A usucapião, para além de uma forma de aquisição de propriedade de imóveis abandonados por seus proprietários, tem se mostrado, especialmente nas grandes cidades, verdadeiro instrumento de regularização de ocupação do solo urbano.
Ela tem sido utilizada, na maioria das vezes, como último caminho para tornar regular a ocupação de determinada parcela do solo urbano, quando o então adquirente de direitos possessórios, ou promitente comprador, após anos de ocupação, não consegue êxito no ingresso do seu título junto ao registro de imóveis, para que, finalmente, seja registrada a tão buscada propriedade imobiliária.
E as razões são muitas para essa dificuldade.
Muitos desses possuidores efetivamente pagaram para poder ocupar aquela área urbana, seja ela um lote, seja um conjunto de lotes ou até mesmo parte de um lote. Contudo, mesmo tendo sido pago por aquela ocupação, seu título é nulo ou inapto a obter a qualificação positiva no registro de imóveis.
A nulidade do título pode decorrer de vício de forma (por exemplo, compra e venda feita por instrumento particular), de inexistência de negócio jurídico (venda a non domino), dentre tantos outros vícios possíveis no negócio jurídico entabulado.
Também é óbice à regularização daquela situação de fato a própria irregularidade do loteamento, que muitas vezes não teve concluído todo o seu projeto de regularização, o que impossibilita o descerramento das matrículas e registro dos títulos daqueles compromissários compradores.
Em face de tantas dificuldades de ordem negocial, jurídica ou administrativa, a solução para que os ocupantes dessas áreas possam, finalmente, registrar sua propriedade, na maioria das vezes, acaba sendo a busca pela declaração de propriedade pela usucapião.
Mas não é essa, definitivamente, a única hipótese de manejo da usucapião.
Há tantas outras situação de posse por parte de suposto locatário, comodatário, coproprietário ou co-herdeiro, e tantos outros titulares de direitos possessórios sobre a coisa usucapienda.
E é dentro da ação de usucapião que serão citados os titulares de domínio da área usucapida, além de outras pessoas físicas e jurídicas de direito público, todos formando uma verdadeira hipótese de litisconsórcio passivo necessário e unitário.
Uma vez citado, o titular do domínio da área usucapida vai exercer sua resistência à declaração de propriedade em favor daquele que se diz possuidor, utilizando argumentos capazes de, se for de seu interesse, obstar a sentença de procedência ao final, buscando resguardar sua propriedade que está prestes a ser expropriada por aquele que se diz agora proprietário pela usucapião.
Meios processuais de defesa do titular do domínio
Na ação de usucapião, a citação do titular de domínio é feita com base nos dados que constam no Registro de Imóveis.
Pelo princípio da inscrição, somente será citado, na qualidade de proprietário, aquele que efetivamente estiver registrado como tal na matrícula ou transcrição correspondente. E com base no princípio da continuidade, a citação será feita na pessoa do atual proprietário.
Ainda hoje é muito comum, infelizmente, a existência de imóveis que não se encontram individualmente registrados junto à serventia imobiliária, o que significa dizer que, muitas vezes, o imóvel usucapiendo não traduz a descrição exata de determinado registro ou transcrição, mas sim imóvel inserido numa área maior de matrícula ou transcrição.
Para tanto, será necessária a descrição da exata área usucapienda, com produção de estudo e vistoria no local, assim como elaboração de planta e memorial descritivo, tudo com vistas à atender ao princípio da especialidade objetiva e subjetiva, atendendo, assim, aos requisitos do art.176, inciso II, da Lei 6.015/73, para a abertura de matrícula, em caso de procedência.
Como a citação do titular do domínio é feita com base nas informações que constam do registro, é recomendado que, antes do início das citações, seja dada oportunidade para que o Oficial do Registro de Imóveis da circunscrição competente preste informações ao juízo quanto a esse titular do domínio.
Também será de grande valia a complementação dessas informações em relação aos confrontantes tabulares, que também deverão ser citados na ação de usucapião.
Em muitas vezes, as informações do registro de imóveis estarão desatualizadas, já que não é costume de proprietários informarem alterações de estado ou mesmo o falecimento deles, por seus herdeiros.
Quanto a óbitos, eles são descobertos, na maior parte das vezes, apenas com levantamentos determinados pelo Juízo, para pesquisa quanto à existência de ações de inventário ou arrolamento e seus nomes.
Uma vez citado o titular do domínio, ou eventualmente seus herdeiros, ele poderá então, caso queira, apresentar sua defesa, em regra, contestação ou exceções previstas em lei.
Diz-se que ele poderá resistir ao pedido “caso queira” porque, embora se trate de expropriação, o próprio titular de domínio pode ter entabulado negócio jurídico com o autor da ação de usucapião; contudo, o título decorrente dessa avença não foi apto ao ingresso no registro imobiliário, por conter algum vício.
