Não é segredo que o legislador do Código de Processo Civil de 2015 pretendia promover formas de redução do número de processos e de melhor dimensionamento de conflitos e o fez — ou ao menos tentou fazê-lo — por meio de diversas novidades, podendo-se citar, a título exemplificativo, a instituição de um modelo dogmático normativo de precedentes judiciais, bem como a ampliação da possibilidade de negociação processual.
Neste contexto, a controversa figura da usucapião extrajudicial representa uma, dentre tantas apostas do legislador, de perseguição destes fins pela via não adversarial. Fala-se, portanto, em desjudicialização, como uma referência à retirada de determinados assuntos do âmbito do judiciário, passando-se a crer na possível solução de assuntos complexos, que passariam a tramitar em esferas administrativas.
Em se tratando da usucapião extrajudicial, os cartórios de registro de imóveis em hipóteses de plena consensualidade dos afetados (participantes) se tornaram concorrentemente competentes, juntamente com o judiciário, para o processamento do pedido de declaração e obtenção originária da propriedade em virtude do decurso de tempo.
Tendo em vista que a redação do dispositivo[1] é restritiva, torna-se concreta a possibilidade de a usucapião extrajudicial cair em desuso. No entanto, o risco é muito maior quando se admite a interpretação extensiva do referido dispositivo. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça abriu consulta pública visando colher opiniões para fins de elaboração de um Provimento sobre o procedimento extrajudicial de usucapião.
A redação da Minuta do Provimento apresentada pelo CNJ sugere em algumas situações (seu artigo 6º) a possibilidade da perda de bens sem o devido processo constitucional, sem contraditório e sem ampla defesa — leia-se, sem processo — uma extravagância inominável, que merece alguns apontamentos críticos.
O artigo 1.071 determina que, “sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado”.
Até aí, nada demais, pois é louvável atender àquela ideia de desjudicialização, principalmente se levarmos em conta a existência de várias dezenas de milhões de processos em tramitação no Brasil. Ocorre que o referido “pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião” deve vir acompanhado de alguns documentos, dentre outros, da ata notarial, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, da planta e memorial descritivo, assinado não apenas por profissional habilitado, mas também pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes.
Aí que surge um certo entrave à efetivação da usucapião extrajudicial pois, inexistindo a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo, deverá ocorrer uma notificação — feita pelo oficial registrador — para que manifeste o titular de direito real o seu consentimento expresso, no prazo de 15 dias. Pela lei, o silêncio é tomado como discordância.
Com o intuito de “regulamentar” tal procedimento o Conselho Nacional de Justiça lançou consulta pública e disponibilizou uma Minuta de Provimento sobre a Usucapião Extrajudicial[2]. No entanto, o CNJ vai muito além da regulamentação, pois cria uma hipótese claramente inconstitucional de perda de bens sem o devido processo e, ainda, distorce o disposto no artigo 1.071, de maneira incorrigível.
Veja-se, nesse sentido, os dispositivos que repelem violentamente os princípios mais elementares do processo constitucional. Segundo consta no artigo 6º da Minuta, “considera-se outorgado o consentimento, dispensando a notificação prevista no caput do artigo 5º deste provimento (ou resolução), quando for apresentado pelo requerente, título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica entre o titular registral e o usucapiente, acompanhada de prova de quitação das obrigações e certidão do distribuidor cível demonstrando a inexistência de ação judicial contra o usucapiente ou seus cessionários”.
Dentre os exemplos de títulos capazes de afastar a exigência legal de notificação, segundo a minuta, estão: a) o Compromisso de compra e venda, b) a cessão de direitos e promessa de cessão; c) um pré-contrato; d) a proposta de compra; e) a reserva de lote ou outro instrumento no qual conste a manifestação de vontade das partes, contendo a indicação da fração ideal, do lote ou unidade, o preço, o modo de pagamento e a promessa de contratar; f) a procuração pública com poderes de alienação para si ou para outrem, especificando o imóvel; g) a escritura de cessão de direitos hereditários especificando o imóvel; h) ou documentos judiciais de partilha, arrematação ou adjudicação.
Se, de um lado, o CPC/2015 enterrou o livre convencimento do juiz[3], de outro, a Minuta do Provimento o ressuscita e o transfere ao registrador, ao prever que: “A análise dos documentos citados neste artigo e seus parágrafos será feita pelo registrador que proferirá decisão fundamentada, conforme seu livre convencimento, acerca da veracidade e idoneidade de seu conteúdo e da inexistência de lide relativa ao negócio objeto de regularização pela usucapião”.
Não é de hoje que a ideia de desjudicialização possui lastro normativo no Brasil, ainda que não se utilizasse a referida expressão. A propósito, apenas para indicar alguns exemplos, nos artigos 31 e seguintes do Decreto-Lei 70/1966 já se contemplava a hipótese de procedimento extrajudicial para fins de execução de dívida vinculada ao Sistema Financeiro de Habitação. No mesmo sentido, a Lei 9.514/97 trouxe não apenas a figura da alienação fiduciária de bens imóveis, mas também toda a regulamentação voltada à consolidação da propriedade do imóvel em nome do credor-fiduciário, cujo procedimento será integralmente extrajudicial, inclusive no que concerne aos eventuais leilões de alienação do imóvel objeto da garantia (artigos 26 e 27 da Lei 9.514/97). No mesmo sentido, a Lei 11.441/07 alterou o CPC/73, para possibilitar a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa.
A redação do artigo 1.071 pretende desjudicializar ou desburocratizar a usucapião. Sabe-se, claro, que normalmente é um processo moroso e a sua tramitação perante o cartório de registro de imóveis poderia mudar essa realidade. No entanto, a proposta de regulamentação do dispositivo é extremamente infeliz. Busca-se a efetividade a todo custo. Presume-se a boa-fé do pretendente/requerente. Adota-se o pressuposto que os documentos são hábeis à expropriação.
