Recente modificação no Código Civil Brasileiro e na Lei de Registros Públicos, operada pela Lei 13.777, de 20 de dezembro de 2018, reconhece, agora ao nível do direito positivo, o instituto da multipropriedade imobiliária, conceituado como
o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada.
Trata-se do reconhecimento legislativo de instituto já utilizado na prática sobretudo do mercado imobiliário urbano, e no turístico, que restou conhecido como time sharing, ou sistema de propriedade por tempo compartilhado. O legislador, como visto, preferiu o termo multipropriedade imobiliária.
Seja como for, adotando-se a denominação que se prefira é certo que o instituto em questão possui natureza jurídica de condomínio. O que o caracteriza, entretanto, é a utilização, por determinado período de tempo, de imóvel urbano ou rústico, já que a lei não diferencia, com exclusividade, ou seja, há condôminos que dividem a utilização do bem por determinado período de tempo, utilização esta necessariamente, nos termos da lei, exclusiva, total e alternada.
Neste sentido, o novel diploma legal deve ser bem recebido no meio jurídico, posto que vem fulminar qualquer questionamento que pudesse haver com relação à sua utilização pelos particulares na vida de relações. Outrossim, é certo que o Superior Tribunal de Justiça já reconhecera, antes da lei, a existência do referido instituto, conferindo-lhe a validade. Vide, neste sentido, a seguinte ementa, do REsp 1.546.165 / SP, relatado pelo ministro João Otávio de Noronha:
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA (TIME-SHARING). NATUREZA JURÍDICA DE DIREITO REAL. UNIDADES FIXAS DE TEMPO. USO EXCLUSIVO E PERPÉTUO DURANTE CERTO PERÍODO ANUAL. PARTE IDEAL DO MULTIPROPRIETÁRIO. PENHORA. INSUBSISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.
1. O sistema time-sharing ou multipropriedade imobiliária, conforme ensina Gustavo Tepedino, é uma espécie de condomínio relativo a locais de lazer no qual se divide o aproveitamento econômico de bem imóvel (casa, chalé, apartamento) entre os cotitulares em unidades fixas de tempo, assegurando-se a cada um o uso exclusivo e perpétuo durante certo período do ano.
2. Extremamente acobertada por princípios que encerram os direitos reais, a multipropriedade imobiliária, nada obstante ter feição obrigacional aferida por muitos, detém forte liame com o instituto da propriedade, se não for sua própria expressão, como já vem proclamando a doutrina contemporânea, inclusive num contexto de não se reprimir a autonomia da vontade nem a liberdade contratual diante da preponderância da tipicidade dos direitos reais e do sistema de numerus clausus.
3. No contexto do Código Civil de 2002, não há óbice a se dotar o instituto da multipropriedade imobiliária de caráter real, especialmente sob a ótica da taxatividade e imutabilidade dos direitos reais inscritos no art. 1.225.
4. O vigente diploma, seguindo os ditames do estatuto civil anterior, não traz nenhuma vedação nem faz referência à inviabilidade de consagrar novos direitos reais. Além disso, com os atributos dos direitos reais se harmoniza o novel instituto, que, circunscrito a um vínculo jurídico de aproveitamento econômico e de imediata aderência ao imóvel, detém as faculdades de uso, gozo e disposição sobre fração ideal do bem, ainda que objeto de compartilhamento pelos multiproprietários de espaço e turnos fixos de tempo.
5. A multipropriedade imobiliária, mesmo não efetivamente codificada, possui natureza jurídica de direito real, harmonizando-se, portanto, com os institutos constantes do rol previsto no art. 1.225 do Código Civil; e o multiproprietário, no caso de penhora do imóvel objeto de compartilhamento espaço-temporal (time-sharing), tem, nos embargos de terceiro, o instrumento judicial protetivo de sua fração ideal do bem objeto de constrição.
6. É insubsistente a penhora sobre a integralidade do imóvel submetido ao regime de multipropriedade na hipótese em que a parte embargante é titular de fração ideal por conta de cessão de direitos em que figurou como cessionária.
7. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 1546165/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 06/09/2016)
Portanto, antes da nova lei, já era reconhecido como instituto de direito real, tido como expressão do direito de propriedade, da qual ostenta todas as prerrogativas (usar, gozar, dispor e reaver), nos termos do artigo 1.228, do Código Civil, temperado, sim, como todo e qualquer direito real, com pitadas obrigacionais pessoais que, ao contrário de infirmá-lo, somente o confirma como nova categoria jurídica que merece, mais ainda, preocupação da ciência jurídica na delimitação dos seus contornos.
Isto posto, é de se alvitrar a respeito da possível utilização do referido instituto na exploração do imóvel agrário, para fins de produção rural, já que, até onde se sabe, o time sharing vem sendo utilizado no Brasil, e no exterior, somente em empreendimentos de natureza turística.
Tradicionalmente o imóvel rural, no Brasil, é explorado, do ponto de vista jurídico sobretudo pelos institutos da posse, da propriedade, da parceria e do arrendamento rural. Posteriormente, reconheceu-se o instituto do direito de superfície, como apto a prestar segurança jurídica na utilização e exploração do imóvel agrário.
Agora, verifica-se que a lei não oferece qualquer óbice à entabulação de avenças fundadas na multipropriedade rural sendo, entretanto, necessário observar-se questões de natureza regulamentar, decorrentes da autonomia da vontade das partes, observados, entretanto, os cuidados com o meio ambiente, com as relações de trabalho no campo, com a exploração racional e adequada do imóvel e com o bem estar dos trabalhadores e proprietários do imóvel. É dizer: nada muda com relação ao artigo 186 da Constituição Federal.
Outrossim, é sabido que a própria natureza da atividade agrária, ligada ao ciclo biológico das culturas e das criações, não permite a fixação rígida de datas e cronogramas fundados exclusivamente no calendário civil, havendo, assim, necessidade das partes, que desejarem utilizar-se da multipropriedade agrária, precaverem-se, em seus instrumentos, quanto às peculiaridades das atividades a serem desenvolvidas, seja para que se evitem discussões quanto às responsabilidades por quebra de ciclo, decorrentes, por exemplo, de atrasos de plantio e estações de reprodução, seja no que diz respeito ao exaurimento do solo e da necessidade da sua conservação.
Assim sendo, são inúmeras as questões que deverão ser respondidas pela doutrina e pela jurisprudência a partir da Lei 13.777/2018, como, por exemplo, aquisição por estrangeiros, responsabilidades ambientais, questões contratuais, índices de produtividade para fins de ITR e desapropriação por interesse social, até que finalmente o instituto esteja assentado em nossa prática jurídica e social.
Em todo o caso, como potência agrícola mundial, capaz de gerar mais de uma safra por ano, no mesmo solo, acerta o Brasil ao estabelecer, sem distinção alguma, a regulamentação, ao nível do direito positivo, do direito de multipropriedade, também agrária, encetando novas possibilidades de exploração do imóvel rural, à luz do princípio da exploração adequada e racional da propriedade rural, e em benefício de um desenvolvimento maior da produção, da renda, do emprego e do desenvolvimento econômico e social.
Rogério Oliveira Anderson é mestre em Direito Agrário (UFG), especialista em Gestão do Agronegócio (UFPR), professor da Graduação e Pós-Graduação do IESB, secretário geral da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB-DF, membro da American Agriculture Law Association e da União Brasileira dos Agraristas Universitários, procurador do Distrito Federal, advogado.
Fonte: Revista Consultor Jurídico