Uniões com cônjuges menores de idade, sobretudo, mulheres, não são tão raras no Ceará. Os efeitos sociais e psicológicos dos matrimônios prematuros preocupam.
A prática não é recente. Muito menos desconhecida. Mas, apesar de problematizada mundo afora, no Brasil, é "naturalizada" culturalmente, dentre outros motivos, por compor o imaginário dos processos de constituição de diversas famílias. Em alguns casos, basta lembrar de como começou o casamento dos avós. Uma adolescente unida a um marido, muitas vezes, bem mais velho. Menores de idade experimentando responsabilidades e consequências do casamento precoce. Os sins ditos por quem ainda não chegou à vida adulta, diferentemente do que se pode imaginar, não são tão raros hoje no Ceará. Uniões prematuras marcadas por efeitos físicos, sociais, psicológicos e emocionais.
Apesar da ausência de pesquisas específicas sobre a questão no Estado, os dados do Registro Civil do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ilustram a realidade. Atualizadas até 2016, as informações sistematizadas pelo Diário do Nordeste, demonstram que, neste ano, dos 43.907 casamentos no Estado, 5.835 foram com esposas com 19 de anos ou menos.
O IBGE separa os registros por faixa etária. Dentre elas, há duas específicas sobre esse cenário. As que incluem cônjuges que têm entre 15 e 19 anos e as que têm menos de 15 anos de idade. Dados de 2016, sobre as cônjuges apontam que, do total de casamentos no Estado, em 13% as mulheres eram adolescentes.
Legislação
No Brasil, o Código Civil (Lei 10.406/2002) permite que adolescentes possam casar a partir dos 16 anos, com o consentimento dos pais ou de um juiz. Em caso de gravidez, não há limite mínimo de idade estabelecido. Um projeto de lei tramita no Senado Federal para tentar proibir o casamento de menores de idade, pois a permissão fere a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), ratificada pelo Brasil em 1990. A proposta quer suprimir justamente os trechos do Código Civil que autorizam a união com menores de idade.
As uniões precoces, apontam entidades que atuam pela proibição da prática no Brasil, têm um forte recorte de gênero, pois, embora gerem impactos para todos aqueles que escolhem casar ainda adolescentes, os índices demonstram que essa realidade envolve muito mais mulheres do que homens.
As estatísticas do IBGE confirmam que, nas uniões realizadas no Estado, enquanto o índice de esposas com menos de 19 anos chegou a 13% do total em 2016, o número de maridos com esta idade ou menos era apenas 3,6% do total.
Na série histórica de 10 anos - entre 2007 e 2016 - os registros reduziram, conforme dados do IBGE. Enquanto em 2007, os matrimônios cujo a noiva tinha 19 anos ou menos eram 19,5% do total, em 2016, caiu para 13%.
No caso dos noivos adolescentes, o índice variou de 5,8% do total em 2007, para 3,6% em 2016. Nesses 10 anos, o IBGE contabilizou, no Ceará, 110 casamentos nos quais as noivas tinham menos de 15 anos e 20 com noivos adolescentes.
Vivências
Dentre esses casamentos, está o da jovem Dayane Cristiane Costa Menezes, formalizado em outubro de 2015, quando ela tinha apenas 17 anos. Hoje, com 19 anos, Dayane, moradora do bairro Ellery, em Fortaleza, tem um filho de 4 meses. A vontade de casar "brotou", conta, logo que começou a namorar Bruno Henrique. Na época ela tinha 15 anos e ele 19. "A gente sempre falava. Quando eu fiz 17, ele me pediu em casamento. Eu queria. Então decidimos casar", explica.
Os pais de Dayane, segundo ela, não se opuseram à formalização da união. A eles coube autorizar no cartório o casamento civil. "Quando eu disse que ia casar, as pessoas ao redor disseram que era muito nova. Ficaram impressionadas. Quando casamos, eu cursava o Ensino Médio ainda. Foi bem complicado conciliar. Porque a gente se gosta, mas tem as responsabilidades da casa. Tem que pagar contas. Depois do bebê, ficou bem mais difícil", conta.
Dayane explica que antes de ser mãe, dava aulas de balé. Hoje, os cuidados com o bebê a impedem de trabalhar fora de casa. A renda para a sobrevivência da família é oriunda exclusivamente do trabalho do marido. A casa em que residem é cedida pela mãe do esposo.
"Eu vejo que a gente casou um pouco despreparado. Depois que a gente casa, tem muita cobrança. Inclusive para ter filhos. Mas a gente se ajudou a crescer. Meu marido se formou recente. A gente se ajuda e está sendo bom porque a gente está crescendo juntos", ressalta.
Falta de estudos
No Brasil, apesar dos casamentos precoces serem culturalmente e legalmente aceitos e por isso também não serem tão escassos, o assunto ainda não conta com pesquisas específicas. Um relatório do Banco Mundial, divulgado em 2017 apontou que, no País, três milhões de jovens de 20 a 24 anos casaram antes da maioridade. Esse número é o maior da América Latina e o quarto mais alto do mundo em valores absolutos.
