Em maio de 2017, no julgamento do Recurso Extraordinário Nº 878.694, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, o qual sustenta diferenciação entre cônjuge e companheiro, no que tange à sucessão hereditária.
O Ministro Barroso, relator, firmou a seguinte tese acerca do tema: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1.829 do CC/02”.
A decisão parecia ter solucionado grande controvérsia jurídica, a partir da fixação da referida tese, cônjuges e companheiros deveriam ter os mesmo direitos na sucessão. Acontece que não ficou clara como seria essa aplicação do artigo 1.829, que regula a ordem de vocação hereditária. Acerca do tema, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) pediu esclarecimentos ao STF, em sede de embargos de declaração.
Nos embargos de declaração, o IBDFAM sustentou que o regime sucessório do cônjuge não se restringe ao artigo 1.829 do Código Civil, de forma que o acórdão embargado teria se omitido com relação a diversos dispositivos que conformam esse regime jurídico, em particular o artigo 1.845 do Código Civil. A entidade pediu esclarecimentos sobre qual seria o alcance da tese de repercussão geral, no sentido de mencionar as regras e dispositivos legais do regime sucessório do cônjuge que devem se aplicar aos companheiros.
Os embargos foram rejeitados pelo STF porque, segundo o Ministro Barroso, “a repercussão geral reconhecida diz respeito apenas à aplicabilidade do art. 1.829 do Código Civil às uniões estáveis. Não há omissão a respeito da aplicabilidade de outros dispositivos a tais casos”.
“A posição que prevalece é a de que o companheiro é herdeiro necessário”, diz especialista.
Para Ana Luiza Nevares, vice-presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da Família do IBDFAM, que é favorável à equiparação de regimes sucessórios para cônjuge e companheiro, quando o STF diz que o regime sucessório não pode ser diferente, automaticamente está dizendo que, se um é herdeiro necessário, o outro também é.
“Tecnicamente, eu não consigo enxergar a matéria de outro jeito. Se é inconstitucional tratar eles (cônjuge e companheiro) de forma diversa, então ambos têm que ter os mesmos direitos sucessórios”, diz.
Ela expõe: “Para mim, a ratio decidendi, a razão de decidir do Supremo, foi muito clara: na sucessão hereditária, ambos são tratados de forma igual, se o cônjuge é herdeiro necessário o companheiro também deve ser. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se manifestou no sentido de que a repercussão geral estabelecida pelo STF leva, necessariamente, a posição do companheiro como herdeiro necessário. Mas é verdade que essa manifestação ainda não se deu em sede de uma decisão vinculante, pode ser que o STJ mude a sua posição. Eu penso que a razão de decidir da repercussão geral foi a igualdade plena de direitos sucessórios entre cônjuge e companheiro, eu já tenho uma posição da corte superior a respeito da legislação infraconstitucional, já tenho uma posição do STJ no sentido de que o companheiro é herdeiro necessário, então, apesar da decisão do STF nos embargos, a posição que prevalece é a de que o companheiro é herdeiro necessário. Evidentemente, o debate está na mesa e seria muito importante que a gente tivesse uma decisão que resolvesse de uma vez essa questão”.
Contraponto
Para o advogado Mário Luiz Delgado, presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM, que é contrário à equiparação entre união estável e casamento, casamento e união estável são duas entidades familiares típicas, mas com “enorme” diferenciação fática e normativa.
“A tutela estatal abrangente das entidades familiares típicas e atípicas não provoca a equiparação da respectiva moldura normativa, posto que em sendo diversas as suas características, imperioso reconhecer a diversidade de regimes legais, sem que se incorra no equívoco da hierarquização”, diz.
Delgado entende possível ao legislador infraconstitucional estabelecer regras e direitos diferentes, especialmente no que se refere à qualidade de herdeiro necessário. Sobre o tema ele comenta: “Mesmo após a decisão do STF, não cabe a aplicação do art. 1.845, com elevação do companheiro sobrevivo ao status de herdeiro necessário. Primeiro porque ser herdeiro necessário decorre do preenchimento das formalidades próprias do casamento, dispondo a lei, de forma explícita, que somente quem possua o estado civil de ‘casado’ portará o título de sucessor legitimário, ostentando a qualificadora restritiva da liberdade testamentária. Segundo porque o art. 1.845 é nítida norma restritiva de direitos, pois institui restrição ao livre exercício da autonomia privada e, conforme as regras ancestrais de hermenêutica, não se pode dar interpretação ampliativa à norma restritiva. O rol do art. 1.845, portanto, é taxativo. Da mesma forma que só a lei pode retirar qualquer herdeiro daquele elenco, somente a lei pode ampliar o seu conteúdo, não sendo permitido ao intérprete fazê-lo”.
Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do IBDFAM, “se equiparar cônjuge e companheiro em todas as premissas, incluindo o de ser herdeiro necessário, estará tolhendo a liberdade das pessoas de escolherem esta ou aquela forma de família. Poderia, na verdade, sucumbir o instituto da união estável. Se em tudo é idêntica ao casamento, ela deixa de existir, e só passa a existir o casamento. Afinal, se a união estável em tudo se equipara ao casamento, tornou-se um casamento forçado. Respeitar as diferenças entre um instituto e o outro é o que há de mais saudável para um sistema jurídico. Um dos pilares de sustentação do Direito Civil é a liberdade. Se considerarmos o (a) companheiro (a) como herdeiro necessário estaremos acabando com a liberdade de escolha entre uma e outra forma de constituir família, já que a última barreira que diferenciava a união estável do casamento já não existiria mais”.
“Debate continua”, diz advogado
Ana Luiza Nevares afirma que a decisão do STF nos embargos de declaração deixou a situação “confusa” e abriu espaço para mais debates sobre a matéria. “Ao meu ver, essa decisão está trazendo angústia, porque o artigo 1829, que regula a ordem de vocação hereditária, não vive sozinho. Ele precisa dos outros artigos que regulamentam a divisão entre os herdeiros previstos no artigo 1829. Outros dispositivos regulamentam como se dá a partilha da herança do artigo 1829 e o Supremo disse que nenhum desses artigos, inclusive, o artigo 1845, que se refere à sucessão hereditária, foram discutidos na repercussão geral. A situação ficou um pouco confusa porque, inicialmente, o Supremo diz que a sucessão do cônjuge e do companheiro é igual, depois, nessa decisão, ele diz que determinados artigos não forma abordados, então ainda há a discussão se o companheiro é ou não herdeiro necessário”.
Com outro ponto de vista, Mário Delgado interpreta que o STF foi “expresso e categórico” ao aduzir que a repercussão geral reconhecida no acórdão embargado dizia respeito apenas à aplicabilidade do artigo 1.829 do Código Civil às uniões estáveis, não existindo qualquer omissão a respeito da aplicabilidade de outros dispositivos a tais casos. “A decisão vai ao encontro das minhas manifestações anteriores, na linha de que o companheiro não se tornou herdeiro necessário, pois o STF não se manifestou, em momento algum, sobre a aplicação do art. 1.845 à sucessão da união estável. As leis gozam de presunção de constitucionalidade e se o STF nada disse sobre o art. 1.845, que exclui o companheiro sobrevivente, presume-se a sua constitucionalidade. Logo não se pode em absoluto supor ou pressupor a sua inconstitucionalidade. Até que o STF volte a se manifestar sobre o tema, especificamente no que tange ao art. 1.845, herdeiros necessários no nosso ordenamento jurídico permanecem sendo apenas descendentes, ascendentes e cônjuge. O companheiro, por ora, está fora desse rol. E isso não significa qualquer incompatibilidade no ordenamento, em razão das diferenças entre as duas entidades, como eu já pontuei”, salienta.
Segundo o advogado Flávio Tartuce, diretor nacional do IBDFAM, o STF não apreciou a questão da distinção entre cônjuge e companheiro na sucessão, no julgamento dos embargos. “Entendo que o julgamento dos embargos de declaração pelo STF não mergulhou na análise de ser o companheiro herdeiro necessário ou não. Houve a sua rejeição (dos embargos) por uma razão processual e o debate continua nos âmbitos doutrinário e jurisprudencial. Na minha visão, predomina a resposta positiva na doutrina. Ademais, existem julgados do STJ na mesma linha. Porém, para que haja uma pacificação do tema e nos termos do art. 927 do CPC/2015, a questão precisa ser solucionada pela Segunda Seção do STJ ou pelo próprio STF em outro julgado”.
Fonte: IBDFAM