Neste cenário, como o titular do domínio, inclusive, já recebeu a quitação pelo negócio jurídico, a tendência é que ele não apresente resistência ao pedido de usucapião.
Toda ação de usucapião implica em litisconsórcio passivo necessário, com procuradores diferentes.
Então, o prazo para contestar será em dobro, pois sempre haverá procuradores diferentes (no mínimo, procuradores das partes e dos entes da federação), com a ressalva do art. 229 §2º do CPC. Além disso, o prazo de resposta somente passará a correr após o esgotamento do prazo do edital.
O titular do domínio não poderá oferecer oposição (art. 682 e seguintes do CPC), por falta de interesse de agir, assim como também não se mostra cabível o uso de intervenções legais por terceiro. A ação de usucapião é proposta erga omnes, o que motiva seu procedimento editalício e significa dizer que qualquer interessado, certo ou incerto, habilita-se como réu na ação dominial, podendo contestar o pedido, tudo a retirar o interesse de agir via de intervenção de terceiro.
Ao menos na ação de usucapião, não cabe ao titular do domínio requerer proteção possessória ou petitória, já que, tratando-se de uma ação na qual o pedido é exclusivamente declaratório, tais pedidos seriam completamente estranhos à competência funcional para julgamento das ações de usucapião, a depender das leis de organização judiciária locais.
No caso da capital do Estado de São Paulo, essa competência é privativa das Varas de Registros Públicos, que não têm, consequentemente, competência para julgar pedidos possessórios ou reivindicatórios.
Mas o problema não é apenas de competência.
A cumulação de defesa da usucapião com pedidos possessórios ou petitórios esbarra nos limites objetivos da lide, já que não há exata conexão entre o pedido inicial e outros eventuais pedidos protetivos feitos em contestação.
Assim sendo, a análise da posse no Juízo da usucapião se limita ao tempo exigido para a sua aquisição, com a consequente declaração de domínio, se for o caso; proteção possessória, por sua vez, é medida que deve ser requerida perante as Varas Cíveis do foro da situação do imóvel.
Dessa forma, pelas regras de organização judiciária do Estado de São Paulo, as Varas de Registros Públicos não têm competência para processar e julgar ações de despejo, possessórias ou petitórias, seja por livre distribuição, seja por eventual conexão.
Vale lembrar que a conexão, forma de derrogação de competência, somente se aplica à competência relativa. Competência absoluta, como a competência de Juízo prevista na lei de organização judiciária, é inderrogável.
Não haverá espaço, pelas mesmas razões, para pedidos reconvencionais de perdas e danos por parte do proprietário, o que deverá ser buscado, se for o caso, no Juízo Cível.
No tema de conexão, também não haverá, necessariamente, declaração de conexão e reunião de processos entre ações de usucapião e ações possessórias, mesmo que requerido pelo titular do domínio.
Primeiramente, porque pode haver conexão (art. 55 do CPC), mas, por outro lado, não haverá reunião de processos, seja por questão de incompetência absoluta em algum dos Juízos, já que só existe conexão se a competência for relativa (art. 54 do CPC), seja porque as ações podem estar em momentos processuais muitos distintos; haverá mais tumulto do que economia processual.
O caso poderá ser resolvido pela prejudicialidade externa, aguardando-se a conclusão de uma das ações para julgamento posterior da outra ação, mas isso nem sempre será necessário.
Aliás, muitas vezes sequer há de se falar em conexão entre ações possessórias, ações de despejo, com a ação de usucapião, ainda que envolvendo as mesmas partes e o mesmo imóvel.
A conexão exige que ao menos um de seus elementos objetivos (causa de pedir e/ou pedido) coincida com os da outra ação.
Nas ações possessórias, ou mesmo nas ações de despejo, a causa de pedir e pedido se fundam na injustiça da posse, no primeiro caso, e no desfazimento do contrato com retomada da coisa e cobrança eventual de aluguéis, no segundo.
Não há, portanto, finalidade dominial naquelas ações.
Na ação de usucapião, o escopo é, como se sabe, o reconhecimento da prescrição aquisitiva e consequente declaração de propriedade, sob o fundamento de posse qualificada.
Veja-se que, para se considerar a mesma causa de pedir, não basta a alegação de que, em ambas as demandas, o alicerce é a posse. E isso porque são situações possessórias que, em face do direito material, são qualificativamente diferentes.
Basta verificar que o possuidor legalmente protegido por meio de medida possessória pode não reunir os requisitos para usucapir.
