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O intrincado uso de imóveis para quitação de dívidas tributáriasA possibilidade de entregar imóveis em pagamento de dívidas tributárias foi inserida no Código Tributário Nacional há quinze anos, por meio da Lei Complementar 104/2001. Não obstante, no âmbito federal, esta norma não surtia efeitos, em virtude da falta de lei que regulamentasse a forma e condições de aplicação do instituto, denominado dação em pagamento. Com a edição extra do DOU de 17 de março último, foi publicada a Lei 13.259, a qual finalmente trouxe o esperado regulamento. Muito embora esta nova norma se mostrasse de fato lacunosa, em tese, se prestava a dar efetividade a um importante direito do contribuinte, de grande relevo em tempos de crise. Eis que, doze dias depois, a recentíssima regulamentação foi sensivelmente alterada, por meio da Medida Provisória 719, que acabou por exigir mais uma norma regulamentadora, desta vez a ser editada pelo Ministério da Fazenda. Enquanto se aguarda a definição, pelo Congresso, sobre a conversão da citada Medida Provisória em lei, interessante traçar um comparativo dos dois regulamentos, ambos carregados de restrições de questionável legalidade. O seguinte quadro resume bem a questão:
Críticas O fato de a Medida Provisória 719 restringir a possibilidade de dação em pagamento apenas para créditos tributários já inscritos em Dívida Ativa da União gera gravame desnecessário ao contribuinte. É que, na simples inscrição em Dívida Ativa, o débito do contribuinte aumenta em 10%, sendo acrescidos outros 10% quando há ajuizamento de execução fiscal. Não se questiona a legitimidade deste encargo legal — utilizado para agravar a situação daquele que posterga o pagamento. Mas forçar o contribuinte que quer fazer a dação a aguardar a inscrição, aumentando-se sua dívida em no mínimo 10%, não se mostra justificável. Mais razoável seria permitir a dação após a constituição definitiva do crédito tributário, como previsto na Lei 13.259. Outro fator importante refere-se à aplicação da dação para os casos de execução fiscal já ajuizada, em especial naqueles em que o crédito tributário encontra-se garantido por depósito judicial. Considerando-se que a dação é modalidade de extinção do crédito tributário, exatamente como a conversão de depósitos em renda ou o pagamento, em princípio não deve haver distinção entre as formas de quitação da dívida, não se podendo falar em escolha ou preferência da Fazenda Pública. Portanto, mesmo que haja depósito, poderá ser feita a dação (desde que observados os critérios legais), levantando o contribuinte o valor que garantia o Juízo. Aliás, o artigo 156 do CTN, ao dispor sobre as modalidades de extinção, não as diferencia, tampouco estabelece ordem de preferência para o Fisco. Destaque-se: o artigo 11 da Lei de Execuções Fiscais, que estabelece ordem de preferência (dinheiro em primeiro lugar, imóveis em quinto), trata de penhora e arresto, formas de garantia da execução, não sendo aplicáveis para hipótese de extinção do crédito tributário. Permitir que a dação seja realizada “a critério do credor”, como previsto na Medida Provisória 719, viabiliza pensar numa certa discricionariedade da autoridade fiscal para aceitar a forma de pagamento, o que soa incompatível quando se está tratando de modalidades de extinção de crédito tributário. A redação prevista na Lei 13.259 soa mais isonômica, muito embora também não traga regras claras sobre as hipóteses de cabimento da dação. Neste aspecto, as duas normas deixam a desejar, já que não estabelecem critérios minimamente objetivos para a aceitação da dação pela Fazenda. Independentemente do diploma legal que vier a prevalecer, forte regulamentação será exigida para esta questão, quiçá a mais sensível dentre as debatidas, a merecer aprofundamento não compatível com o formato do presente texto. A vedação da aplicação do instituto da dação aos créditos tributários referentes ao Simples, veiculada apenas na Medida Provisória, não parece ser legítima. É bem verdade que os créditos apurados no regime do Simples incluem valores devidos não apenas à União, sendo certo que não seria dado ao ente Federal tratar da dação em pagamento aos estados e municípios. Esta questão, entretanto, poderia ser resolvida mediante simples cômputo prévio daquilo que é devido à