Em 01 de março de 2018, no julgamento da ADI 4275, o plenário do Supremo Tribunal Federal – STF, por maioria de votos, decidiu pelo reconhecimento aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo, diretamente no registro civil.
A referida decisão logo ganhou espaço na mídia, gerando grandes discussões acerca de suas repercussões na socidade brasileira, notadamente, no mundo acadêmico e entre os profissionais do Direito que de certo modo, ainda, estão assimilando os efeitos práticos do mencionado julgamento.
Aqueles favoráveis ao entendimento esposado pelo STF comemoraram a decisão, sustentando que o julgado está em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que coíbe o preconceito e a discriminação à opção gênero, decorrente do direito fundamental de autodeterminação.
Noutra banda, há aqueles que defendem que a referida decisão apresenta incongruência com o ordenamento jurídico vigente e acarreta insegurança nas relações humanas. Apontam, por exemplo, que a pessoa cisgênero para poder alterar apenas o nome, como regra, necessita justificar as suas razões e buscar a via judicial, ao passo que o transgênero consegue alterar o sexo e prenome, imotivadamente, diretamente no Registro Civil.
Outra crítica que se faz é que, com a alteração do sexo e do prenome, outra pessoa pode ser levada a erro, por exemplo, no casamento de pessoa cisgênero com pessoa transgênero, na hipótese do primerio desconhecer essa situação de fato, será impossível a geração de filhos biológicos sem que se recorra a métodos de reprodução assisitida, sendo o casamento passível de anulação por vício de vontade, nos termos dos arts. 1550, III, 1556 e 1557, I, do Código Civil.
Sem embargo disso, deixando essa discussão de favoráveis e contrários para segundo plano, uma vez que a decisão já foi tomada, é imperioso trazer ao debate a discussão acerca de seu cumprimento, tendo em vista os seus efeitos vinculante e erga omnes. Esse é o dilema vivenciado pelos Oficiais do Registro Civil que, em razão da falta de uma norma regulamentadora que os oriente, encontram-se com dificuldades em aplicar na prática o entendimento do STF, sem perder de vista a necessidade de tutelar a segurança jurídica dos atos por eles praticados, por tratar-se de dever de ofício.
Nesse contexto, em que pese o STF ter decidido que o direito à substituição do sexo e prenome, diretamente no Registro Civil, independe de qualquer meio de prova, é possível asseverar que para a realização do ato em cartório são necessários o preenchimento de dois requisitos: um de ordem subjetiva e outro de ordem objetiva.
DO REQUISITO DE ORDEM SUBJETIVA: PESSOA TRANSGÊNERO
O ordenamento jurídico nacional, em matéria de registros públicos, admite duas modalidades de gênero, o masculino e o feminino. Aliás, há quem defenda a existência de outras espécies de gêneros, tais como, os bigêneros e pangêneros, todavia, essas classificações não encontram correspondente amparo normativo, de modo que na certidão do registro civil, obrigatoriamente, constará o sexo masculino ou feminino. Não obstante, compreende-se como cisgênero a pessoa que possui identidade de gênero correspondente à sua característica genética. Ao passo que o transgênero, possuindo a genética de um determinado gênero, identifica-se e se exterioriza como o gênero oposto. Aliás, vale esclarecer que gênero e sexualidade não se confundem. Desse modo, tanto o cisgênero quanto o transgênero podem ser hetero, homo ou bissexuais.
É certo que o transgênero é termo que abrange toda pessoa com identidade de gênero do sexo oposto, independentemente da cirurgia de transgenitalização, da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes. Todavia, para que o transgênero busque alterar o sexo e prenome nos Registros Públicos, é fundamental que essa identidade de gênero do sexo oposto esteja minimamente exteriorizada, caso contrário o indivíduo será compreendido como cisgênero.
É sabido que ao cisgênero não é permitido requerer ao Registro Civil a alteração de sexo e prenome, em razão disso não há como afastar análise da condição de transgênero pelo Oficial de Registro que deve buscar observar elementos mínimos de exteriorização. Cuida-se de análise de ordem subjetiva, que poderá apresentar situações de maior ou menor complexidade, a depender do caso concreto. De fato, não há como estabelecer critérios objetivos, por exemplo, o tipo de roupa, a tonalidade da voz ou corte de cabelo, entretanto, como bem ponderou o eminente Ministro Celso de Mello, havendo suspeita de prática fraudulenta ou abusiva, “caberá ao oficial do registro civil das pessoas naturais a instauração do processo administrativo de dúvida”.
