Notícias

09/02/2018

Em meio a crise, cartórios arrecadam R$ 14 bilhões em 2017

Não existem dados precisos sobre quanto ganha um tabelião no Brasil, e nem sobre quantas pessoas trabalham nos cartórios

Uma das tarefas do analista administrativo Luis Fujiura, 36 anos, é resolver as pendências da paróquia católica para a qual ele trabalha em cartórios de São Paulo. Ele visita diariamente registros nos bairros do Itaim Bibi (Zona Oeste) e Ipiranga (Zona Sul), além do 16º Tabelião de Notas, perto do cruzamento entre a rua Augusta e a Avenida Paulista, no Centro. A paróquia gasta cerca de R$ 1 mil por mês só com taxas dos cartórios, diz ele. "Acho que alguns desses serviços poderiam ser digitais. Além do custo, tem o tempo de deslocamento que é bem alto", diz.

Dados do Conselho Nacional de Justiça indicam que os cartórios, ao contrário da maioria das atividades econômicas, não foram afetados de forma severa pela crise que atingiu o país de meados de 2014 até 2017: a arrecadação cresceu de forma contínua, passando de R$ 12,8 bilhões no primeiro ano da crise (valores da época) para R$ 14,3 bilhões no ano passado.

O aumento, porém, é menor que a inflação acumulada nos quatro anos (28,8%, pelo IPCA).

Em 2016, por exemplo, o valor arrecadado pelos cartórios (R$ 14,1 bilhões) ficou apenas um pouco abaixo do total arrecadado pelos pedágios de todas as rodovias privatizadas do país: R$ 17,9 bilhões. Este último dado é da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR).

No Brasil, os cartórios são os responsáveis por organizar, manter registros e certificar a autenticidade de alguns tipos de documento, especialmente aqueles que dizem respeito à vida privada: certidões de nascimento, casamento e óbito; contratos de compra e venda de imóveis, veículos e vários outros.

A maioria destes serviços são pagos diretamente pela pessoa interessada (e alguns são gratuitos). Em São Paulo, por exemplo, a escritura de um imóvel pode custar de R$ 238 a R$ 43,9 mil, dependendo do valor do bem.

Romério Rodrigues, de 21 anos, trabalha numa corretora de imóveis e está acostumado com as taxas. "Eu precisava saber a matrícula de um imóvel, e me cobraram R$ 5,10 só para me dizer o número, para que eu pudesse anotar no meu celular. Se fosse para tirar uma cópia da matrícula, seria R$ 51,90. Sei que eles têm os custos deles e precisam cobrar, mas poderia ser mais barato", diz.

Segundo o especialista em direito digital Coriolano Almeida Camargo, já existem inovações técnicas que poderiam diminuir este custo. "É um absurdo que a sociedade tenha de sustentar este custo até hoje. Já temos tecnologia para que as próprias empresas façam (uma parte das atividades). Quando uma criança nasce em um hospital, por exemplo, basta que seja feito um registro biométrico, registrado na internet. Pronto, nasci", diz ele, que é coordenador de pós-graduação na Faculdade Damásio, em São Paulo.

Os cartórios, por sua vez, lembram que este valor não vai todo para os bolsos dos tabeliães (os titulares dos cartórios): grande parte fica com o próprio governo, com R$ 6 bilhões pagos em impostos em 2016. Em nota enviada à reportagem, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg) afirma que até 80% da arrecadação bruta dos cartórios é "comprometida com repasses a órgãos públicos e despesas de funcionamento".

Segundo a Anoreg, o modelo adotado no Brasil tem como vantagem o fato de não criar qualquer custo para o Estado, além de supostamente garantir a prestação de serviços melhores do que aqueles que seriam oferecidos pelo governo diretamente. "Há inúmeros exemplos de prestação de serviços públicos nas áreas de saúde, educação, segurança, entre outros, nos quais os cidadãos precisam recorrer a serviços privados em razão da ineficiência da máquina pública", diz um trecho da nota.

Leia aqui a íntegra da nota da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg).

O CNJ informa que a responsabilidade de definir o preço das taxas de cartórios é dos Tribunais de Justiça de cada Estado. Parte do que os cartórios arrecada também é repassado aos TJs estaduais.

No fim de janeiro, uma decisão do CNJ ampliou ainda mais o "mercado" dos cartórios: documentos que antes só eram emitidos por órgãos públicos, como RG e passaporte, poderão ser feitos pelos registradores. O serviço deve começar a funcionar ainda este ano.

