A propriedade é o mais sólido e importante dos direitos reais elencados no artigo 1.225 do Código Civil. Nas palavras de Cintia Maria Scheid, “com uma abordagem individualista e absoluta do proprietário em relação ao bem, a propriedade chegou a ser consagrada como direito sagrado e inviolável na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, influenciando a ordem jurídica de maneira contundente, e servindo de base para o Estado Liberal, sendo seus reflexos sentidos até hoje” (2017, p. 423 – 454). Pode-se dizer, nesse sentido, que se trata de fator determinante na formação das sociedades, ainda que a natureza “absoluta” tenha passado a ser indiscutivelmente relativizada em decorrência da função social inerente à propriedade prevista no inciso XXIII, artigo 5º da Constituição Federal.
Ademais, apesar dessa natureza individualista, o direito real de propriedade de bens imóveis pode, perfeitamente, ser exercido por mais de uma pessoa ao mesmo tempo, estabelecendo-se entre elas uma relação de condomínio. Segundo o notável civilista Caio Mário, há condomínio quando “a mesma coisa pertence a mais de umas pessoa, cabendo a cada uma delas igual direito, igualmente, sobre o todo e cada uma de suas partes” (2002, p. 175). No ordenamento pátrio, essa relação condominial é regulada pelo artigo 1.314 e seguintes do Código Civil.
Importante observar que os condôminos possuem direitos qualitativamente iguais sobre a coisa, exercendo seu direito sobre a integralidade do bem, ainda que cada um possua uma fração ideal sobre o todo. Nota-se, portanto, que o direito de propriedade — que se manifesta pelo exercício do uso, fruição e disposição — é exercido ao mesmo tempo por todos os coproprietários da coisa.
Há, contudo, a possibilidade de repartir o exercício do uso e da fruição por cada um dos coproprietários, durante período de tempo pré-fixado, sucessivo e proporcional à fração ideal que possui.
Esse instituto é intitulado de multipropriedade, melhor chamada de propriedade fracionada por período de tempo, e não é novidade no Direito brasileiro. A bem da verdade, a modalidade surgiu na Europa em meados do século XX (Chalhub, 2017).
O tema da multipropriedade já foi, inclusive, objeto de pronunciamento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Recurso Especial 1.546.165/SP. Nesse recurso, ficou reconhecida a natureza de direito real dessa modalidade de exercício da propriedade — uma vez que há relação de cada proprietário diretamente com a coisa —, e não uma relação contratual mantida entre os coproprietários. Em que pese ao pronunciamento do STJ sobre o assunto, esse julgamento não sanou todas as dúvidas existentes quanto ao instituto.
Com o objetivo de preencher a lacuna legislativa ainda existente, foi editado o Projeto de Lei do Senado 54 de 2017, de autoria do senador Wilder Morais, que dispõe sobre o regime jurídico da multipropriedade. O PLS 54/17 já foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e aguarda o fim do processo legislativo para que seja, eventualmente, sancionado e então entre em vigor.
O projeto confirma o que já havia sido aceito pelo próprio STJ e pela doutrina: a possibilidade de constituição de um condomínio voluntário pró-indiviso, dividindo o exercício da propriedade por meio de fracionamento do tempo.
No artigo 1º do projeto de lei, a multipropriedade é definida como “relação jurídica que traduz o aproveitamento econômico de uma coisa imóvel em unidades fixas de tempo, visando à utilização exclusiva de seus titulares, cada qual a seu turno, ao longo das frações temporais que se sucedem”.
Em complementação, o parágrafo único determina que o “condomínio geral e voluntário ou o condomínio edilício pode ser instituído em regime de multipropriedade, destinada ou não a fins de lazer ou de turismo, em relação à parte ou à totalidade de suas unidades autônomas”.
Ainda que seja uma propriedade fracionada por período de tempo, o condomínio continua sob a regulação do Código Civil, inclusive no que concerne ao direito de preferência para a locação, presente na parte final do artigo 1.323 do CC. O referido artigo dispõe que, “resolvendo alugá-la, preferir-se-á, em condições iguais, o condômino ao que não o é”.
Na lição do desembargador Francisco Eduardo Loureiro, a ratio dessa norma advém do fato de que, supostamente, o condômino zelará melhor pelo bem do qual é proprietário, além de garantir com seu quinhão o pagamento dos aluguéis que eventualmente sejam inadimplidos (Loureiro et al., 2017, p. 1247-1265).
A preferência do artigo 1.323 do CC não se confunde com o direito de preferência na alienação disposta no artigo 15 do PLS 54/2017, que, apesar de não ser obrigatório, pode ser regulado pelo ato constitutivo do condomínio.
Ademais, é de grande importância ressaltar que essa preferência apenas existe quando há interesse em alugar para terceiros alheios ao condomínio, não se aplicando às locações entre os próprios condôminos.
Dessa forma, resumidamente, em um condomínio cujo exercício da propriedade do bem imóvel se dá de forma fracionada no tempo, um condômino por vez, deve ser respeitado o direito de preferência para locação, oferecendo a oportunidade aos demais condôminos antes de oferecer a terceiros, aplicando-se o artigo 1.323 do CC.
Referência
CHALHUB, Melhim Namem. Multipropriedade – Uma Abordagem à Luz do Recurso Especial 1.546.165-SP. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, n. 82/2017, p. 71-86, jan/jun. 2017.
LOUREIRO, Francisco Eduardo. Art. 1.196 a 1.510-A — Coisas: Do Condomínio Geral. In: Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. et al: PELUSO, Cesar (Org.). 11ª. ed. São Paulo: Manole, 2017. p. 1247-1265.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 18 ed. Rio de Janeiro, Forense, 2002. v. IV.
SCHEID, Cintia Maria. O Princípio da Função Social da Propriedade e sua Repercussão na Evolução da Regularização Fundiária Urbana no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, n. 83/2017, p. 423 - 454, jul/dez. 2017.
Eduardo R. Vasconcelos de Moraes é advogado especialista em Direito Imobiliário pela FGV-SP.
Fonte: Revista Consultor Jurídico