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18/01/2019

Artigo: Um tabelião faz muita diferença - Por Letícia Franco Maculan Assumpção

Um tabelião faz muita diferença: banco não identifica a vontade das partes em contrato imobiliário
 
INTRODUÇÃO
No presente trabalho, trataremos da importância da formalização dos negócios envolvendo alienação de imóveis por meio de escritura pública, apresentando um caso concreto no qual fica patente a falta que faz a participação de um tabelião no ato.
 
Será também analisado o instrumento particular e a sua utilização em negócios imobiliários. O artigo demonstrará as vantagens da celebração do negócio imobiliário por meio de escritura pública, com a atuação do tabelião.
 
1 – O CASO CONCRETO
No Cartório do Barreiro, foi recebida a consulta abaixo:
 
Adquiri um imóvel na constância de meu casamento, parte através de doação dos meus pais (em dinheiro no valor de R$330.000,00) e a outra parte R$ 170.000,00 por financiamento junto à Caixa Econômica Federal. Após a realização do registro, verifiquei que não consta do mesmo a doação dos meus pais que engloba uma parte significativa do bem. Constam do registro como proprietários eu e meu marido e apenas uma observação que parte foi adquirido com recursos próprios e outra por financiamento. No contrato da Caixa, que tem efeito de escritura, não consta a doação (quando fui fazê-lo me disseram que não era possível constar do mesmo esta cláusula, já que se trata de um contrato padrão), mas consta do contrato de promessa de compra e venda. Foi pago o ITCD de doação pelos meus pais. Sou casada pelo regime da comunhão parcial de bens. O meu marido tem filhos de outra união e uma filha comigo. Assim, eu e minha filha ficamos bastante prejudicadas com o que ocorreu. O financiamento perante a Caixa foi quitado no final do ano passado. (sem grifos no original)
 
Ao verificar detalhadamente a consulta, constatamos que:
 
a) a consulente adquiriu um imóvel na constância de casamento, sendo casada no regime da comunhão parcial de bens;
 
b) o imóvel foi adquirido parte por meio de doação dos pais da consulente feita exclusivamente a ela (em dinheiro no valor de R$330.000,00) e a outra parte R$170.000,00 por financiamento feito pelo casal junto à Caixa Econômica Federal;
 
c) não constou do registro a doação feita pelos pais à consulente, porque a doação não fora mencionada no contrato da Caixa, segundo a justificativa dada pelo banco no sentido de que não era possível nele inserir esta cláusula, já que se trata de um contrato padrão;
 
d) foi pago o ITCD de doação pelos pais da consulente;
 
e) o marido da consulente tem filhos de outra união e uma filha com a consulente.
 
Não há dúvida do grande prejuízo existente para a consulente e para a sua filha pela ausência no registro da informação sobre a doação feita pelos pais da consulente para ela. Isso porque a doação feita a uma pessoa não se comunica com o seu respectivo cônjuge, tratando-se de casamento celebrado sob o regime da comunhão parcial de bens. Assim, constando do registro a doação, o valor respectivo não se comunica com o cônjuge. Observa-se, pois, que o banco deu causa a um grave prejuízo. Salienta-se que, no caso apresentado, até mesmo o imposto referente à doação tinha sido pago. Efetivamente, o comprovante do recolhimento do ITCD ao Estado de Minas Gerais foi apresentado à tabeliã no Cartório do Barreiro.
 
Em tabelionatos de notas, é comum constar em escrituras que houve doação de numerário pelos genitores de um dos adquirentes para que a compra seja feita. Não se trata de cláusula complexa, ao contrário, é algo simples, mas é de conhecimento geral que os bancos não alteram a sua “minuta”, o contrato só é assinado se seguir exatamente os termos apresentados pelo banco, que não aceita situações diferentes. A contratação do financiamento bancário, portanto, apresenta-se com cláusulas uniformes, não deixando espaço para o princípio da autonomia da vontade: seja em relação à determinação do conteúdo, seja em relação à escolha do outro contratante, é um típico contrato de adesão.
 
Enquanto os bancos somente trabalham com minutas previamente aprovadas por eles próprios, o tabelião deve sempre estar atento à vontade das partes e ao fato apresentado para que seja elaborado o instrumento adequado, sendo que lavrar escrituras públicas é uma atividade muito representativa da função do Tabelião de Notas, privativa desse agente público, conforme previsão na Lei Federal nº 8.935/94 (Lei dos Notários e Registradores), que veio regulamentar a Constituição Federal, dispondo sobre os serviços notariais e de registro. A escritura pública é o “ato notarial mediante o qual o tabelião recebe manifestações de vontade endereçadas à criação de atos jurídicos”, ou seja, “é o ato notarial pelo qual o notário recebe a vontade manifestada pelas partes e endereçadas a ele, tabelião, para que instrumentalize o ato jurídico adequado; é o ato por meio do qual o tabelião recebe a vontade das partes, qualifica essa vontade e cria o instrumento adequado a dar vazão jurídica a esta vontade.” Especificamente no que se refere à escritura de compra e venda, pode-se afirmar que a escritura “corporifica o instrumento utilizado para formalizar a vontade das partes em transferir e receber a propriedade imóvel, tornando tal ato oficial e público, gerando assim publicidade e segurança ao que as partes pretendam dar forma jurídica” .
 
No caso concreto relatado no presente artigo, a ata notarial foi utilizada para regularizar a situação, como será demonstrado no item 3. Todavia, convém antes indagar, por que a lei admite o uso de instrumento particular no caso de imóveis financiados pelo Sistema Financeiro de Habitação? Há benefício para a população ou para o Estado na referida autorização?
 
2- POR QUE A LEI ADMITE O USO DE INSTRUMENTO PARTICULAR NO CASO DE IMÓVEIS FINANCIADOS PELO SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO?
Estabelece o Código Civil, em seu art. 108: “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.” Tendo em vista essa exceção prevista no art. 108 do Código Civil, a Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, que criou o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), permite a realização de negócios imobiliários diretamente através de instrumento particular, ou seja, sem a necessidade de escritura pública. De fato, o parágrafo 5º, do artigo 61 da mencionada lei, determina:
 
“Os contratos de que forem parte o Banco Nacional de Habitação ou entidades que integrem o Sistema Financeiro de Habitação, bem como as operações efetuadas por determinação da presente Lei, poderão ser celebrados por instrumento particular, os quais poderão ser impressos, não se aplicando aos mesmos as disposições do art. 134, II, do Código Civil, atribuindo-se o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito, aos contratos particulares firmados pelas entidades acima citados (sic) até a data da publicação desta Lei.”
 
Também a Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, que dispôs sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário e instituiu a alienação fiduciária de coisa imóvel, na redação dada pela Lei nº 11.076/2004 ao seu art. 38, estabeleceu que:
 
“Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública.”
 
Qual o motivo para a lei autorizar o instrumento particular? O motivo seria simplificação, rapidez, segurança e economia de taxas nos contratos. Mas isso na realidade ocorre? Na verdade, não ocorre. As altas taxas cobradas pelos bancos para a elaboração dos contratos do SFH e a impossibilidade de escolha pelo mutuário de um tabelião de Notas para formalizar o contrato confirmam que a política social não corresponde ao seu objetivo. Tiago Baptistela, analisando as tarifas cobradas pela CEF para a formalização dos contratos de financiamento e a tabela de emolumentos do Estado do Rio Grande do Sul, constatou que os valores cobrados pela instituição financeira para elaboração do contrato são muito maiores do que o valor cobrado por uma escritura pública, promovendo uma taxa onerosa ao mutuário e não permitindo a opção de escolher a formalização por escritura pública .
 
Não há, portanto, nenhum benefício para a população em ser feito o contrato por instrumento particular, junto ao próprio banco que realiza o financiamento. Mas haverá algum benefício para o Estado? Alguma garantia maior da observância da legalidade? Em rápida pesquisa feita na internet, verifica-se que o Estado não tem sido protegido na elaboração de contratos por instrumento particular. Observem-se as seguintes notícias: “Polícia Federal combate fraudes em financiamentos imobiliários da Caixa” , “PF ouve 18 sobre fraude de R$ 500 milhões em financiamentos no MA” , “Operação da PF prende agente imobiliário suspeito de fraudar financiamentos no ES” ; “Quatro são condenados por fraude na Caixa Econômica no Ceará” , ” PF prende operador de fraude em crédito imobiliário na Caixa: Organização criminosa atuava em três agências bancárias no RJ e desviou R$ 100 milhões com documentos falsos e liberação de valores sem as devidas garantias” .
 
