Município de Montes Claros, em 25 de abril de 2000, doou para Camilo Pereira Santos um lote de terreno de 150m², de matrícula nº 23.135, constando da referida escritura que o imóvel objeto desta escritura não poderá ser vendido ou trocado, devendo o mesmo ser transformado em bem de família de geração para geração, conforme o art. 108 da Lei Orgânica do Município de Montes Claros.
O referido art. 108 da Lei Orgânica Municipal foi reformado pela Emenda 25/2000, passando a ter a seguinte redação:
``Art. 108. Os imóveis doados pelo Município às pessoas carentes somente poderão ser alienados depois de decorrido o prazo mínimo de 05 (cinco) anos contados da efetiva ocupação pelo respectivo donatário ou sua família.
Parágrafo único. A comprovação de ocupação prevista no caput deste artigo será mediante documento próprio expedido pelo setor competente da Secretaria Municipal de Planejamento''.
Entretanto, em sua redação original, o art. 108 não previa autorização para a alienação do bem, tanto é que o imóvel do autor encontra-se gravado no registro imobiliário com cláusula de inalienabilidade.
Cediço que a lei não pode retroagir para atingir situações pretéritas, de modo que a doação feita ao autor submete-se à legislação vigente à época dos fatos, sendo, por isso, irrelevante a reforma do art. 108 da Lei Orgânica Municipal.
Ademais, estava vigente, à época da doação, o art. 1.676 do Código Civil/1915, que assim dispunha:
``Art. 1.676. A cláusula de inalienabilidade temporária, ou vitalícia, imposta aos bens pelos testadores ou doadores, não poderá, em caso algum, salvo os de expropriação por necessidade ou utilidade pública, e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aos respectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais de qualquer espécie, sob pena de nulidade''.
No Código Civil atual, somente diante das hipóteses previstas no art. 1.911, parágrafo único, é possível o afastamento da cláusula de inalienabilidade, senão vejamos:
``Art. 1.911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade.
Parágrafo único. No caso de desapropriação de bens clausulados, ou de sua alienação, por conveniência econômica do donatário ou do herdeiro, mediante autorização judicial, o produto da venda converter-se-á em outros bens, sobre os quais incidirão as restrições apostas aos primeiros''.
A jurisprudência pátria, inclusive a do Superior Tribunal, vem flexibilizando o rigor da lei nas hipóteses como a dos autos, em que a manutenção dos gravames em questão se torne um óbice à função social da propriedade, no entanto, o levantamento mediante autorização judicial das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade é permitido apenas em situações excepcionais, o que não restou demonstrado pelo autor.
Em outras palavras, a desconstituição das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade tem sido admitida em hipóteses excepcionais pela jurisprudência, quando se verificar que a medida será a mais favorável ao donatário ou ao herdeiro que recebeu o bem, desde que comprove que a manutenção do bem se tornou impossível e a alienação será a única solução, ou seja, ainda que a aludida cláusula não possa ser considerada absoluta, cabia ao autor/donatário demonstrar justa causa para a revogação da mesma, do que não se desincumbiu no caso dos autos.
Com efeito, dando-se por satisfeito com as provas produzidas (f. 51), o autor se conformou com aquelas constantes da inicial, que não demonstram que o bairro em que se localiza o imóvel doado tenha violência fora do comum em relação aos demais bairros da cidade, não fosse por também não haver demonstrado se, em 2000, quando foi beneficiado pela doação, o bairro não padecia do aludido problema.
Da mesma forma, o autor não comprova ameaças ou conflitos com pessoas do bairro, inexistindo boletim de ocorrência policial nesse sentido.
E, apesar de aposentado, tem o apelado condições de arcar com aluguel de R$450,00 (f. 17/20), mesmo tendo imóvel doado para morar, não demonstrando condição financeira que não lhe possibilita arcar com os custos de manutenção do imóvel.
Por fim, e não menos relevante, o fato de, em outros casos, ter sido autorizada a venda pela administração, não socorre o apelante, seja porque não demonstrou que os beneficiados em questão estavam em condições iguais às dele, tendo a Administração aduzido tratar-se de caso isolado, seja porque, neste tribunal, o único precedente que encontrei sobre idêntico tema é desfavorável à pretensão do autor, senão vejamos:
``Apelação. Ação de revogação de cláusula especial de inalienabilidade. Doação de imóvel por município. Cancelamento de cláusulas. Situação excepcional não comprovada. Improcedência do pedido. Sentença mantida. - As cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade que gravam o imóvel doado foram atribuídas pelo doador por sua liberalidade e não podem ser canceladas aleatoriamente, carecendo de comprovação de situação excepcional, que demonstre a insustentabilidade do gravame. A despeito de a doutrina e a jurisprudência flexibilizarem o rigor da lei nas hipóteses em que a manutenção dos gravames em questão se torne um óbice à função social da propriedade, o levantamento mediante autorização judicial das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade é permitido apenas em situações excepcionais, o que não restou demonstrado no caso em tela'' (TJMG - Apelação Cível nº 1.0433.15.015800-7/001, Rel.ª Des.ª Ângela de Lourdes Rodrigues, 8ª Câmara Cível, j. em 10/8/2017, p. em 31/8/2017).
Logo, tendo em conta o brocardo tempus regit actum e a ausência de prova de excepcionalidade a ensejar o direito invocado pelo autor, a improcedência do pedido inicial é medida de rigor, estando correta a ação administrativa em possibilitar a venda dos imóveis doados a partir da alteração legislativa ocorrida, através da Emenda 25, de 19/9/2000, sendo irrelevante que o autor satisfaça os requisitos nesta previstos, pois não cabe a retroação da lei, como já esposado.
Por tudo o que se extrai dos elementos de convicção reunidos nos autos, o requerente não satisfaz os requisitos para a aplicação da regra de exceção que permite a desconstituição da cláusula de inalienabilidade, devendo ser reformada a sentença de primeiro grau.
Diante do exposto, e sem a necessidade de maiores delongas, no reexame necessário, reformo a sentença, prejudicado o apelo voluntário, para julgar improcedente o pedido inicial.
Com a reforma da sentença, inverto os ônus sucumbenciais, impondo integralmente ao autor o pagamento das custas processuais, incluídas as recursais, bem como dos honorários advocatícios, estes que arbitro em 10% (dez por cento) do valor atualizado da causa, tendo em conta os ditames dispostos no art. 85, § § 2º e 3º, do Código de Processo Civil/2015, ficando ressalvadas as condições da assistência judiciária gratuita a ele deferida.
Votaram de acordo com o Relator o Desembargador Jair Varão e o Juiz de Direito Convocado Adriano de Mesquita Carneiro.
Súmula - NO REEXAME NECESSÁRIO, REFORMARAM A SENTENÇA, PREJUDICADO O APELO VOLUNTÁRIO.
Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico