Os institutos jurídicos, enquanto produtos culturais, sofrem alterações funcionais, ao mesmo tempo em que têm suas estruturas preservadas. Tais processos decorrem da atividade de interpretação do direito, realizada pela doutrina e, sobretudo, pelos tribunais, para que se ofereçam respostas às novas necessidades sociais. Contudo, nem sempre isso ocorre com perfeição. Significados antigos podem causar interferências nos novos significados, gerando incertezas e conflitos que não precisavam eclodir.
Esse problema parece acontecer com o conceito de guarda. Diretamente relacionado ao poder dos genitores sobre os filhos, tal instituto jurídico sofreu importantes modificações com o passar do tempo, sem que se alterasse a sua estrutura ou, no caso, a sua terminologia.
O Código Civil de 2002, em sua redação original, estabelecia, no artigo 1.583, que, em caso de separação judicial por mútuo consentimento ou divórcio consensual, a decisão de atribuição da guarda dos filhos seria definida pelos pais. Em caso de dissenso entre eles, no artigo 1.584, caput e parágrafo único, ordenava-se que a guarda fosse atribuída ao genitor que tivesse melhores condições de exercê-la, ou, excepcionalmente, uma terceira pessoa, levando-se em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade, observada a legislação específica.
Por meio da Lei 11.698/2008, inseriu-se no direito brasileiro o instituto da guarda compartilhada, definida na parte final do novo artigo 1.583, § 1º, do Código Civil de 2002 como “responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns” e que apresenta essa hipótese como recomendação aos genitores no artigo 1.584, § 2º, ao usar a expressão “sempre que possível”.
Posteriormente, pela Lei 13.058/2004, inseriu-se o parágrafo segundo ao artigo 1.583, estabelecendo que “o tempo de convívio deve ser dividido de forma equilibrada com o pai e com a mãe, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos”. Assim, impôs-se a aplicação compulsória do regime de guarda compartilhada, modificando-se a redação do artigo 1.584, § 2º, ao defini-la como regra, sendo unilateral somente se um dos genitores declarar expressamente que não deseja a guarda do menor.
O legislador estabeleceu a obrigatoriedade do convívio entre ambos os genitores, porque a psicologia sustenta a importância das figuras paterna e materna para a formação da personalidade, além de permitir, por meio desse convívio, que a criança ou o adolescente tenha melhores e mais frequentes experiências de vida de forma saudável e feliz, assegurando-se o seu livre desenvolvimento enquanto pessoa.
Mesmo com o esforço da doutrina para o esclarecimento da guarda compartilhada em manuais e artigos, além dos diversos enunciados das Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Conselho da Justiça Federal, com os quais se ofereceram sugestões interpretativas sobre esse tema,[1] existem outras situações que merecem ser analisadas para que se corrijam distorções no relacionamento cotidiano entre pais e filhos que não vivem sob o mesmo teto. Essa é a proposta deste texto: apontar as inconveniências decorrentes da interpretação sobre guarda compartilhada na prática e demonstrar inclusive a inconstitucionalidade das regras atuais.
A definição do conceito de guarda exige a análise prévia do conceito do poder dos genitores sobre seus filhos. Desde o direito romano até não muito tempo atrás, esse poder cabia ao homem e denominava-se pátrio poder. Inicialmente absoluto, foi sendo atenuado para combater os abusos praticados contra os filhos. Na redação original do artigo 380 do Código Civil de 1916, atribuía-se o exercício do “pátrio poder” ao marido e, na sua falta ou impedimento, à mulher.
No século XX, o princípio do melhor interesse da criança, ainda que não estivesse explicitamente declarado na legislação, proporcionou a primeira mudança paradigmática nessa matéria, pela ideia de que os pais não tinham um poder, mas um dever para com os filhos, cujo cumprimento era fiscalizado pelo Estado, o que tornava até mesmo mais adequado o uso do termo “pátrio dever”[2] em vez de “pátrio poder”.
Esses deveres estavam elencados no artigo 384 do Código Civil de 1916 e mantiveram-se com a mesma redação até 2014 no artigo 1.634 do Código Civil de 2002. Dois merecem atenção. O primeiro continua na nova redação do artigo 1.634 e consiste em “dirigir-lhes a criação e a educação”. O segundo consistia em “tê-los sob sua guarda e companhia” e, na nova redação de 2014, consiste em “exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do artigo 1.584”.
A guarda, numa primeira acepção, é o dever dos genitores de conferir proteção de fato da pessoa dos filhos em termos de vigilância e cuidado. Esse entendimento também está presente na definição de guarda no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069/1990) no tocante à família substituta. No artigo 33, caput, estatui-se que “[a] guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais”. Trata-se, pois, da situação em que o não detentor de poder familiar o exercerá como se fosse genitor. O termo “guarda”, nesse contexto, está em consonância com o texto do Código Civil, porque neste se usa “guarda” com o significado de proteção e cuidado de fato, como nos casos de guarda da coisa no comodato, depósito, penhor, herança, bem como de livros e escriturações contábeis.
