A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a cobrança de créditos não-tributários
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) surgiu com o advento da Lei 2.642, de 9 de novembro de 1955 [1], tendo sido modificada pelo Decreto-Lei 147, de 3 de fevereiro de 1967, ainda em vigor.
No entanto, é com promulgação da Constituição Federal de 1988 que a PGFN ganha novos contornos, com a sua mais nova e especial função: a competência para representar judicialmente a União, até então exercida pelo Ministério Público na execução da dívida ativa.
Assim, a Constituição Federal, em seu §3° do art. 131, determinou que a execução da dívida ativa de natureza tributária é de competência da PGFN, observado o disposto em lei.
Tal ato normativo é a Lei Complementar n. 73, de 1993, que em seus arts. 12 e 13 delimitou as competências da PGFN, quais sejam, a de controlar a dívida ativa da União de natureza tributária, representando privativamente a União em sua execução, bem como representar a União nas causas de natureza fiscal, além de servir como órgão de consultoria e assessoramento jurídico do Ministério da Fazenda e seus órgão autônomos e entes tutelados.
Também, foi mantida a atribuição da PGFN de apurar e inscrever em dívida ativa da União os créditos não-tributários (inc. II do art. 1° do Decreto-lei 147/67 c.c §2° do art. 39 da Lei 4.320/64), sendo estas apenas em relação ao crédito da Administração Pública Direta (art. 4° do Decreto-Lei 200, de 25 de fevereiro de 1967), não abarcando a Administração Indireta (autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas).
Concretamente, com os dados de maio de 2018, a PGFN cobra 14.943.392 inscrições no valor total de R$ 1.939.949.776.517,46 (quase dois trilhões de reais) de créditos tributários. Já no que tange aos créditos não tributários, são 2.129.667 inscrições totalizando R$ 132.988.198.454,34 (pouco mais de cem bilhões de reais).
Veja-se que a dívida ativa tributária representa 93,5% dos débitos em cobrança pela PGFN, enquanto a dívida ativa não-tributária totaliza apenas 6,5%. No entanto, em relação à quantidade de inscrições cobradas, a dívida tributária é de 86%, enquanto a não-tributária sobe para 14%.
O grande ponto de distinção, além dos foros descentralizados [2], é a especificidade do crédito tributário, tendo todas as prerrogativas basilares no Código Tributário Nacional – CTN (Lei 8.172/66), gozando de muitas outras, dentre eles a mais famosa (e também a mais polêmica): o acesso a dados bancários dos contribuintes sem necessidade de autorização judicial, conforme a LC 105/01.
Já no que tange ao crédito não-tributário, a importância não está vinculada ao funcionamento do próprio Estado, por isso mesmo, não goza dos mesmos privilégios e prerrogativas do crédito tributário, estando vedada à PGFN a utilização de dados que tem acesso na cobrança destes tipos de créditos.
Assim, a PGFN vem se especializando cada vez mais em sua atuação principal: a cobrança de créditos tributários, criando procedimentos e sistemas eletrônicos, firmando diversos convênios com órgãos de inteligências, para trazer maior eficiência à recuperação deste crédito, que, por sua própria natureza, tem como finalidade assegurar recursos à consecução de políticas públicas.
No entanto, com os recursos limitados que tem, o gasto de energia com a cobrança de dívida ativa não-tributária impede que a eficiência seja aumentada, pois há um grande gargalo na atuação da PGFN, já que ela não pode usar toda a sua expertise e ferramentas, ante o não privilégio de tais créditos públicos. Ademais, os maiores devedores de créditos tributários utilizam do chamado “planejamento tributário”, cada vez mais especializado e complexo, cuja fronteira entre elisão e evasão é muitas vezes ultrapassada, consumindo uma parte preciosa do tempo e do orçamento para descortinar as atividades ilegais.