Uma pesquisa pioneira foi feita pelo Instituto Promundo - Organização Não Governamental (ONG) que atua com a promoção da equidade de gênero no País - em 2015. Segundo o estudo, as práticas de casamento na infância e adolescência na América Latina contrastam com as dinâmicas mais ritualizadas de outros ambientes, como no Sul da Ásia e na África Subsaariana. Mas, no Brasil, essas uniões são percebidas pelas próprias mulheres ou familiares como alternativas estáveis de proteção, em contextos de insegurança econômica e oportunidades limitadas.
Gravidez gera evasão escolar
No Ceará, onde a taxa de evasão escolar no Ensino Médio é 6,6%, uma das principais causas para esse problema é a gravidez na adolescência, explica a coordenadora de Gestão Pedagógica da Secretaria de Educação do Estado (Seduc), Iane Nobre. As gestações precoces, atreladas a fatores, como: afastamentos da escola por ingresso no mercado de trabalho, envolvimento com drogas e a inadequação sentida pelos adolescentes nas escolas, provocam os índices de evasão.
"Não temos um levantamento específico sobre gravidez na adolescência, mas temos muitas escolas fazendo projetos e pesquisas que detectam que esse problema está instalado. A escola tem que tentar evitar, desenvolvendo a educação sexual. Falando sobre o sexo responsável. Não tem como falarmos do 'não sexo'. O sexo faz parte da vida dos adolescentes", esclarece. Segundo ela, cerca de 200 escolas estaduais têm um projeto chamado Núcleo de Trabalho Pesquisa e Práticas Sociais, que tem a gravidez como um dos focos.
Iane ressalta que as atividades são preventivas, mas, quando as adolescentes engravidam, "a escola tem que oferecer todas as condições para que elas não desistam", diz. Apesar da tentativa de acolhimento, em geral, explica, as adolescentes sentem muita dificuldade de retornar para a escola. "Quando a criança nasce, fica muito difícil. É muita responsabilidade", diz.
Os riscos para o corpo ainda em transformação
Dentre o universo de mulheres que engravidaram em 2017, no Ceará, 17,8% tinham entre 10 e 19 anos, segundo dados da Secretaria da Saúde (Sesa). Este índice é menor do que os registrados em anos anteriores, mais ainda é elevado, avalia a assessora técnica do Núcleo da Saúde da Mulher, do Adolescente e da Criança da Sesa, Márcia Lessa Fernandes.
De acordo com ela, a gravidez na adolescência impacta as jovens tanto psicologicamente como social e fisicamente. Um dos riscos é a prematuridade dos bebês, que está ligada às mães adolescentes. Além disso, explica Márcia, muitas dessas gestações não são planejadas ou são indesejadas.
"Na parte física, é preciso entender que essas adolescentes estão em transformação no desenvolvimento biológico. No aspecto social, essa gravidez resulta, muitas vezes, em abandono escolar e baixa escolaridade por parte delas. O acesso termina sendo mais difícil", afirma Márcia. Ela também esclarece que os adolescentes que começam a vida sexual muito cedo, ficam vulneráveis a vários riscos, com as DSTs.
Repercussões sociais, familiares e pessoais
Os casamentos precoces trazem repercussões sociais, familiares e pessoais para os homens e mulheres na adolescência, reforça o professor da Universidade de Fortaleza (Unifor) e psicólogo clínico com ênfase em acompanhamento, tratamento e prevenção psicológica com casais e família, Álvaro Rebouças.
Segundo ele, nos rapazes, a experiência precoce pode pressupor assumir o papel de marido, de pai e de provedor da família do qual não estará preparado para vivenciar nesta fase da vida.
"Provavelmente seguirá a ordem social patriarcal para o gênero masculino de obrigatoriedade de ser o representante social da família, o dominador das mulheres e o homem 'forte' sem sofrimentos ou o papel de filho dependente dos pais", explica.
Já para as mulheres, afirma, esse tipo de casamento pode representar um grande trauma pela expectativa romântica ou libertária associada. A rotina de muitas tarefas e atividades domésticas e profissionais no casamento precoce, explica, poderá concretizar, para a adolescente, a frustração e o cerceamento da liberdade de ser mulher, pois terá que assumir papéis em que as exigências sociais e familiares são grandes.
Julgamentos e estigmatizações, alerta Álvaro, podem ser um duro golpe na estima e na autoimagem. Possíveis diagnóstico de transtorno de ansiedade, de humor, estresse pós-traumático, diz, podem estar associados à vivência conjugal devido à relação assimétrica baseada na compreensão patriarcal de dominação sobre a mulher, mesmo entre adolescentes.
Fonte: Diário do Nordeste