Apontada como uma das principais novidades do Código de Processo Civil em vigor, a usucapião extrajudicial surgiu como importante instrumento de regularização fundiária de imóveis urbanos e de desburocratização de procedimentos. Todavia, apesar de festejada, a inovação terminou se esvaziando em virtude de barreiras criadas pelo mesmo texto legislativo que a criou.
Conforme redação original, fora inserido o art. 216-A à Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973), em cujo caput instituiu-se que “sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado”.
Em seguida, o dispositivo dispunha sobre os elementos que deveriam instruir o requerimento, entre os quais constava a exigência de “planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes.”
Tal exigência, além de descaracterizar o instituto da usucapião, transformou a via administrativa em alternativa inviável. Em primeiro lugar, a concordância expressa do proprietário do bem objeto da usucapião aproximava o procedimento de um ato negocial, incompatível com característica típica da usucapião de forma originária de aquisição da propriedade.
Ademais, e ainda mais grave, a regra, em termos práticos, no processo de usucapião é o desconhecimento de quem seja o proprietário do bem, o que ocorre principalmente pela cultura brasileira da escritura particular e da transmissão irregular da posse. Não é raro que o atual possuidor, aquele que pretende adquirir o bem por usucapião, desconheça a existência de registro em nome de terceiro, o qual, dificilmente será encontrado, se ainda vivo estiver.
Arrematando a infelicidade do legislador, dispunha a lei que “se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como discordância”.
A interpretação do silêncio como discordância, além de tornar inócua a via extrajudicial, compreendia incongruência com o sistema jurídico atual, uma vez que na usucapião extrajudicial de interesse social, instituída pela Lei 11.977/09[1], a ausência de manifestação em tais casos é entendida como concordância.
Ressalte-se que na modalidade de interesse social, o que se regulariza é todo um assentamento, e não apenas um único lote, sendo, portanto, inconcebível que numa modalidade o silêncio valha como anuência e na outra seja vista como discordância.
Corrigindo tais incongruências e fazendo ressuscitar a usucapião extrajudicial, a Lei 13.465/17, recentemente publicada e instituidora do novo marco legal em matéria de regularização fundiária, alterou o referido 216-A. Assim, segundo o novel § 2º, “se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, o titular será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar consentimento expresso em quinze dias, interpretado o silêncio como concordância”.
Outra inovação diz respeito à previsão de que “caso não seja encontrado o notificando ou caso ele esteja em lugar incerto ou não sabido, tal fato será certificado pelo registrador, que deverá promover a sua notificação por edital mediante publicação, por duas vezes, em jornal local de grande circulação, pelo prazo de quinze dias cada um, interpretado o silêncio do notificando como concordância” (§ 13º).
Ademais, passa a se estabelecer que “regulamento do órgão jurisdicional competente para a correição das serventias poderá autorizar a publicação do edital em meio eletrônico, caso em que ficará dispensada a publicação em jornais de grande circulação” (§ 14º).
A regulamentação da usucapião extrajudicial estava em vias de ser estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça, que havia publicado consulta pública sobre a minuta de provimento a respeito da matéria.[2] Tal minuta, apesar de prever alternativas à exigência da anuência expressa do proprietário, certamente precisará ser readequada ao novo parâmetro legal estabelecido.
Por fim, há de ser ressaltar que a interpretação do silêncio como anuência não ofende as garantias do contraditório e da ampla defesa, de forma que a boa-fé do pretendente/adquirente e o lastro probatório que justifique a lavratura da ata notarial devem gerar a presunção em desfavor daquele que foi devidamente notificado, ainda que por edital. Não se está a dispensar as garantias constitucionais ao proprietário, mas tão somente as adequando aos paradigmas processuais atuais, que alçam a efetividade a um patamar que permite sua sobreposição nos casos de colisão com outros princípios. Pode-se afirmar, portanto, que a usucapião extrajudicial individual passou a existir, em termos práticos, com a Lei 13.465/17, devendo ser aplaudida a inovação.
[1] A Lei 11.977/09, na parte referente a regularização fundiária, foi revogada pela Lei 13.465/17, embora tenha permanecido a regra no sentido de que a ausência de manifestação do proprietário implica a sua a anuência.
[2] http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/07/ec1e95ba2c6aecf760c5697be977fe95.ppdf
Felipe Maciel P. Barros é advogado, mestre em Direito Constitucional pela UFRN e presidente do Instituto Potiguar de Direito Processual Civil.
Fonte: Revista Consultor Jurídico