Também, os incontáveis órgãos da Administração Direta que encaminham créditos não-tributários para a cobrança não estão preparados para seguir a rotina da celeridade da inscrição em dívida ativa da União estabelecida pela PGFN, ante a sua especialização e sintonia com a Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), que caminham conjuntamente para diminuir a evasão e sonegação fiscal e a promoção da justiça fiscal.
Some-se a isso a alteração legislativa (Lei 13.043/14) que revogou a suspensão da prescrição dos créditos não-tributários (Súmula Vinculante 08) de baixo valor (parágrafo único do art. 5° do Decreto-Lei 1.569/77), assim considerado pelo Ministro da Fazenda (Portaria MF 75/2012).
Ainda, com o art. 20-C da Lei 10.522/02, a PGFN agora pode ajuizar apenas execuções que tenha probabilidade de satisfação do crédito, sendo que o Procurador-Geral da Fazenda Nacional poderá definir limites, critérios e parâmetros para tanto, que, tal como já realizado pelo Ministro da Fazenda, na Portaria MF 75/2012, levará em consideração a importância dos créditos tributários, fazendo com que os demais sejam inseridos nesta lógica, afetando a sua própria arrecadação, em razão da quantidade de débitos existentes e de sua finalidade não prioritária frente aos fiscais.
Inegável, portanto, que a PGFN necessita se especializar cada vez mais na administração e cobrança dos créditos com natureza tributária, mormente pelo seu mote constitucionalmente determinado.
De outro lado, a Lei 10.480/02 criou a Procuradoria-Geral Federal (PGF), que unificou a representação judicial e extrajudicial das autarquias e das fundações públicas federais, exceto o Banco Central.
Entre suas atribuições está a de inscrever em dívida ativa e a de cobrar os créditos não-tributários de autarquias ou de fundações públicas federais (art. 10 da Lei 10.480/02 c.c art 17 da LC 73/93).
Passados mais de 16 anos, houve a implementação da PGF, conseguindo convergir de forma eficiente e com qualidade a representação judicial e extrajudicial, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico, e a apuração da liquidez e certeza dos créditos, inscrevendo-os em dívida ativa e realizando a respectiva cobrança de mais de 154 entidades (Portaria PGF 530, de 13 de julho de 2007, atualizada pela Portaria PGF 866, de 01 de novembro de 2012).
A PGF, naquele momento que estava sendo criada, não poderia já ter a competência da administração de toda a dívida ativa não-tributária. Foi necessário ser instalada, crescer e solidificar-se, o que a tornou um dos órgãos vinculados à Advocacia Geral da União – AGU – altamente qualificados para a assunção na atualidade do gerenciamento de toda a dívida não-tributária da União [3], sendo que, em 2005, gerenciava 75,5 mil créditos inscritos em dívida, totalizando R$ 2,5 bilhões.
A lógica é simples: se dois órgãos estão fazendo a mesma coisa, é evidente que se está tendo gastos dúplices totalmente desnecessários. A especialização, por sua própria natureza, implica que cada um faça exclusivamente algo que o outro órgão não faz, mesmo que pudesse, para que as energias sejam equalizadas ao ponto de se chegar a sua máxima efetividade.
Note-se que a Procuradoria-Geral da União (PGU) não tem qualquer competência para inscrever em dívida ativa e/ou cobrar tais créditos, sejam eles tributários ou não. Portanto, falta-lhe expertise para tanto, mesmo que o ideal fosse a consecução da representação judicial da União antes e depois da inscrição em dívida ativa não-tributária, conferindo-lhe a atribuição de apuração e administração de tais débitos.
Ademais, a PGU está presente em apenas 68 cidades [4]. Já a PGF está instalada em 180 municípios [5].
À luz deste cenário, tal como ocorreu em 2002, é necessário que seja realizada experiência transitória.
Mas como se fazer?
