Este breve escrito sobre o condomínio de lotes, dividido em duas partes, decorre de honroso convite da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, coordenada pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão, Antônio Carlos Ferreira e Humberto Martins e pelos professores Ignácio Maria Poveda Velasco, Otavio Luiz Rodrigues Junior, José Antônio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva. Agradecido pelo privilégio de participar desta coluna, espero que este artigo possa contribuir, de alguma forma, para a compreensão de um tema tão complexo.
Nesta primeira publicação, busca-se traçar as características fundamentais do condomínio de lotes, distinguindo-o de figuras semelhantes, como o loteamento de acesso controlado e o condomínio edilício de casas. Muitos utilizaram expressões como “condomínio especial” ou “condomínios assemelhados” para aludir, por exemplo, ao loteamento de acesso controlado, o que gera confusão, pois o loteamento de acesso controlado não é condomínio edilício.[1
Assim, pode-se partir de uma definição inicial e sucinta do condomínio de lotes para, na sequência, comparar esta figura com o condomínio edilício de casas e com o loteamento de acesso controlado. Condomínio de lotes é uma modalidade de condomínio edilício, portanto, caso de comunhão pro diviso: há verdadeiro condomínio sobre as áreas comuns e propriedade exclusiva sobre as unidades autônomas que, no caso, são os lotes. Trata-se, portanto, de “condomínio sem construção”, que dá ao adquirente maior liberdade para a construção de sua casa. A Lei 13.465/2017 permitiu expressamente, pela primeira vez em âmbito nacional, a instituição do condomínio de lotes, introduzindo no Código Civil o artigo 1.358-A.
I. Condomínio edilício de casas ou de apartamentos.
O condomínio edilício é caracterizado, essencialmente, pela presença de áreas de propriedade comum e áreas de propriedade exclusiva (artigo 1.331, CC/02). Pontes de Miranda fala em “comunhão pro diviso”, e explica, quanto à aparente contradição da ideia de comunhão que não é comum, que “comunhão pro diviso é apenas abreviação, como veremos, de ‘comunhão no terreno e nas partes indivisas do edifício e mais dependências, e não-comunhão nas partes pro diviso’”.[2]
A verdadeira necessidade do condomínio edilício nos edifícios de apartamentos é bastante evidente. Por haver unidades autônomas superpostas em planos horizontais,[3] sobre um mesmo e único terreno, é clara a necessidade de comunhão sobre o terreno e sobre as demais áreas comuns, notadamente sobre a área de passagem para as vias públicas.[4] No condomínio de casas não existe esta dificuldade “natural”, o que gerou polêmicas quanto às possibilidades de sua instituição.
A previsão legal do condomínio edilício de casas se limita ao singelo artigo 8º da Lei 4.591/64, que alude às “unidades autônomas que se constituírem em casas térreas ou assobradadas”. José Afonso da Silva afirmou que este dispositivo foi criado para “possibilitar o aproveitamento de áreas de dimensão reduzida no interior de quadras, que, sem arruamento, permitam a construção de conjuntos de edificações, em forma de vilas, sob regime condominial”.[5] Portanto, a figura se voltaria a imóveis de difícil aproveitamento. Contudo, a lei federal não criou restrições deste teor, de modo que muitos condomínios fechados de grandes dimensões foram criados.