Tanto o artigo 384, VI, do Código Civil de 1916 quanto o artigo 1.634, VI, do Código Civil de 2002 — renumerado em 2014 como artigo 1.634, VIII — estabelecem que guarda é também o direito de os pais terem os filhos em sua companhia, ao atribuir o poder de “reclamá-los de quem ilegalmente os detenha”. Inclusive a violação desse direito é o crime de subtração de incapazes, tipificado no artigo 248 do Código Penal.
Ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente consagra a convivência familiar como um dos direitos fundamentais destes. A partir daquela data, a criança e o adolescente passaram a ter direito de conviver com os seus genitores, tal como disposto no Capítulo III do Título I desta Lei, especialmente nos arts. 19 e 23, complementando o que já havia no Código Penal desde 1940 em termos de subtração de incapazes. Por essa razão, a atribuição da guarda, nos termos do artigo 33. § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, visa à regularização dessa situação de fato, para que o guardião não genitor não seja incurso nesse tipo penal.
Dessa forma, o conceito de guarda desdobra-se em dois: enquanto proteção da pessoa dos filhos e enquanto convivência familiar com eles.
Até não muito tempo atrás, o legislador, motivado por questões morais e religiosas, punia o cônjuge responsável pelo desfazimento da família, privando-o da guarda, entendida como convívio com os filhos, por causa do preconceito existente de que o genitor considerado culpado era inapto ao exercício dos poderes decorrentes da condição de pai ou de mãe, além de sua presença ser considerada perniciosa, devido à sua imoralidade legalmente presumida. Nos termos da redação original do artigo 326 e seus parágrafos do Código Civil de 1916, a guarda era atribuída ao genitor inocente e, na hipótese de culpa dos dois genitores, filhos de ambos os sexos permaneciam com a mãe, mas o menino, a partir dos seis anos de idade, passava à guarda do pai. Admitiam-se disposições em contrário em casos de desquite amigável ou no melhor interesse da criança e assegurava-se ao genitor sem guarda o direito de visitas aos filhos, conforme disposto no artigo 327 do Código Civil de 1916.
O Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962) alterou o artigo 380, para definir que o pátrio poder era dos pais, exercido pelo marido com a colaboração da mulher. Modificou parcialmente a regra do artigo 326 do Código Civil de 1916, para que, em caso de culpa de ambos os cônjuges pelo fim do casamento, o melhor interesse da criança fosse mais bem atendido com a permanência dela com a mãe, salvo se, desse fato, resultasse prejuízo moral a elas.
A partir do Código Civil de 2002, houve a adequação dos direitos e deveres entre cônjuges na lei ordinária por força da Constituição Federal, estabelecendo-se a igualdade entre eles, abolindo-se do texto as antigas regras de deveres do marido e deveres da mulher. Isso resultou em mais uma importante modificação paradigmática em matéria de guarda dos filhos, para que o poder exercido em face dos filhos não fosse mais exercido pelo pai, ainda que com a colaboração da mãe, mas que ambos o exercessem em igualdade de condições, denominando-se, agora, poder familiar. Defende-se o uso dos termos “autoridade parental” e “responsabilidade parental”[3] ou até mesmo “função familiar”, uma vez que função é o exercício de poderes exercidos no interesse de quem sofre seus efeitos, e não no interesse de quem os exerce. As funções de genitores são indelegáveis e cessam somente com a maioridade civil.
Com a igualdade entre os cônjuges e a adoção do conceito de poder familiar, em substituição ao de pátrio poder, a guarda dos filhos tornou-se necessariamente compartilhada entre os genitores, ainda que, na redação original do Código Civil de 2002, inexistisse o termo “compartilhada” em qualquer de seus artigos. É, evidentemente, unilateral, quando um dos genitores não puder nem desejar exercê-lo, como nos casos de força maior, ou de suspensão ou perda do poder familiar.
Pelo fato de guarda também significar direito à convivência familiar em decorrência do direito de os pais terem os filhos em sua companhia, e estes terem a convivência com seus pais, a criança e o adolescente necessitam de um local onde exercerão tal direito. Esse local é o domicílio, onde residirão com ânimo definitivo, e, no caso, o domicílio dos filhos é o dos pais, nos termos do artigo 76, parágrafo único, do Código Civil de 2002.
Na próxima semana, tratarei dos problemas relativos à aplicação do regime da guarda compartilhada e apontarei a inconstitucionalidade das regras atuais.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).
[1] Desde a I Jornada de Direito Civil há enunciados sobre guarda compartilhada. Especialmente, na VI Jornada de Direito Civil, realizada em setembro de 2015, em Brasília, aprovaram-se cinco enunciados sobre o tema (Enunciados 601 a 606), o que evidencia a enorme dificuldade na sua aplicação prática da maneira correta.
[2] Washington de Barros Monteiro. Curso de Direito Civil. 1ª edição. São Paulo: Saraiva, 1952. p. 227
[3] Maria Berenice Dias. Manual de Direito das Famílias. 10ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 461
Eduardo Tomasevicius Filho é Professor Doutor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.
Fonte: Revista Consultor Jurídico