Os tabeliães têm extremo cuidado quando lavram negócios jurídicos, pois são pessoalmente responsáveis pelos atos que praticam, conforme previsão da Lei nº 8.935/94. Além disso, os tabeliães são fiscalizados pelo Poder Judiciário. Sem dúvidas, o Estado estaria em melhores mãos se todas as aquisições de imóveis por meio de financiamentos fossem lavradas por escritura pública.
 
Em razão de todo o exposto, concordamos com Flávio Fischer sobre a inexistência de fundamento para o chamado escrito particular com força de escritura pública: substituir a escritura por instrumento particular é o mesmo que prescrever aspirinas ao paciente necessitado de antibióticos . De fato, o escrito particular não se compara à escritura pública. Não se trata de defender a forma por si só, mas de acastelá-la pelo seu conteúdo, pelas garantias intrínsecas das quais se reveste. Ora, na escritura há a presença do tabelião, pessoa neutra e imparcial, que conhece a lei e a observa, dando segurança jurídica ao ato e evitando futuros conflitos. O documento produzido pelo tabelião tem fé pública e a responsabilidade do tabelião é inequívoca.
 
3- SOLUÇÃO DADA AO CASO CONCRETO
Como se resolveu então a situação da consulente? Após análise profunda do caso e reuniões com os interessados, resolveu-se lavrar uma ata notarial, na qual foram colhidos os depoimentos dos genitores da compradora do imóvel, que confirmaram terem doado a ela, e exclusivamente a ela, o valor para a compra de parte do imóvel, sendo juntado o comprovante do recolhimento do imposto. Além disso, foi ouvido o marido da consulente, que declarou ter conhecimento da doação, portanto, nada ter a opor quanto ao fato de ser ela proprietária exclusiva da proporção do imóvel respectiva ao valor desembolsado por seus genitores. Apresentada a ata notarial ao Cartório de Registro de Imóveis respectivo, tendo em vista o princípio da concentração dos atos na matrícula, segundo o qual na matrícula imobiliária devem constar todas as situações jurídicas relevantes acerca da situação do imóvel, foi averbada a existência da doação e, consequentemente, a propriedade exclusiva da mulher no imóvel, na proporção doada para sua aquisição.
 
4- CONCLUSÃO
Tendo em vista a atuação do tabelião de Notas, o caso concreto foi resolvido, de modo que a doação feita pelos pais da consulente, exclusivamente para ela, foi averbada no Registro de Imóveis. A doação, devidamente averbada, garante que não haverá a comunicação com o cônjuge da proporção do imóvel adquirido com os recursos da doação, pois se trata de casamento celebrado sob o regime da comunhão parcial de bens. Mas o problema sequer existiria se a atuação do tabelião de Notas fosse determinada pela lei em qualquer situação, como efetivamente seria melhor tanto para o adquirente do imóvel, que teria melhor orientação jurídica, por pessoa com fé pública, com conhecimento jurídico, imparcial e responsável pelos atos que pratica, quanto para o Estado, pois o que se observa é a existência de diversas fraudes quando não há a atuação preventiva do tabelião. A dispensa da escritura pública em aquisição de imóveis por meio de financiamentos pelo SFH não beneficia nem ao mutuário nem ao Estado.
 
* Eduardo Calais Pereira – Tabelião do 1º Cartório de Notas de Igarapé-MG, Presidente do CNB-MG, Mestre em Processo Civil pela UFMG e Mestre em Direito Público pela FUMEC.
** Letícia Franco Maculan Assumpção – Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito do Barreiro, Belo Horizonte-MG, pós-graduada, mestre e doutoranda em Direito. Diretora do Instituto Nacional de Direito e Cultura – INDIC. Presidente do Colégio Registral de Minas Gerais e Diretora do CNB/MG.

Fonte: CNB/SP


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