Em uma manhã chuvosa de segunda-feira, em Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte, a jovem Rosana (nome fictício) ouve da filha de apenas 10 anos a indagação: “Mamãe, você é prostituta?”. A dona de casa se assusta com a pergunta, tenta se acalmar e questiona o motivo da dúvida. A criança, com os pais recém-divorciados, então conta que, no fim de semana em que ficou na casa do genitor, o ouviu diversas vezes dizer que a mãe dormia com vários homens e ganhava dinheiro se prostituindo.
Era mentira, mas a dona de casa descobriu que a afirmação foi feita de forma sistemática e por várias semanas seguidas com a intenção de que filha não quisesse mais usufruir da guarda compartilhada com a mãe. A farsa contada pelo pai não difere de outras propagadas após as diversas disputas em uma separação judicial. Aconteceu com Rosana, mas os alvos são também Marias, Robertas, Joanas, e ainda Paulos e Josés – homens e mulheres que trocam acusações e ofensas diante de crianças e adolescentes, mas podem ser punidos pela lei por praticarem a chamada alienação parental.
O termo se popularizou à medida que essa prática se tornou conhecida, e o ato de um genitor tentar impedir a boa relação do filho com o outro resultou na sanção da Lei 12.318/2010, conhecida como Lei da Alienação Parental. A dona de casa Rosana conversou com a filha, conseguiu mostrar a verdade dos fatos e pensou, com base na lei, em acionar o ex-marido na Justiça. Desistiu, mas ele poderia ser punido com multa ou até a perda da guarda.
“O que mais causa dor e sofrimento nos filhos são as disputas intensas dos pais em período de separação”, conta a coordenadora do setor de Mediação do Centro Judiciário de Solução de Conflitos (Cejusc), Cleide Rocha de Andrade, da Comarca de Belo Horizonte.
HOMENS TAMBÉM SOFREM
Não só as mulheres são alvos desse tipo de desqualificação. A questão não é de gênero. O artista plástico Paulo (nome fictício), por exemplo, sofreu com uma das mais cruéis vertentes da alienação parental e chegou a criar duas exposições de arte para expressar o sofrimento pelo que passou. Em 2013, sua ex-esposa fez uma denúncia falsa, na qual o acusava de ter abusado sexualmente da filha.
Foram nove meses tentando provar na Justiça sua inocência até conseguir as primeiras visitas monitoradas acompanhadas por especialistas. O artista enfrentou processos, encarou exames psicossociais e testes psicológicos e, depois de um ano, conseguiu ter de volta o direito da guarda compartilhada.
O artista plástico produziu esboço especialmente para a Revista Plural onde faz referências às suas exposições que demonstravam a dor vivenciada ao ficar longe da filha. "O que seria da música sem o som?", questiona.
“Ficou comprovado inclusive por laudos periciais que não houve nenhum abuso. Foi simplesmente uma estratégia terrível usada pela ex-esposa para me afastar da minha filha de apenas três anos de idade. Os especialistas chegaram a relatar que esse tipo de denúncia é a pior forma de alienação parental”, ressaltou o artista. E denúncia falsa é crime.
As obras das exposições foram criadas sob forte emoção e mais de 4 mil pessoas visitaram as duas mostras, realizadas em diversos pontos da capital mineira, inclusive no Palácio das Artes e no Fórum Lafayette. Ele criou um desenho especialmente para ilustrar esta reportagem, inspirado nas obras que concebeu na época em que ficou afastado da filha.
O relato do engenheiro civil e psicólogo Guido Ferraz também causa perplexidade. Ele faz questão de se identificar nesta reportagem, pois está há 14 anos afastado da filha. Tentou diversas vezes uma aproximação, mas ela não quer vê-lo mais. O pai sabe apenas que a ex-esposa o desqualificou perante a então menina, hoje adulta, mas nem sequer conhece o conteúdo das acusações.
“Toda reconciliação que tento, ela se afasta. Tomei conhecimento de que ela se casou, mas nem mesmo fui convidado”, relata entristecido, admitindo que a ex-esposa atingiu o objetivo de separá-lo da filha. Mas o engenheiro não desistiu. Ele buscou sem sucesso amigos próximos, alguns conhecidos em comum, programas da Justiça e hoje está inserido em uma iniciativa do Ministério Público mineiro que tenta restaurar vínculos familiares . Sonha com um final feliz.
“Até hoje, com 33 anos de idade, tenho dificuldades de me relacionar com namorados e sinto certa insegurança no mercado de trabalho. Descobri depois de muito tempo, com terapia e psicanálise, que eram consequências da alienação parental.” O relato da advogada Marília Gonzaga mostra que as crianças e os adolescentes sob o fogo cruzado de ofensas e acusações entre pai e mãe em processo de separação sofrem implicações na infância e também na vida adulta.
Profissional do direito, ela conta que optou por nunca atuar na área de família por causa das experiências dolorosas que viveu no período da separação dos pais. “Os dois estavam sofrendo com o afastamento um do outro e, muitas vezes, praticavam a alienação parental até inconscientemente. Não se seguravam e acabavam falando mal do outro na minha frente ou perto de mim. Eles não estavam dando conta da separação por causa de tanta angústia e preocupações”, diz ela.