A primeira maneira é através de delegação de competência à PGF para a inscrição em dívida ativa dos créditos não-tributários, exceto aqueles oriundos do Ministério da Fazenda, para cobrança e representação judicial e extrajudicial, no mesmo molde realizado com a Caixa Econômica Federal – CEF, para os débitos do Fundo de Garantia do Tempo de serviço – FGTS (art. 2° da Lei 8.8844/94), e com a própria PGF, de débitos tributários reconhecidos por sentença trabalhista (art. 16, §3°, inc. II da Lei 11.457/07).
Como segunda hipótese, é a alteração da própria competência, modificando-se o inc. II do art. 1° do Decreto-Lei 147/67, para suprimir a expressão “ou de qualquer outra natureza”, conferindo à PGF, por meio da remodelação do art. 10 da Lei 10.480/02, a competência para apurar a liquidez e a certeza de todos os créditos não-tributários da União, exceto os provenientes do Ministério da Fazenda, e para realizar a cobrança e a representação judicial e extrajudicial referente a tais créditos.
Em relação à transição, a expertise adquirida pela RFB e pela PGFN quando da transferência da competência do INSS, pela Lei 11.457/07, deverá ser utilizada, para que possa ser realizada tal delegação ou alteração de competência da forma que maximize a eficiência e celeridade, com a racionalidade e economicidade necessárias à recuperação do crédito público.
Devemos, portanto, melhorar cada vez mais a utilização do precioso recurso público, transformando a prestação do serviço, para que se possa alcançar o ápice de suas possibilidades, com a utilização de todos os recursos já à disposição, sem a necessidade de se tentar tirar leite da pedra, pois a organização bem estruturada faz surgir naturalmente a eficiência.
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[1] A Lei 12.636/2012 instituiu o dia 07 de março como o Dia Nacional da Advocacia Pública, em homenagem ao dia 7 de março de 1609, quando foi criado o cargo de Procurador dos Feitos da Coroa, da Fazenda e do Fisco, na época do Brasil-Colônia, função essa originou os atuais cargos dos advogados da União, procuradores federais, procuradores da Fazenda e procuradores do Banco Central
[2] Os créditos tributários, exceto aqueles apurados por sentença trabalhista (inc. VIII, art. 114, CF), são cobrados, atualmente, apenas na Justiça Federal (a Lei 13.043/14 revogou a competência delegada à Justiça Estadual de ações de execução federal existente no inc. I do art. 15 da Lei 5.010/66). Já os créditos não-tributários são cobrados na justiça de pertinência, p.ex. multa eleitoral é competência da Justiça Eleitoral; multa trabalhista é competência da Justiça Trabalhista, etc. Pontua-se, no entanto, que há delegação de competência da PGFN para a Procuradoria-Geral Federal para a inscrição e cobrança das contribuições previdenciárias decorrentes da Justiça do Trabalho (art. 16, §3°, inc. II da Lei 11.457/07 c.c. Portaria Conjunta PGF/PGFN/PGU nº 40 de 26/02/2010)
[3] Atualmente, dentro do Sistema AGU de Inteligência Jurídica – SAPIENS, que é o sistema de processo administrativo eletrônico adotado pela Advocacia-Geral da União, tem o módulo de Dívida Ativa da PGF, desde 2016, possibilitando a consolidação da gestão de todos os créditos inscritos em Dívida Ativa em nome das autarquias e fundações públicas federais, que antes era feita de forma descentralizada
[4] Divididas em Procuradorias Regionais da União, Procuradorias da União nos Estados e Procuradorias Seccionais da União (em relação aos órgãos de execução)
[5] Divididas em Procuradorias Regionais Federais, Procuradorias Federais nos Estados, Procuradorias Seccionais Federais, Escritórios de Representação, Escritórios Avançados e Procuradorias Federais junto às autarquias e fundações públicas federais (em relação aos órgãos de execução)
EDUARDO SADALLA BUCCI – Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (2017). Pós-graduado lato sensu em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2011). Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2008). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Direito Tributário, Direito Processual Civil e Hermenêutica Jurídica. Procurador da Fazenda Nacional (2013)
Fonte: Jota