Como se tornar dono de cartório?

O tabelião é o profissional responsável pela gestão de um cartório. A Constituição brasileira atual determina que estas pessoas sejam formadas no curso de Direito e passem por um concurso público. Mas o fato de passar por concurso não torna o tabelião um servidor público: trata-se de um agente privado que trabalha para o Estado em regime de concessão, em uma situação parecida com a de uma empresa que cobra pedágio em uma rodovia, por exemplo.

Por este motivo, o titular de cartório não tem sua remuneração limitada pelo teto do funcionalismo público (hoje de R$ 33 mil) e também não precisa divulgar quanto ganha por mês, como acontece com os servidores. Não existem, portanto, dados precisos sobre quanto ganha um tabelião no Brasil, e nem sobre quantas pessoas trabalham nos cartórios.

Em 2014, o então deputado federal e hoje prefeito de Duque de Caxias (RJ) Washington Reis (MDB) apresentou uma proposta de emenda à Constituição (PEC) para limitar a remuneração de todos os concessionários de serviços públicos (inclusive tabeliães) ao teto do STF. A pressão, conta ele, foi intensa.

"Essa atividade se tornou um feudo, com salários exorbitantes. Na época eu lembro que houve um lobby muito forte (contra a proposta), muita pressão, muita reclamação. Fui procurado várias vezes (por representantes do setor). Eles alegavam que o projeto ia prejudicar a atividade deles, faziam a reclamação corporativista de sempre", disse Reis à BBC Brasil.

A proposta de Reis acabou rejeitada em outubro passado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. A deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ), indicada pelo presidente Michel Temer ao Ministério do Trabalho, escreveu o voto que derrubou a proposta. A Anoreg enviou à reportagem uma entrevista de Cristiane na qual ela defende o modelo atual. "As empresas que subsistem de receitas próprias estão inseridas no contexto do Direito privado e (...) não estão sujeitas às mesmas exigências constitucionais (do serviço público)", disse Cristiane à publicação da Anoreg.

A entidade disse ainda que o teto remuneratório atingiria uma parcela "ínfima" dos donos de cartório do país, pois a maioria dos tabeliães ganha menos que o teto de R$ 33 mil. "O destaque apenas aos cartórios dos maiores centros urbanos esconde uma dura realidade: a de que a maioria dos cartórios possui baixo rendimento e subsiste mantida por fundos de sustentabilidade criados (...) pelo sistema de notários e registradores", diz a Associação.

Nem todos os cartórios, porém, são ocupados por concursados: há ainda no país cartórios cujos titulares tomaram posse antes da Constituição de 1988, e que são às vezes indicados políticos ou até mesmo filhos do tabelião anterior.

Como é no resto do mundo

A forma adotada pelo Brasil não é a única existente no mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, o serviço é prestado por notários públicos, certificados pelo Poder Executivo dos Estados (e não pelo Judiciário) e com mandato durante um certo período de tempo (de dois a dez anos). Há quem atue por conta própria, mas o mais comum é que os notários sejam servidores públicos ou empregados de empresas, como seguradoras.

Além disso, nos EUA, vários procedimentos dispensam algumas formalidades exigidas no Brasil. Em vários Estados é possível comprar um apartamento, por exemplo, sem registrar firma.

Diferentemente dos EUA, que adotam o sistema conhecido como "Commonlaw", o Brasil segue o direito romano - e portanto, adota o sistema do notariado latino. O mesmo modelo é usado em vários países europeus - França, Itália, Espanha, Alemanha e outros. Segundo a Anoreg, 87 países usam o sistema do notariado latino, similar ao brasileiro. Estes países somariam 60% do PIB mundial, de acordo com a associação.

Para Coriolano Almeida Camargo, é possível que tecnologias similares à da Blockchain substituam parte das atividades dos cartórios. A tecnologia consiste num código matemático que permite a criação de um registro público, acessível pela internet e com cópias no computador de cada usuário.

"A Blockchain em si têm limitações na quantidade de dados que ela pode armazenar. Mas é possível substituir parte da atividade dos cartórios por uma tecnologia com conceito semelhante", diz ele. Segundo Coriolano, a substituição é uma tendência, mas não é possível saber ainda como se dará o processo.

Fonte: O Estado RJ


•  Veja outras notícias