O Direito das Sucessões surgiu para garantir a continuidade do patrimônio através das gerações, mas sabemos que essa continuidade nem sempre é tranquila e muitas vezes a sucessão se converte em rompimento, originando verdadeiros dramas familiares. Em torno da herança surgem quizílias capazes de provocar a dissolução precoce da coesão da família, com repercussão direta nas relações patrimoniais. Não são poucas as empresas que feneceram em razão das disputas entre os herdeiros ou de sua inabilidade para gerir o patrimônio ou conduzir os negócios.
O planejamento sucessório advém, então, como uma necessidade premente nesse contexto, para prevenir ou minimizar litígios futuros e praticamente certos. As diversas ferramentas utilizadas nas operações de planejamento patrimonial e familiar em geral são capazes de fornecer respostas mais adequadas aos conflitos entre herdeiros do que as do Direito de Família e das Sucessões. A constituição de uma holding familiar, por exemplo, permite que se atribuam regras convivenciais mínimas, à medida em que os herdeiros são submetidos ao ambiente societário, estando obrigados a se comportar não mais como parentes, mas como sócios, respeitando as cláusulas de um contrato social e jungidos a resolverem seus conflitos pelas balizas do Direito Empresarial, nas quais estão previstos e disciplinados os procedimentos e as técnicas de composição de conflitos (autocomposição e heterocomposição).
Trata-se de “instrumento jurídico multidisciplinar” por envolver diversas áreas do Direito, que interagem para garantir o máximo de eficiência, agilidade e segurança na transferência do patrimônio de uma pessoa após a sua morte. É claro que se relaciona principalmente com o Direito das Sucessões. Mas não é só isso. Exige um diálogo com o Direito de Família, das Obrigações, Contratos, Empresarial e com o Direito Tributário.
É corrente a afirmação de que o planejamento sucessório pretende evitar disputas entre herdeiros, na maioria das vezes muito próximos, de maneira que é também uma afirmação do valor da família. Nessa perspectiva, Gladson Mamede e Eduarda Cotta Mamede chegam a dizer que “o planejamento sucessório, nesses casos, é um ato de amor”, de maneira que a “definição antecipada dos procedimentos de transferência da titularidade de bens, quando bem executada, cria um ambiente favorável à harmonia”[1].
Não obstante, o planejamento sucessório não se resume a essa função. Na verdade, o planejamento sucessório ganha destaque e importância atualmente, justamente porque se insere em um contexto muito mais amplo, visando atender a uma nova realidade social em que os institutos do Direito das Sucessões, isoladamente, não alcançam plenamente as aspirações sociais.
Jorge Duarte Pinheiro salienta que a matriz do Direito das Sucessões é ainda pré-industrial, própria de uma época em que o bem imóvel era o tipo mais significativo de riqueza. Todavia, hoje em dia, o tipo de riqueza que avulta é aquele que se constitui graças ao rendimento do trabalho[2].
Basta pensar na situação em que está presente uma complexidade de bens a transmitir, como uma empresa, ou mesmo uma complexa situação familiar do falecido, envolvendo famílias reconstituídas com filhos de outros matrimônios[3].
A dificuldade se coloca quer sob o prisma dos bens a transmitir, quer sob o prisma da designação dos herdeiros. De um lado, há uma gama de bens que serão transmitidos, não se esgotando na riqueza imobiliária, e de outro existe uma complexidade evidente nas relações familiares, diante da superação do monopólio da família matrimonial.
Emerge daí a necessidade de novos instrumentos ao alcance do planejamento sucessório. O negócio jurídico clássico e basilar do planejamento é certamente o testamento. Mas que pode não atender, de modo adequado, a diversas demandas do falecido e aspirações dos herdeiros, inclusive por se tratar de negócio jurídico unilateral. Por conta disso, no bojo do testamento há necessidade de se compor alternativas mais elaboradas, como é caso da distribuição da herança em legados, ao mesmo tempo em que é possível se pensar em outros negócios jurídicos, como doação, partilha em vida e usufruto, além dos instrumentos financeiros (trusts, planos de previdência complementar, seguros de vida etc).
Habitual e frequente, ainda, o recurso aos instrumentos societários (constituição de sociedade de participação ou holding, alterações em estatutos sociais, acordos de sócio, pactos parassociais etc).
É claro que em certas ocasiões todo esse ferramental deve ser utilizado concomitantemente, de modo a atender às expectativas do autor da herança e dos herdeiros. Por isso é que a operação de planejamento não é simples, até mesmo por seu caráter multidisciplinar.
O primordial é o ato de planejar, ou seja, a elaboração de um plano para a transmissão futura do acervo patrimonial. Entretanto, ocasionalmente, o planejamento sucessório pode não ser muito bem executado, resultando em uma inadequação entre os fins almejados e os meios utilizados e, por conseguinte, o indesejado conflito entre os herdeiros. A acurada observação das peculiaridades do caso concreto é fundamental para o seu sucesso, até mesmo porque os aspectos subjetivos podem ser relevantes e, inclusive, decisivos, como o afeto por determinada pessoa ou mesmo a confiança de que aquele outro parente terá a capacidade para bem gerir e dar continuidade aos negócios da família.
Nesses casos, arrisca-se a realizar um planejamento sucessório que não é ajustado à situação concreta, não atendendo aos fins propostos, apesar de não implicar em ofensa à lei. Simplesmente o planejamento não atendeu à vontade do autor da herança, não evitando o conflito entre os futuros herdeiros.
O planejamento sucessório deve ser efetuado nos limites legais, respeitando a legítima e a sua intangibilidade. O principal limite ao planejamento sucessório, além dos requisitos gerais de validade de todo e qualquer ato jurídico, a serem compulsoriamente observados, juntamente com as balizas da ordem pública, é a existência de herdeiros necessários por parte do autor da herança e, consequentemente, autor do próprio planejamento.
O desafio que se coloca, nessa perspectiva, é a utilização desse instrumento, levando-se em conta a restrição da legítima que — embora possa ser questionada doutrinariamente diante de todas as transformações da atual sociedade brasileira — não pode ser ignorada, sob pena de configurar fraude à lei ou mesmo abuso de direito.
Só assim o planejamento será capaz de trazer uma razoável segurança jurídica para o autor da herança e seus herdeiros, prevenindo e evitando conflitos futuros.
[1] MAMEDE, Gladston; MAMEDE, Eduarda Cotta. Planejamento Sucessório: introdução à arquitetura estratégica – patrimonial e empresarial – com vistas à sucessão causa mortis. São Paulo: Atlas, 2015, p. 8.
[2] PINHEIRO, Jorge Duarte. O Direito das Sucessões Contemporâneo. 2ª ed. Lisboa: AAFDL Editora, 2017, p. 28.
[3] Cf. MORAIS, Daniel de Bettencourt Rodrigues Silva. Revolução Sucessória: Os Institutos Alternativos ao Testamento no século XXI. Cascais: Principia, 2018, p. 16.
Mário Luiz Delgado é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro (IDCLB).
Fonte: Conjur