União, aplicando-se a forma de pagamento sob estudo para esta parte apenas. De se ressaltar que o Código Tributário Nacional não traz qualquer ressalva quanto à impossibilidade de aplicação do instituto para créditos do Simples, referindo-se a créditos tributários em geral. A par disso, importante observar que a própria Constituição Federal garante “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sobre as leis brasileiras e que tenham a sua sede e administração no País” (artigo 170, IX). Dessa maneira, não faz sentido tratar as empresas do Simples de modo mais gravoso. Ainda assim, o cenário não parece favorável aos devedores do Simples. É que há os que defendam a legitimidade de exclusões dos adeptos do Simples de programas de reparcelamentos de dívidas tributárias, sob o fundamento de que tais contribuintes já teriam as benesses de uma carga tributária bastante reduzida, o que justificaria a negativa de outros benefícios. Muito embora esta posição seja questionável, é a que tem prevalecido no âmbito judicial[i], com boa probabilidade de vir a ser aplicada para a questão da dação em pagamento. Aqueles casos em que a dação envolver imóvel de valor menor do que a dívida estão facilmente resolvidos por ambas as normas: a diferença será paga em dinheiro. Todavia, nas hipóteses em que o valor do imóvel for maior, Lei e Medida Provisória restaram silentes. Poderia o contribuinte ficar com créditos a compensar junto à Fazenda Pública? Para que isto fosse viável, em princípio, seria necessário regramento desta hipótese de compensação, ainda não existente. Há ainda outros fatores, como a existência concomitante de diversas dívidas e a possibilidade de quitá-las todas mediante dação de um único imóvel. Embora admitida pelas normas, esta hipótese seria de difícil implementação prática, em especial se as dívidas estiverem em fases muito distintas de cobrança. Uma boa regulamentação neste ponto também seria salutar. A Medida Provisória anda bem ao dispensar a necessidade de avaliação judicial. Judicializar a questão não seria garantia de avaliações corretas, sendo certo que exercer papel de avaliador de imóveis está distante da função do Judiciário, já tão assoberbado. No entanto, para dar solução à questão, a Medida Provisória acabou por remeter para o Ministério da Fazenda a atribuição de editar norma regulamentadora da sistemática de avaliação. Ao assim agir, além de malferir o próprio inciso XI, do artigo 156, do Código Tributário Nacional — que determina que sua regulamentação dar-se-á “na forma e condições estabelecidas em lei” em sentido estrito — a Medida Provisória, na prática, nos remete ao estado anterior: ter que aguardar por uma regulamentação sem data prevista para acontecer. Em a Medida Provisória sendo aprovada, será aplicável para os pedidos de dação feitos após sua edição. Ainda assim, haverá os pedidos feitos com base na lei original, durante seus 12 dias de vigência anteriores. Quer-se crer que tais pedidos são legítimos, eis que a lei que lhes é aplicável não parece exigir, necessariamente, regulamentação extra para imediata aplicação. Neste cenário, teríamos dois instrumentos normativos a tratar da dação, cada qual para um período diferente. Em outras palavras, é possível que se tenha que desenvolver os dois regimes de dação. Como se já não houvesse questões suficientes a serem operacionalizadas pelo Fisco. A falta de cuidado do Estado em relação à legislação tributária mostrou-se mais uma vez evidente. Ao invés de se vetar a lei, houve sua sanção, para depois de 12 dias, editar-se nova norma. Muito embora, nestas breves considerações, não tenha sido possível esgotar a análise de todos os pontos relativos à dação em pagamento sob análise, do breve panorama exposto é possível concluir que a norma regulamentadora — seja a Lei 13.259, seja a Medida Provisória 719 — ressente-se em muitos pontos de razoabilidade e boa técnica. Perde o Fisco, que deixa de receber com maior agilidade os pagamentos. Perdem os contribuintes, que passam a se sujeitar a novas situações de insegurança jurídica. Carolina Mizuta é advogada, membro do Instituto de Direito Tributário do Paraná, membro do Núcleo de Direito Tributário Aplicado da FGV Direito SP e aluna do Mestrado Profissional da FGV Direito SP. Fonte: Revista Consultor Jurídico |
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