Os especialistas concordam. Uma separação conjugal gera sentimentos como ansiedade, depressão, raiva, culpa, alívio e sensação de vulnerabilidade. “Além disso, é preciso lidar com questões legais, perda de expectativas e esperanças, mudança de rotina, mudanças sociais e no papel parental, sem contar as alterações na relação com amigos e parentes”, destaca a mediadora de conflitos do Cejusc-BH, Julieta Ribeiro.
PRIMEIRA INFÂNCIA
“Carregava uma sensação de culpa e uma enorme insegurança ao lidar com meus pais no dia a dia, apesar do amor que eles me davam. Eu tinha medo de fazer algo para agradar um e desagradar o outro. Fui mediadora a vida inteira e sofria ao ouvir meu pai desqualificar minha mãe ou vice-versa. Atualmente, sinto o reflexo de tudo isso que aconteceu na minha primeira infância”, conta a advogada.
A estudante de educação física Paula Esteffane, hoje com 27 anos de idade, também não consegue se desvincular do passado. Após a separação conjugal, foi praticamente abandonada pelo pai entre 6 e 10 anos de idade. Ainda criança, ouvia sempre a mãe dizer que o genitor “não estava nem aí para ela”, entre outras queixas.
“Eu odiei meu pai por muito tempo. Tudo ainda hoje fica remoendo e eu não consigo conversar muito sobre isso. Morei com minha avó, ela me incentivava a procurá-lo, mas minha mãe fazia o contrário, sempre. Ele nem sequer foi ao meu casamento”, relembra. Só depois de adulta é que a jovem percebeu que a história tinha outra versão e passou a rever o pai esporadicamente.
O alienador costuma apresentar características como manipulação e sedução, baixa autoestima e dificuldades em respeitar regras, conta o psicólogo Milton de Oliveira. A alienação parental foi estudada pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner, que, em 1985, propôs o termo Síndrome da Alienação Parental (SAP).
Segundo ele, a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida por um dos pais, avós ou outra pessoa próxima, causa apego excessivo a um dos genitores e certo desprezo pelo outro, sem justificativa aparente, mas o filho apresenta forte temor e ansiedade em relação a isso.
Na Justiça, é responsabilidade do magistrado avaliar estudos e diagnósticos de psicólogos e assistentes sociais para decidir se houve a prática da alienação parental. O juiz analisa também documentos do processo e todas as informações que demonstram a conduta dos pais e o comportamento da criança.
“O diagnóstico para avaliar se houve ou não alienação é complicado. Existe uma multiplicidade de comportamentos que pode ou não identificar um alienador. É difícil também porque essas situações ocorrem no ambiente familiar”, explica o juiz coordenador do Cejusc-BH, Renan Chaves Carreira Machado.
“Normalmente, um psicólogo é nomeado no processo, perícias são realizadas ou os autos são encaminhados para a central de estudo psicossocial. São casos raros nos quais é mais difícil atuar, em função da complexidade do tema”, complementa a juíza da 9ª Vara de Família da capital, Jaqueline Calábria Albuquerque. Para ela, é realmente penoso buscar solução para um caso comprovado.
Em Minas Gerais, é possível dar entrada na Justiça com uma ação própria de alienação parental. O magistrado também pode analisar o tema se ele surgir como uma questão incidental em processos de divórcio, dissolução de união estável ou pensão alimentícia. “Boa parte dos divórcios litigiosos e dissolução de união estável litigiosa têm uma alienação parental embutida. Quando o casal não consegue se comunicar por causa do término da relação, normalmente, envolvem os filhos no conflito”, explica o juiz da 5ª Vara de Família de BH, Clayton Rosa de Rezende. E os números aumentaram exponencialmente. Em 2017, praticamente dobrou a quantidade de processos no Estado. Foram 1.042 ações em 2017, contra 564 em 2016, somando todas as comarcas de Minas. Em Belo Horizonte, o número também saltou de 110 para 222. Isso, levando-se em conta só os processos que foram cadastrados com a classe “alienação parental”.
Para os especialistas da área de família, o aumento sinaliza um crescimento da conscientização sobre o problema. “Ano a ano o tema está sendo mais debatido nas faculdades, na imprensa e no próprio Judiciário. O aumento de ações comprova que os pais alienantes estão correndo o risco de serem punidos judicialmente”, diz o advogado gaúcho Ayrton Cleudes Viana.
Não são raros casais recém-separados ou em processo de divórcio que enfrentam dificuldades de convivência entre si ou com os filhos. Como consequência de um projeto que faz parte da política de pacificação social do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Tribunal de Justiça mineiro criou a oficina de parentalidade, oferecida pelo Cejusc de Belo Horizonte.
O serviço é gratuito e oferecido tanto às pessoas que já têm processos judiciais em tramitação quanto àquelas que ainda não ajuizaram uma ação. O curso é pensado para auxiliar pais e filhos a lidar melhor com o processo de divórcio e, assim, evitar os danos da alienação parental. Com os encontros, pretende-se poupar os filhos pequenos e adolescentes dos possíveis conflitos típicos do fim de relacionamentos e mostrar que a família não acaba com o fim do vínculo conjugal. A oficina é conduzida por psicólogos e assistentes sociais capacitados em mediação de conflitos.
“O divórcio não extingue a família, apenas modifica o seu formato. Com as oficinas, ajudamos esses pais e filhos que estão em processo de transição a evitar mais conflitos”, sintetiza a mediadora do Cejusc-BH, Fátima Salomé.
Fonte: TJMG