DO REQUISITO DE ORDEM OBJETIVA: DOCUMENTOS APRESENTADOS EM CARTÓRIO
Conforme narrado acima, a alteração do prenome e do sexo decorrem do direito de autodeterminação dos transgêneros, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, de modo que dispensa-se a produção de provas para essa finalidade. Contudo, o ordenamento jurídico brasileiro impõe aos Oficiais do Registro Civil, dentre outros, o dever de zelar pela segurança jurídica dos atos que pratica, nos termos do art. 1o, caput, da Lei no 8.935/94.
Assim sendo, enquanto o CNJ ou Corregedorias Estaduais não normatizam o tema, levando-se em consideração a eficácia erga omnes e vinculante da referida decisão, é recomendável que sejam exigidos em cartório os seguintes documentos:
I – Requerimento formulado pelo(a) interessado(a) na alteração do prenome e sexo;
II – Cópia autenticada do RG;
III – Cópia autenticada do CPF;
IV – Cópia autenticada do título de eleitor ou certidão equivalente emitida pela Justiça Eleitoral;
V – Declaração de residência(s) dos últimos 10 (dez) anos;
VI – Certidão de nascimento ou casamento;
VII – Certidões de antecedentes criminais emitidas pelas polícias federal e estadual, nos locais
em que o interessado manteve domicílio nos últimos 10 (dez) anos;
VIII – Certidões dos distribuidores cíveis e criminais das Justiças Estadual e Federal, emitidas
nos locais em que o interessado manteve domicílio nos últimos 10 (dez) anos.
Desta feita, com base nesses documentos é realizada a retificação no assento do registro civil, devendo constar na respectiva certidão, obrigatoriamente, os números do RG, CPF e do título eleitoral, de forma a evitar eventuais tentativas de fraude.
Posteriormente, munido da nova certidão de registro civil, o(a) interessado(a) deve providenciar junto aos órgãos competentes a atualização de seus documentos, todavia, sem a modificação da correspondente numeração cadastral.
É importante ressaltar que a alteração se dá somente em relação ao sexo e ao prenome, não se admitindo a supressão de sobremone, com exceção do agnome familiar. Este, em razão de tratar-se de alcunha que tem a função diferenciar os membros de uma mesma família, por exemplo, “fulano de tal filho” (sobrinho, neto, junior, segundo, etc), por força do princípio da veracidade registral, uma vez modificado o prenome do(a) interessado(a), o referido agnome deve ser suprimido do nome modificado. Todavia, se com a modificação do prenome, o nome completo do(a) interessado(a) passar a ser idêntico a de outro familiar, deve ser inserido o agnome correspondente, por exemplo, “fulana de tal filha”. Além disso, em decorrência da alteração do prenome e sexo do(a) interessado(a), é possível que seja realizada a averbação, também, no assento de nascimento de seu filho, se for o caso, que no campo filiação deverá constar o novo nome do(a) interessado(a).
Na hipótese do(a) interessado(a) tratar-se de pessoa casada, o Oficial de Registro deve providenciar a devida anotação no assento de nascimento correspondente.
Finalizando, resta dizer que o todo procedimento deve ficar arquivado em pasta própria na serventia extrajudicial, sendo proibido constar na certidão emitida pelo cartório qualquer informação que viole o direito à intimidade do(a) interessado(a), de maneira que a certidão de
inteiro teor somente pode ser fornecida mediante requerimento do(a) próprio(a) registrado(a) ou em decorrência de ordem judicial.
1 Carlos Magno Alves de Souza é Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais do Subdistrito de Brotas – Comarca de Salvador/BA e Vice-Presidente da Associação dos Registradores Civis das Pessoas Naturais do Estado da Bahia – ARPEN/BA; Especialista em Direito Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera; e Especialista em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Fonte: Arpen Brasil