II. Parcelamento do solo. Loteamento e desmembramento.
Traçadas estas linhas gerais sobre o condomínio edilício de casas, passa-se à análise do loteamento, principalmente do loteamento de acesso controlado. Quanto ao loteamento, muitas vezes toma-se a parte pelo todo (parcelamento), sendo necessário conceituar as diferentes modalidades de parcelamento do solo, notadamente o loteamento e o desmembramento, regulados pela Lei 6.766/1979, que disciplina o parcelamento do solo para fins urbanos.[6]
Nessas duas formas de parcelamento, haveria “subdivisão de gleba em lotes”, sendo que no loteamento haveria abertura de novas vias de circulação, ou pelo menos ampliação/modificação das vias existentes (artigo 2º, §1º), enquanto no desmembramento haveria “aproveitamento do sistema viário existente” (§2º). Na síntese de Hely Lopes Meirelles, o desmembramento é modalidade de parcelamento “sem atos de urbanização”, enquanto o loteamento constitui “meio de urbanização”.[7]
Essencial para o objetivo deste artigo é a noção de lote. Lote é “o terreno servido de infraestrutura básica” (artigo 2º, §4º). Nas palavras de José Afonso da Silva, é “a porção de terreno com frente para logradouro público em condições de receber edificação residencial, comercial, institucional ou industrial. Lotes são, pois, unidades edificáveis”.[8] A noção de gleba, após o veto ao §3º do artigo 2º da Lei 6.766/79, é obtida por exclusão em relação ao conceito de lote: é o “terreno que não foi objeto de parcelamento aprovado”.
III. Loteamento de acesso controlado.
Passando-se à análise do loteamento “fechado”, deve-se destacar, de início, que é um loteamento como outro qualquer. O que ocorre, apenas, é que por questões de segurança, o município autoriza (por ato precário) que o loteamento seja murado, e que se implemente um controle de acesso. Por se tratar de verdadeiro loteamento, nos termos do artigo 22 da Lei 6.766/79, as vias, praças e demais áreas públicas e equipamentos urbanos passam, com o registro do parcelamento, ao domínio do município.
Com o loteamento, a gleba única deixa de existir, transformada que foi em diversos lotes, além das vias de circulação e áreas públicas mencionadas. Mas ocorre uma “reversão das áreas de domínio público a uma associação formada por proprietários de lotes, que passa a ser responsável pela sua manutenção e, via de consequência, passa a controlar o acesso ao loteamento, por meio de muros e cercas”.[9] A Lei 13.465/2017 dispôs sobre o assunto, permitindo que qualquer pessoa tenha acesso ao local, desde que devidamente identificada (“acesso controlado”).[10]
Note-se, portanto, que o loteamento de acesso controlado não se confunde com o condomínio edilício de casas, a despeito da possível aparência no mundo dos fatos. O condomínio tem regulação legal quanto ao síndico, à cobrança da cota condominial, etc. Já no loteamento os moradores têm de criar uma associação, com os diversos problemas daí decorrentes (sobretudo o “direito de não se associar” dos proprietários dos lotes).[11] Apesar das diferenças evidentes, quando houver compatibilidade, a doutrina recomenda a aplicação das regras sobre condomínio a estas figuras assemelhadas, como se extrai do Enunciado 89 da I Jornada de Direito Civil do CJF.[12]
IV. Condomínio de lotes.
Eis que surge em nosso Direito, entre o condomínio e o loteamento, o condomínio de lotes. Como o nome indica, trata-se de condomínio edilício, mas, diferentemente do condomínio de casas, tem como unidades autônomas apenas lotes: portanto, é um condomínio edilício sem construção, como advogava Gilberto Valente da Silva, em artigo de 1995.[13] A discussão sobre a possibilidade ou não de um condomínio sem construção, antes da Lei 13.465/17, será analisada na segunda parte deste artigo: entender a discussão que existia é fundamental para uma compreensão mais profunda do condomínio de lotes.
Também será necessário analisar mais detidamente a ligação do condomínio de lotes com a noção de loteamento. Pergunta-se: se o condomínio de lotes é um condomínio e, portanto, propriedade privada dos condôminos, seus lotes (unidades autônomas) precisam estar de acordo com as exigências da Lei 6.766/79? Esta lei proíbe, por exemplo, loteamentos em terrenos alagadiços ou com declividade superior a 30%, impõe um tamanho mínimo aos lotes e, sobretudo, impõe a transmissão gratuita de boa parte da “gleba” para o município.
