"Ser tratada e chamada da forma como eu me reconheço é uma felicidade que não tem explicação. É libertador. Foi o que me deu autonomia para ir e vir sem medo de me apresentar". A declaração é da gestora pública Ludmylla Anderson Santiago Carlos. Aos 34 anos, ela retificou o próprio nome há sete anos e, com isso, mudou sua vida. Hoje, outros transexuais terão a mesma oportunidade, inclusive a de adequação de gênero, em um mutirão promovido pela Defensoria Pública do DF, das 7h às 17h, na estação do metrô da 114 Sul.
Até a última sexta-feira, o número de agendamentos para o mutirão estava próximo de 120, o dobro da expectativa, ressalta o defensor público Fábio Levino, do Núcleo de Direitos Humanos. "Isso reflete o tamanho da necessidade. A mudança é um renascimento para essas pessoas, eliminando constrangimentos. Antes disso, elas não se reconheciam, repudiavam a própria identidade sexual genética", afirma o defensor.
Levino explica que a iniciativa surgiu diante da demanda. "Eles (transexuais) não sabiam desse direito. Tampouco conheciam o papel da defensoria", declara. Em seguida, o processo segue para a Justiça. "Isso porque a legislação não é clara. Portanto, os cartórios não conseguem fazer a mudança sem a decisão do juiz. No Brasil, o nome é considerado imutável, mas a lei abre brechas para alteração quando a identidade expõe a pessoa ao ridículo. Dessa forma, conseguimos lutar pelos transexuais", diz.
Antes de liberar a decisão, a Justiça marca audiência com o interessado e testemunhas. "A mudança nominal é mais simples. Existe só uma vara de registro público no DF e o juiz não costuma embarreirar o processo. Quando o pedido é de alteração de gênero, qualquer vara de família pode ser acionada e o resultado é imprevisível", completa. Ainda assim, o defensor acredita que, depois que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) autorizou, na semana passada, a retificação, as chances dos transexuais aumentaram significativamente.
O STJ levou em consideração alguns fundamentos, explica Levino. "Primeiro, o fato de que nem todos têm condições de fazer cirurgia de mudança de sexo. Além disso, a fila no SUS é enorme, com média de 12 anos de espera. E vale lembrar que nem sempre o paciente é liberado para a operação, e vai da vontade dele. Às vezes, ele não tem problema com o seu órgão genital".
Processo árduo, mas gratificante
Além da retificação nominal, a gestora pública Ludmylla Anderson Santiago Carlos também conseguiu a adequação de gênero, há cinco anos. "Na época, o processo não era tão simples como hoje. Lembro que procurei o Fórum de Taguatinga e não tinha nenhum caso. Fui a primeira. A sentença com a mudança do nome demorou pouco menos de dois anos para sair. Em seguida, corri para o cartório e fiz o requerimento para a alteração da certidão de nascimento", conta.
Ludmylla lembra que o processo foi árduo. "Eu estava receosa por ser a primeira a reivindicar esse direito, mas cheguei empoderada ao fórum. Por sorte, o promotor que pegou meu caso era muito sensível. O problema de fazer a retificação é ter que depender da interpretação do outro", afirma.
A gestora pública lembra que abriu mão de atividades básicas por causa do constrangimento. "Antes da alteração, deixei de fazer coisas simples. Ir ao médico e preencher formulário, por exemplo, era desconfortante. Fugia de tudo que me exigia documentação".
Ludmylla conta que se descobriu na adolescência. "Normalmente, isso acontece mais cedo, mas comigo foi diferente, entre os 14 e 16 anos. É tudo muito confuso. Durante muito tempo me identifiquei como homossexual. Somente aos 20 anos entendi que era transexual. Li uma reportagem e tudo começou a fazer sentido. Aos 24, assumi para a família, que não lida muito bem com o fato", relata.
Impacto
O estudante Murilo Bernardo de Oliveira, 30, retificou o nome em 2016. Agora, ele pretende fazer a adequação de gênero. "É mito achar que só a mudança nominal vai acabar com o preconceito. Ao procurar atendimento ginecológico na rede pública, por exemplo, o constrangimento existe", conta.
Ainda assim, ele reconhece que a primeira alteração teve impacto na rotina. "Parei de ficar lutando para que me chamem pelo meu nome. É impressionante como um pedaço de papel muda a vida. Agora, até meu currículo é mais fiel ao que eu sou de fato", afirma. Ele também se descobriu na adolescência "Eu mesmo me rotulava de lésbica. Depois que assisti a um filme sobre o tema, me encontrei", conclui.
Como participar
No caso de ausência dos inscritos, vagas serão abertas na hora. É imprescindível estar com todos os documentos em mãos.
No mutirão serão exigidos identidade; CPF; comprovantes de residência e de renda; certidões de nascimento - e dos filhos - e de casamento; certidão de óbito dos filhos; nada consta civil e criminal do DF e federal; certidões negativa de débitos trabalhistas, militar, da Receita Federal, da Secretaria de Fazenda do DF e de protesto de títulos da Justiça do DF.
Após o mutirão, a Defensoria Pública continuará fazendo o agendamento na Estação 114 Sul do metrô, sempre pela manhã. A ação é uma parceria com o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), o Centro de Referência em Direitos Humanos do Distrito Federal (DF) e o Ministério dos Direitos Humanos.
Uma força de trabalho composta por defensores, servidores e colaboradores, além do apoio de diversos grupos ligados ao movimento LGBT, foi criada.
Fonte: Jornal de Brasília