A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que não há como considerar nulo um testamento pela falta de algumas formalidades fixadas em lei, quando a vontade do falecido foi completamente satisfeita com os procedimentos adotados. O entendimento foi proferido de maneira unânime em um recurso de ação de nulidade de testamento, movida em razão do descumprimento, pelo testador, das regras específicas para confecção de testamento por pessoa cega.
Lisieux Nidimar Dias Borges, professora, mestre em Direito Privado e especialista em Direito Civil, concorda com o entendimento do STJ e vê esse posicionamento como um grande avanço em sede testamentária. Para ela, esse é um novo paradigma a ser seguido em decisões que pessoas com deficiência, de natureza física ou mental, sejam autores ou sujeitos interessados na lide.
“A matéria legal, hoje, sobre testamentos no Brasil é ainda muito fechada, com legalidade restrita, praticamente nossa legislação atual repete as mesmas normas que nossa primeira codificação civil de 1916. E, seria inevitável que, mais dia, ou menos dias, as normas sobre o testamento, mesmo tendo uma origem remota como é o caso da legislação brasileira, passasse por uma necessária reinterpretação por nossos tribunais. Vejamos que as leis, sobre testamentos praticados por pessoa cega, são praticamente as mesmas, o que mudou foi à sociedade, e mudando a sociedade mudam-se suas aspirações e os modos de se compreender a si mesma. A Constituição brasileira de 1988, bem como as legislações posteriores sobre a pessoas com deficiência, demonstram claramente que hoje as ideias de inclusão, paridade e dignidade são motes inafastáveis de nossa cultura, que passam a compor novos pilares e aspirações de nossa comunidade”, relata.
A professora afirma que é mais que natural, e benéfico, que os tribunais percebam a modificação da sociedade em que vivemos, e atestem que a inclusão e a dignidade da pessoa humana devem pautar todas as suas decisões. Segundo Lisieux Borges, decidir de modo a perceber que mais vale o conteúdo do que a forma propriamente dita, é um modo singelo de aceitar que a diferença de cada um de nós é inerente a nossa condição humana, e deve ser percebida e aplicada no caso concreto.
De acordo com o Superior Tribunal de Justiça, a sentença declarou nulo o testamento, porém, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) entendeu que não seria o caso de nulidade e o validou. No STJ, o recorrente alegou que o testamento deveria ser considerado nulo, pois não atendeu a formalidades essenciais: faltaram a assinatura na primeira folha e a confirmação, no próprio instrumento, de que o testador era cego, e não houve a dupla leitura do documento pelo tabelião e por uma das testemunhas. De acordo com a relatora do recurso, Ministra Nancy Andrighi, já há entendimento predominante no STJ acerca da preservação da declaração de vontade, mesmo diante da ausência de algum requisito formal.
Lisieux Borges lista alguns exemplos de requisitos que seriam essenciais em casos como esse: vontade livre e inequívoca do testador; a formalização desta vontade através de qualquer meio hábil, para posterior execução deste testamento; a existência de testemunhas que confirmem a vontade do testador (de preferência que se tenham testemunhas, mas dependendo da situação, e do meio utilizado para formalizar o ato, até mesmo as testemunhas poderiam ser dispensadas).
“Acredito que o essencial para que um testamento seja considerado válido é que a vontade do testador seja livre, inequívoca e sem interferência de terceiros em sua produção. Com o testamento, pretende-se resguardar à pessoa humana a possibilidade de irradiar sua personalidade para o post mortem, respeitando a dignidade que um dia possuiu, e aceitando que sua liberdade de disposição é um direito inerente a condição de pessoa digna, que um dia foi. Sendo assim, acredito que a forma não é algo essencial para o testamento, defendo, inclusive, que a vontade do testador, com deficiência, ou não, possa se exprimir de qualquer forma, desde que seja possível comprovar a idoneidade desta vontade”.
Em seu voto, a relatora afirmou que, tendo sido atendidos os pressupostos básicos da sucessão testamentária (capacidade do testador, respeito aos limites do que pode dispor e legítima declaração de vontade), “a ausência de umas das formalidades exigidas por lei pode e deve ser colmatada para a preservação da vontade do testador, pois as regulações atinentes ao testamento têm por escopo único a preservação dessa vontade”.
Para a ministra, uma vez evidenciada a capacidade cognitiva do testador quanto ao fato de que o testamento correspondia exatamente à sua manifestação de vontade, e ainda, lido o testamento pelo tabelião, não há como considerar nulo o testamento por terem sido desprezadas solenidades fixadas em lei, pois a finalidade delas “foi completamente satisfeita com os procedimentos adotados”.
Na opinião da professora Lisieux Borges, não irão se criar relatividades, mas sim particularidades, tendo em vista que, para ela, o atual sistema jurídico é pós-positivista, e clama para esta atuação particular em cada caso concreto. “Quando afirmamos que existirão relatividades, temos a nítida impressão de que para um mesmo direito, haverá conteúdos diferentes, sempre que aplicado para pessoas distintas. E não podemos defender isto. Se afirmo, que a aplicação de direitos tem um conteúdo relativo, estou ao mesmo tempo afirmando que os direitos não têm o mesmo conteúdo e nunca serão igualmente aplicados. E não é isto que buscamos, buscamos exatamente a superação desta relatividade, ou sejam, queremos que o conteúdo dos direitos sejam iguais para todos, porém, para alcançarmos esta aplicação igualitária, temos que perceber que as pessoas são distintas e possuem suas particularidades, e com base e no respeito destas particularidades, devemos aplicar a norma de tal forma, que o conteúdo deste direito seja igual para todos”, explica.
Nancy Andrighi considerou que a vontade do testador ficou evidenciada por uma sucessão de atos. Por isso, acrescentou, “não há razão para, em preciosismo desprovido de propósito, exigir o cumprimento de norma que já teve seu fim atendido”. Lisieux Borges destaca ainda que o Direito Testamentário no Brasil precisa passar por um repensar inclusivo, igualitário e edificante da pessoa, permitindo que todos, “com” ou “sem” deficiências tenham seu direito de testar garantido, como um reflexo da dignidade que possuem.
“Assim, até que tenhamos uma modificação legislativa mais condizente com nosso paradigma inclusivo, caberá ao judiciário, através de sua jurisprudência, esta reinterpretação da matéria testamentária. Nossos tribunais, sensíveis a modificação social, e, ao imperativo inclusivo, devem sempre buscar o que realmente importa em sede testamentária, que é a intenção, a vontade do testador, e não como esta vontade irá se exprimir no mundo exterior”, finaliza.
Fonte: Ibdfam