A propriedade fiduciária foi instituída pelo Direito brasileiro com a finalidade de reforçar a garantia prestada em financiamentos, assegurando ao credor fiduciário (na maioria das vezes, instituições financeiras), em caso de inadimplência do devedor fiduciante, a recuperação do crédito concedido de forma mais rápida e eficaz.
Através dessa modalidade de garantia o devedor torna-se mero possuidor direto do bem, enquanto ao credor é concedida a posse indireta, o que significa dizer que a propriedade não é transferida imediatamente àquele que aderiu ao financiamento, mas, sim, reservada àquele que concedeu o crédito (domínio resolúvel). A medida, além de mitigar os riscos da inadimplência, evita, ainda, que a coisa alienada fiduciariamente seja alcançada por terceiros, especialmente outros credores do devedor fiduciante.
Somente na hipótese de quitação das obrigações contratuais, notadamente o pagamento da integralidade das parcelas do financiamento, o bem é finalmente transferido ao devedor. Caso contrário, haverá a consolidação da propriedade em favor do credor.
Por essas razões, especialmente nas operações bancárias, a alienação fiduciária passou a ser consideravelmente mais vantajosa e habitual, de modo que as dúvidas, em regra, envolvem o procedimento de execução da garantia e os riscos decorrentes de eventual inadimplência, sobretudo nos contratos que têm por objeto o financiamento de veículos, cuja taxa de insolvência é significativa.
O Decreto-Lei 911, de 1º de outubro de 1969, alterou a redação do artigo 66, da Lei 4.728, de 14 de julho de 1965, e, em seguida, as leis federais 10.931, de 2 de agosto de 2004, e 13.043, de novembro de 2014, estabeleceram regras a respeito do procedimento da alienação fiduciária, que facilitam a consolidação da garantia pelo credor.
Em síntese, o procedimento consiste, num primeiro momento, na comunicação formal do devedor quanto à sua mora, mediante o envio de carta registrada com aviso de recebimento ao seu endereço residencial, constante do contrato ou do seu cadastro atualizado, de acordo com o parágrafo 2º do artigo 2º do DL 911/69. Não é mais exigida a notificação pessoal do devedor, bastando a entrega da correspondência no endereço correto.
Notificado, ao devedor é facultado pagar as parcelas vencidas acrescidas dos encargos, restabelecendo-se, assim, a adimplência. Caso não seja purgada a mora, a lei autoriza que o credor considere, de pleno direito, vencidas todas as obrigações contratuais (antecipação integral do contrato), independentemente de novo aviso ou notificação.
Uma vez comprovada a não purgação da mora (artigo 3º do DL), o credor poderá requerer a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente. Apesar de, na prática, as instituições financeiras normalmente aguardarem o vencimento de três parcelas consecutivas (ou 90 dias) para, então, promover a busca e apreensão do veículo, a legislação não prevê um prazo ou número mínimo de parcelas em atraso como condição para a propositura da busca e apreensão. Para tanto, basta a comprovação da mora mediante notificação do devedor.
Preenchidos os requisitos, a busca e apreensão será concedida liminarmente, podendo ser apreciada, inclusive, em plantão judiciário. No prazo de cinco dias após executada a liminar, o devedor fiduciante deverá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na petição inicial, hipótese na qual o veículo lhe será restituído livre do ônus (artigo 3º, parágrafo 2º, do DL). Eventual abusividade deverá ser discutida posteriormente, quando da apresentação de defesa pelo devedor fiduciante, nos autos da ação busca e apreensão, ou em ação revisional autônoma.
Sendo esta a última oportunidade para reaver o bem, se não houver o pagamento integral do montante indicado pelo credor, cinco dias após a efetivação da liminar, consolidar-se-ão a posse e a propriedade plena do credor fiduciário.
O fato de o credor consolidar a propriedade da coisa em seu favor não ensejará, necessariamente, a quitação do contrato pelo devedor, pois o veículo pode não suprir a integralidade do débito. O credor fiduciário, então, atribui unilateralmente o valor do bem, abatendo-o do financiamento. Se apurar saldo positivo, ele devolverá a diferença ao devedor; se apurar saldo negativo, poderá cobrar a diferença do devedor.
Considerando que o montante é controvertido, já que apurado unilateralmente pelo credor, inexiste certeza e liquidez do título executivo (contrato), de forma que eventual cobrança do remanescente somente poderá ocorrer através de ação monitória ou de ação de conhecimento.
Nesse ponto, vale lembrar que legislação impôs um freio a essa imensa liberdade dada ao credor na indicação do valor remanescente do contrato. Se comprovada a abusividade na cobrança ou qualquer outra hipótese que resulte na improcedência da busca e apreensão, o credor pagará uma multa equivalente a 50% do valor do contrato (artigo 3º, parágrafo 6º do DL).
Outro ponto relevantíssimo refere-se à teoria do adimplemento substancial, segundo a qual o credor não poderia resolver a relação contratual se ao devedor restava apenas adimplir com uma ínfima parcela de suas obrigações. Tal teoria era amplamente aplicada pelos tribunais pátrios, que, com base nela, afastavam o direito do credor fiduciário à busca e apreensão do bem, remetendo a cobrança do saldo remanescente à ação adequada a esse fim. Entretanto, em 22 de fevereiro de 2017, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial 1.622.555/MG, alterou esse entendimento e decidiu pela inaplicabilidade da mencionada teoria no regime geral do DL 911 de 1969.
Em resumo, ainda que o contrato tenha sido substancialmente adimplido, se não cumpridos os exatos ditames da legislação em vigor, cujos procedimentos foram acima elucidados, o devedor perde o direito de quitar o contrato, reaver a posse e consolidar a propriedade em seu favor, arcando, ainda, com eventual saldo remanescente.
Fonte: Revista Consultor Jurídico