O crescimento desordenado dos grandes centros urbanos e a explosão demográfica brasileira em curto espaço de tempo ocasionaram diversos problemas estruturais. A desconformidade entre as normas existentes e a realidade fática impedem a concretização do direito social à moradia e à dignidade humana, produzindo reflexos negativos inaceitáveis em matéria de ordenamento territorial urbano, mobilidade, meio ambiente, saneamento básico, segurança pública e saúde pública. Cerca de 50% dos imóveis estariam irregulares. Tal contexto justificou a flexibilização e simplificação das normas de regularização fundiária desses imóveis, com a edição da Lei 13.465, de 11/7/2017, pela qual se possibilitou regularizar não só os imóveis particulares, mas também os públicos, com transferência de domínio para os beneficiários, em ambos os casos.
A regularização fundiária urbana (Reurb) é um conjunto de normas gerais e procedimentais que abrangem medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais, destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais, consolidados ou não, ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes. Independentemente desses núcleos estarem localizados em área pública, privada, urbana, de expansão urbana ou rural, não havendo vinculação com o plano diretor ou outras leis municipais de zoneamento. Ela objetiva a ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda (Regularização Fundiária Urbano de Interesse Social – Reurb-S), de modo a priorizar a permanência dos ocupantes nos próprios núcleos urbanos informais regularizados, evitando a gentrificação dessas áreas. Também objetiva a regularização fundiária de áreas outras não ocupadas por população de baixa renda (Regularização Fundiária Urbana de Interesse Específico – Reurb-E).
Núcleo urbano informal, segundo artigo 11 da Lei 13.465 de 11 de julho de 2017, é o assentamento clandestino, irregular ou no qual não foi possível fazer, por qualquer modo, a titulação de seus ocupantes, ainda que atendida a legislação vigente à época de sua implantação ou regularização. E núcleo urbano informal consolidado é aquele de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a natureza das edificações, a localização das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos, entre outras circunstâncias a serem avaliadas pelo município. Ambas hipóteses serão passíveis de regularização, havendo previsão de mitigação e compensações de danos ambientais, a serem verificados por estudos técnicos.
Os municípios foram encarregados de efetivar a regularização urbana, como forma de concretizar o princípio constitucional da eficiência na ocupação e no uso do solo; prevenção e desestímulo à formação de novos núcleos urbanos informais; pela concessão de direitos reais, preferencialmente em nome da mulher, franquear a participação dos interessados nas etapas do processo de regularização fundiária e melhorar as condições urbanísticas e ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior (artigo 10).
Poderão ser empregados, no âmbito da Reurb, sem prejuízo de outros que se apresentem adequados, os seguintes institutos jurídicos: a legitimação fundiária e a legitimação de posse, a usucapião, a desapropriação em favor dos possuidores e por interesse social, a arrecadação de bem vago, o consórcio imobiliário, o direito de preempção, a transferência do direito de construir, a requisição, em caso de perigo público iminente, a intervenção do poder público em parcelamento clandestino ou irregular, a alienação de imóvel pela administração pública diretamente para seu detentor, a concessão de uso especial para fins de moradia; a concessão de direito real de uso; a doação; e a compra e venda.
Essa nova regulamentação legal tem o condão de regularização de diversas situações fáticas como os condomínios de fato, os clandestinos, os de lazer, os de lotes, as favelas, os assentamentos urbanos (muitas vezes bairros inteiros), as posses de áreas públicas e privadas, o direito de laje, os conjuntos habitacionais, os condomínios urbanos simples (vários moradores em cômodos diversos de um mesmo imóvel) e os loteamentos de acesso controlado.
Na regularização fundiária de interesse especifico (Reurb-E), poderá haver reconhecimento legal de ocupação de áreas públicas e privadas e titulação de propriedade aos ocupantes. Se for promovida sobre bem público, havendo solução consensual, a aquisição de direitos reais pelo particular ficará condicionada ao pagamento do justo valor da unidade imobiliária regularizada, com pagamento das custas ao serviço de registro de imóveis.
No tocante à questão ambiental, constatada a existência de núcleo urbano informal situado, total ou parcialmente, em área de preservação permanente ou em área de unidade de conservação de uso sustentável ou de proteção de mananciais definidas pela União, estados ou municípios, a Reurb observará, também, o disposto nos artigos 64 e 65 da Lei 12.651/12. Em tais hipóteses, torna-se obrigatória a elaboração de estudos técnicos, no âmbito da Reurb, que justifiquem as melhorias ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior, inclusive por meio de mitigações e compensações ambientais, quando for o caso. Na hipótese da Reurb, para abranger área de unidade de conservação de uso sustentável, será necessário a concordância do órgão gestor.
Nos casos da Reurb-E, em ranchos ou condomínios de lazer (muitos deles devem ser enquadrados nos novos institutos do condomínio de lotes ou loteamento de acesso controlado), cujas ocupações ocorreram às margens de reservatório artificiais de águas destinados à geração de energia ou ao abastecimento público, a faixa da área de preservação permanente consistirá na distância entre o nível máximo operativo normal e a cota máxima maximorum (artigo 11, parágrafo 4º), devendo ser obedecidas as demais disposições do artigo 65 do denominado Código Florestal, com a redação da Lei 13.465/12, para que se viabilize a regularização fundiária, com aprovação/licenciamento do município, por meio do Plano de Regularização Fundiária (artigo 12 e 35).
A novel lei é audaciosa na flexibilização das regras vigentes e polêmica em seus objetivos e institutos jurídicos criados e/ou modificados. Inegável que traz profundas modificações no sistema de registros públicos, com significativas restrições urbano-ambientais, bem como quanto às formas de aquisição e/ou perda de domínio de imóveis públicos ou privados.
A exemplo do que ocorre com o Código Florestal, a Lei 13.465/17 está sendo questionada no STF por meio das ADIs 5.771 e 5.787. A lei foi resultado da Conversão da MP 759/16, a qual, segundo o anterior procurador-geral da República, não observou requisitos constitucionais de relevância e urgência e “tem o efeito perverso de desconstruir todas as conquistas constitucionais, administrativas e populares voltadas à democratização do acesso à moradia e à terra e põe em risco a preservação do ambiente para as presentes e futuras gerações”.
Segundo ele, em razão disso, “61 entidades ligadas à defesa do ambiente — convencidas de que a Lei 13.465/2017 causa ampla privatização de terras públicas, florestas, águas e ilhas federais na Amazônia e na zona costeira do Brasil — apresentaram representação dirigida à Procuradoria-Geral da República a fim de provocar o STF a declarar as múltiplas inconstitucionalidades da lei”.
Portanto, não há certeza jurídica da permanência do regramento civil, administrativo, registrário, urbanístico e ambiental instituído pela Lei 13.465/12.
Caso alcançados os objetivos do artigo 10 da Lei 13.465/17, muitos dos quais não encontram ressonância nas regras positivadas no novo diploma legal, estar-se-á concretizando os princípios constitucionais da dignidade humana e do desenvolvimento econômico sustentável, tal como previstos nos artigos 1º, inciso III; 170, 182 e 225 da Carta Magna.