Em suma, a posse que legitima o manejo dos interditos possessórios não é, absolutamente, a mesma que serve de base para a prescrição aquisitiva. Daí o equívoco do raciocínio imediato de conexão entre essas ações.[1]
Isso não significa, contudo, que uma ação não possa influenciar no julgamento da outra, mas não de forma automática e imediata. A decisão tomada na ação de despejo, na ação possessória, ou na petitória vão ingressar nos autos da usucapião como prova documental, cabendo ao Juiz a valoração dessas provas, na hora de decidir sobre a procedência ou não da usucapião.
Alegações de direito material trazidas pelo titular do domínio em ações de usucapião
Como dito anteriormente, por intermédio da sua contestação, o titular do domínio, ou seus herdeiros, poderá perfeitamente exercer sua defesa, resistindo à declaração de propriedade pela usucapião.
Sabidamente, pelo princípio da concentração dos atos processuais (art. 336 do CPC), competirá ao titular do domínio alegar toda e qualquer matéria de defesa na contestação, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretenda produzir.
Independentemente de qualquer fato superveniente, o prazo para defesa ou para novas alegações não é reaberto. A matéria controvertida já estará estabilizada com a apresentação da contestação pela preclusão consumativa.
As matérias de defesa, portanto, podem dizer respeito a questões técnicas ou a questões de fato.
Quanto à matéria técnica, como, por exemplo, falta de descrição exata da área usucapienda, falta de localização exata registral quanto ao registro que está sendo atingido, ou mesmo alegação de invasão de área de algum confrontante, a prova cabível será a pericial, com nomeação de perito (arquiteto ou engenheiro) para vistoria no local, medição da área e levantamento dos registros atingidos.
Por outro lado, se a defesa envolver matéria de fato, a prova será a documental ou oral, com designação de audiência de instrução e julgamento.
No campo dos fatos, é bastante comum a alegação, pelo titular do domínio, de que se trata de posse injusta, por violência ou clandestinidade.
Sucede que, em diversas situações, há ocupação da área por mais de uma década e, passados todos esses anos, nenhuma medida judicial foi tomada quanto a isso.A simples alegação de injustiça da posse não basta para demonstração de que ela, de fato, é violenta, clandestina ou mesmo precária.
Muitas vezes os autores exercem tanto a posse como se donos fossem que até ergueram sua residência no local por conta própria, permanecendo lá sem qualquer oposição, sem que nada fosse feito.
Isso nada mais é que a confissão dos requisitos da posse ad usucapionem.
Não obstante todo o descontentamento do titular do domínio, muitas vezes resta clara a ocupação longeva e pacífica dos autores, sem que fosse tomada qualquer providência para a formalização dessa situação ao longo do prazo da prescrição aquisitiva por parte do contestante.
Aliás, na lição do Ilustre Professor, Desembargador BENEDITO SILVÉRIO RIBEIRO:
A oposição à posse, hábil a quebrar a sua continuidade, não se resume em inconformismo, nem se limita a medidas indefinidas, precárias e inconsistentes, incapazes de qualquer solução.Oposição, no sentido que lhe emprestou o legislador, não significa inconformidade, nem tratativas com o fim de convencer alguém a demitir-se de se apossar de determinado imóvel. Antes, isso sim, traduz medidas efetivas, perfeitamente identificáveis na área judicial, visando a quebrar a continuidade da pose, opondo à vontade do possuidor uma outra vontade que lhe contesta o exercício dos poderes inerentes ao domínio qualificador da posse [2]
Pode o titular do domínio trazer, também, em sua defesa, alegação de comodato.
De fato, tratando-se de forma originária de aquisição da propriedade e de outros direitos reais, para sua concretização, a prescrição aquisitiva não se contenta com qualquer espécie de posse, sendo insuficiente a relação de origem justa que garanta o direito à proteção possessória, mas que não gere a usucapião.
O comodato, seja ele escrito, seja ele verbal, traduz empréstimo gratuito de bem infungível, por prazo determinado ou indeterminado. No primeiro caso, vencido o prazo, o comodatário tem o dever de restituição da coisa; no segundo caso, tão logo haja notificação pelo comodante, o comodatário deverá deixar o imóvel, dentro do prazo estipulado.
Não basta posse direta sobre a coisa, com a ciência de que ela não lhe pertença e com o reconhecimento inequívoco do direito dominial de outrem, sem prejuízo da obrigação a devolvê-la, caso seja provocado.
Havendo contrato de comodato, ainda que configurada a posse do autor, denota-se claramenteque ela não se deu com o animus domini capaz de configurar a prescrição aquisitiva, diante de sua manifesta precariedade.
Sob outro enfoque, contudo, há casos em que existe mera alegação de comodato, mas não existe a configuração do contrato em si.
Isso porque a mera tolerância do titular do domínio não traduz, por si só, contrato de comodato verbal duradouro e prorrogável periodicamente.