É preciso, no entanto, advertir que o apelo à efetividade do processo, seja na esfera administrativa, jurisdicional ou no âmbito legislativo é inquestionavelmente legítimo. Aliás, no segundo pós-guerra, com o amplo movimento de constitucionalização, o processo se torna vocacionado à implementação de direitos fundamentais, como se constata no episódio de dessegregação racial nos Estados Unidos (Brown v. Board of education of Topeka, 1954/1955), apenas para citar um exemplo. Apesar disso, a lógica do processo útil a todo custo, de máxima efetividade e desenvolvido em tempo exíguo, não pode ser obtido a qualquer custo.
É sedutor pensar em efetividade. Pode e deve sê-lo, no entanto, não se pode esquecer que o processo é o ambiente discursivo por excelência e, com isso, a própria noção de direito fundamental precisa ser compreendida, mediante a implementação de estruturas argumentativas, ou seja, em efetivo contraditório.
Em assim sendo, a Minuta do Provimento do CNJ se mostra completamente inaceitável. Como pode alguém defender a possibilidade de um cidadão perder a propriedade de um bem imóvel sem sequer ser “convidado” a participar do procedimento extrajudicial de usucapião? Pois é exatamente essa a intenção da Minuta de Provimento, ao pretender dispensar a notificação dos titulares de direitos reais, desde que apresentados alguns documentos pelo pretendente.
De meio de prova, que deve ser submetido ao contraditório (antecipado ou diferido), crê-se na apresentação de meros documentos como suficientes para demonstração da realidade. Pensa-se que o titular do Cartório de Registro de Imóveis seria preciso no exame dos ditos documentos, e que poderia apreciá-los de acordo com seu livre convencimento. Apresentados alguns documentos, dispensa-se a notificação do titular de direito real, afinal, porque perder tempo com esse ato meramente burocratizante?
O que o CNJ despreza é que o contraditório se apresenta como princípio fundamental em processos administrativos e que no artigo 5º, inciso LIV, CR se prevê que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. A Minuta do Provimento inverte essa ordem, pois, de que valeria o artigo 1.071 do CPC/2015, se nós não pudermos “dar efetividade ao mesmo”?
Além da desarmonia com o texto constitucional, o CNJ parece ignorar a existência de uma verdadeira “indústria da grilagem”[4] para legitimar posses novas como se fossem ad usucapionem em nosso país, que se vale de inúmeras técnicas de “transformação da realidade”.
Não é preciso grande vivência para saber que é muito fácil forjar um compromisso de compra e venda, ou uma promessa de cessão. Tão fácil quanto isso é a possibilidade de elaboração de uma declaração de quitação do débito previsto no referido instrumento contratual. Com isso, pela proposta contida na Minuta do CNJ, estaria dispensada a notificação dos titulares de direitos reais. Perceba-se que, em razão do processo de envelhecimento dos documentos, o requerente-fraudador poderia requerer a usucapião de um imóvel por ele nunca possuído. Depois de transferida a propriedade, sem qualquer comunicação ao ex-titular do domínio, o requerente “invade” o imóvel. A propriedade estaria, agora, em nome do fraudador. O prejuízo seria incalculável.
Ainda que não se apele para um exemplo extremo, como o narrado acima, é preciso rejeitar esse tipo de proposta, na qual documentos, não submetidos ao contraditório, são vistos como suficientes para acarretar a perda da propriedade imobiliária. Ora, em juízo, sobre as provas devem submeter-se a argumentação das partes e, mais do que isso, ao direito de produção de uma prova contrária. Não há nada de sofisticado nisso, é apenas a compreensão basilar do que se possa entender por processo.
E, por fim, o ponto nuclear é: se o requerente dispõe de todos os documentos (legítimos) demonstrativos de sua posse, que desaguarão inevitavelmente à obtenção da declaração de propriedade, por qual razão o titular do direito real se oporia à usucapião? Seria o caso, provavelmente, de efetiva disputa sobre a propriedade.
Aliás, uma proposta de lege ferenda para proporcionar maior efetividade ao disposto no artigo 1.071 do CPC/2015 seria alterar a redação do Código, para dizer que, havendo a procedência do pedido de usucapião na esfera judicial, o proprietário que tenha apresentado injusta oposição seria responsável por todas as despesas, inclusive aquelas eventualmente cobradas perante o Cartório de Registro de Imóveis.
O que não se admite é a conversão desta proposta do CNJ em mais uma norma que contrarie o texto de nossa Constituição.
1 (art. 1.071, instituidor do art. 216-A da Lei 6.015/73)
2 http://www.cnj.jus.br/poder-judiciario/consultas-publicas/regulamentacao-do-procedimento-de-usucapiao-extrajudicial
3 Cf. STRECK, Lenio. Dilema de dois juízes diante do fim do Livre Convencimento do NCPC. Acessível nesta revista: http://www.conjur.com.br/2015-mar-19/senso-incomum-dilema-dois-juizes-diante-fim-livre-convencimento-ncpc
4 Para que a assertiva não fique vaga, devemos lembrar aqui que a expressão “grileiro” tem origem numa prática desse tipo. Coloca-se um determinado documento, feito na atualidade, num dado recipiente, juntamente com um ou mais grilos. Depois de pouco tempo, o papel, antes branquíssimo, toma o aspecto de envelhecido, amarelado e roído.
Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo CPC na Câmara dos Deputados.
Antônio Aurélio de Souza Viana é advogado, mestre em direito processual (PUCMinas). Vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB – Subseção Contagem.
Fonte: Revista Consultor Jurídico