O condomínio de lotes não permitiria que os empreendedores escapassem das exigências da Lei 6.766/79? Não poderia fazer com que surgissem gigantescos “guetos privados” dentro das cidades, prejudicando a mobilidade urbana? Muitos juristas, como José Afonso da Silva e também os membros da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo apresentaram tais preocupações. Tais questões, e muitas outras, serão analisadas na segunda parte desta coluna, na próxima semana, novamente na coluna Direito Civil Atual.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM)
[1] É por isso mesmo que há, no loteamento “fechado”, a necessidade de se criar uma associação de moradores. O Enunciado 89 da I Jornada de Direito Civil CJF/STJ alude a “condomínio assemelhado”: melhor seria que falasse em “figuras assemelhadas ao condomínio”. Cf. nota 12, infra.
[2] PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, tomo XII, 1971, p. 144. Na p. 145 recomenda: “em verdade, mais acertado é conservarmos as expressões clássicas: comunhão pro diviso, comunhão pro indiviso; porque não é a comunhão que é divisa, ou indivisa; o que é diviso é exatamente onde se excetua a comunhão e comunhão pro indiviso refere-se a comunhão de tudo” (§ 1.304, 1).
[3] Expressões como “condomínio horizontal”, “propriedade horizontal”, “condomínio vertical”, etc., devem ser evitadas, por não haver consenso em sua utilização. Embora os edifícios de apartamentos se liguem ao fenômeno da “verticalização das cidades”, são divididos pelas lajes em “planos horizontais sobrepostos”, enquanto o condomínio de casas é dividido em planos verticais.
[4] Em conformidade com o artigo 1.331, §4º, do CC/02: “Nenhuma unidade imobiliária pode ser privada do acesso ao logradouro público” (cf. também o §2º).
[5] SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 347 (n. 61).
[6] Sobre o parcelamento para fins rurais, cf. MUKAI, Toshio; ALVES, Alaor Caffé; LOMAR, Paulo José Villela. Loteamentos e desmembramentos urbanos: comentários à Lei n. 6.766/79. 2. Ed. São Paulo: Sugestões literárias, 1987, p. 2. A doutrina e a legislação local costumam fazer alusão também ao chamado “desdobro de lotes”, por vezes tratado como caso de desmembramento de pequena monta, simplificado.
[7] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 16.ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 569 (3.6).
[8] Direito Urbanístico Brasileiro, cit., 2010, p. 334.
[9] Autos n. 2014/00141294 da CGJ-TJSP, p. 301, em que ainda se pode ler: “a reversão é feita através de permissão ou concessão de uso, a título precário, pelo Município”. Esta decisão contou com a participação dos Desembargadores Vicente de Abreu Amadei, Francisco Eduardo Loureiro e Claudio Luiz Bueno de Godoy.
[10] A lei incluiu um §8º no artigo 2º da Lei 6.766/79.
[11] A liberdade de associação em sua vertente negativa (direito de não se associar) serviu de base ao julgamento do RE 432.106, pelo STF, e dos Recursos Especiais 1.280.871 e 1.439.163, pelo STJ, todos sobre cobranças efetuadas por associações de moradores em loteamentos de acesso controlado.
[12] “O disposto nos arts. 1.331 a 1.358 do novo Código Civil aplica-se, no que couber, aos condomínios assemelhados, tais como loteamentos fechados, multipropriedade imobiliária e clubes de campo”.
[13] O advogado Gilberto Valente da Silva, falecido em 2003, foi juiz titular da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo de 1972 a 1980. Quanto ao artigo Condomínio sem construção, encontra-se na obra: JACOMINO, Sérgio (Coord.). Estudos de direito registral imobiliário – XXII Encontro dos oficiais de registro de imóveis do Brasil - 1995. Porto Alegre: SAFE, 1997, pp. 211-228.
Gustavo de Revorêdo Pugsley é doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral.
Fonte: Revista Consultor Jurídico