O comodato, ainda que verbal, exige mais do que mera tolerância: é preciso que a avença seja pautada pela periodicidade da renovação, pela presença constante (ainda que não permanente) do comodante e pela permanente comunicação entre comodante e comodatário.
Se o comodato não tem prazo, é preciso que se exija a restituição da coisa quando cumprida a sua finalidade. Se não tem prazo e nem finalidade, então não é comodato.
Muitas vezes o titular do domínio não diz, em momento algum, qual era o prazo ou então a finalidade do comodato.E teria de haver alguma, para que, uma vez esgotada, o bem retornasse ao comodante.
Se não houver alegação de comodato, muitas vezes a contestação alega existência de contrato de locação.
Por sua precariedade, a posse decorrente de relação locatícia não é apta a ensejar a usucapião, pelas mesmas razões que obstam a declaração em favor do comodatário.
Ao titular do domínio, o ideal será a existência de contrato de locação por escrito, mas isso raramente ocorre nas ações de usucapião.
Mesmo sendo o caso de locação verbal, o titular do domínio poderá trazer aos autos, caso tenha sido precavido, cópias de recibos de pagamento de aluguel, ou de eventual notificação judicial ou extrajudicial para a desocupação do imóvel pelo locatário, o que servirá de prova contundente de existência de relação locatícia.
Paralelamente, a posse poderá ter se iniciado por locação, mas, com o passar do tempo, seja por desinteresse, seja por morte do titular do domínio, os aluguéis pararam se ser pagos, sem que fosse tomada qualquer medida de cobrança ou de despejo contra o então locatário.
Neste cenário, ainda que a posse tenha se iniciado por locação, restará caracterizada a transmudação da natureza dessa posse, especialmente quando cessarem os pagamentos dos aluguéis e o vínculo contratual, sem que fosse tomada qualquer providência para a formalização dessa situação ao longo do prazo da prescrição aquisitiva.
Ora, aquele que está ocupando o bem pode, por atos próprios, assumir a sua posse integral a partir do momento em que passa a exercer atos em seu nome, com exclusão de todos os outros eventuais proprietários, agindo como se dono fosse e assim parecendo aos olhos de quem observe tal situação fática que se perdura.
Neste cenário, à míngua de qualquer início de prova documental dessa relação locatícia, nem mesmo a audiência de instrução e julgamento poderá, no mais das vezes, salvaguardar a tese de locação. Não poderiam duas ou três testemunhas, ainda que com discurso unânime, comprovar uma relação locatícia sem qualquer rastro de prova documental.
Conclusão
Dentre tantas formas de resistência à declaração de propriedade pela usucapião, as hipóteses acima descritas são apenas alguns dos exemplos mais comuns em matéria de defesa por parte de titulares de domínio.
Percebe-se que, para essas e outras hipóteses, dificilmente haverá uma resposta clara e automática sobre a procedência ou não do pedido inicial; tudo dependerá das alegações das partes e das provas produzidas.
A solução, portanto, estará sempre focada em duas espécies de condutas paralelas, a conduta do possuidor que sustenta a aquisição da propriedade pela usucapião e, de outro lado, a conduta do titular do domínio ao longo desse período. O que cada uma dessas partes fez, ou deixou de fazer, ao longo dos anos.
De um lado, uma conduta comissiva do autor da ação, supostamente ocupante do imóvel como se proprietário fosse, de forma pública e pacífica, aos olhos de todos que estejam presenciando aquela situação de fato; do outro lado haverá o titular do domínio, ou seus herdeiros, em conduta de zelo e manutenção de sua propriedade, ou em conduta omissiva, nada fazendo quanto àquela primeira situação.
Não haverá sentença justa em ação de usucapião sem a delicada e profunda análise das condutas tomadas pelas partes envolvidas.
Paulo Cesar Batista dos Santos – Juiz Auxiliar da 1ª. Vara de Registros Públicos da Capital/SP. Mestrando pela Universidade de Samford/EUA. Especializando em Direito Registral e Notarial/EPM. Pós-graduado pela Escola Superior do Ministério Público Federal, Brasília/DF.
[1] Como já decidiu o E. Superior Tribunal de Justiça, “(…) Inexiste prejudicialidade externa que justifique a suspensão da possessória até que se julgue a usucapião anteriormente ajuizada, pois a posse não depende da propriedade e, por conseguinte, a tutela da posse pode dar-se mesmo contra a propriedade.” (Recurso Especial Nº 1.398.658 – SC (2013/0271275-0), Rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA).
[2](RIBEIRO, Benedito Silvério, in “Tratado de Usucapião”, vol. 1, págs. 65/656, Saraiva.).
Fonte: iRegistradores