A sanção presidencial do projeto de lei que regulamenta a guarda compartilhada obrigatória em separação litigiosa vai aumentar as demandas judiciais. É o que adverte o juiz de Direito e professor da Universidade Federal da Bahia, Pablo Stolze Gagliano. Para ele, os pais que não têm um relacionamento bom, vão buscar a solução na Justiça sempre que houver uma divergência sobre o que acham ser melhor para os filhos. “Eles [o casal] vão judicializar tudo. Da escolha do lanche na escola a cor do cadarço do sapato”, pondera. Em entrevista à Revista Eletrônica Consultor Jurídico, Stolze disse que não mudaria a atual redação do Código Civil neste ponto, mas defendeu uma regulamentação da guarda alternada. "As normas do projeto deixam a impressão que se queria regulamentar a guarda alternada, mas acabou reverberando no âmbito da compartilhada, impondo modelo obrigatório, que eu não acho razoável", afirmou. Ele acredita que, da forma como foi criado, o projeto pode não atingir a meta que pretendeu. "Muito difícil implantar um modelo obrigatório em situação que não tem acordo e diálogo. O projeto não dá ao juiz uma margem de espaço para que não implante a guarda compartilhada, em situações em que perceba um dano existencial a criança", afirmou. Stolze integra uma nova geração de juristas baianos. Aos 39 anos, é mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Há 15 anos, como juiz de Direito, Stolze já escreveu mais de uma dezena de livros. A sua obra mais conhecida é o “Novo curso de Direito Civil”, em parceria com o professor e juiz do Trabalho, Rodolfo Pamplona. Também é membro da Academia Brasileira de Direito Civil. Leia a entrevista: ConJur — O Senado Federal aprovou projeto de lei que regulamenta a guarda compartilhada de pais divorciados, mesmo que não haja acordo sobre a custódia dos filhos. Qual a sua opinião sobre este projeto? Pablo Stolze — O projeto me causou um pouco de preocupação. A guarda compartilhada é o melhor modelo de guarda, sem discussão, pois incentiva a concórdia e a harmonia dos pais. Mas, para implantar o modelo de guarda compartilhada deve haver um mínimo de diálogo entre os pais. Imagina um casal que se deteste e que não se fale, como é que o juiz obriga o compartilhamento da guarda? O resultado disto vai ser o aumento das demandas judiciais. O casal vai judicializar tudo: da escolha do lanche na escola a cor do cadarço do sapato. Então, a guarda compartilhada, em algumas situações, pode ser imposta quando possível. O que não dá é ter uma lei, que obrigue o juiz, em qualquer caso, desde que um não renuncie a guarda, impor a guarda compartilhada. Tem que haver um mínimo de diálogo. Eu até pondero se isto [projeto] é constitucional. Passando por um filtro constitucional, talvez, esbarre no princípio da proteção integral da criança e do adolescente. ConJur — O senhor acredita que o projeto não atenderá ao objetivo para o qual foi criado? Pablo Stolze — No modo como o projeto está pode não atingir a meta que pretendeu. Muito difícil implantar um modelo obrigatório em situação que não tem acordo e diálogo. O projeto não dá ao juiz uma margem de espaço para que não implante a guarda compartilhada, em situações em que perceba um dano existencial a criança. É muito difícil. ConJur — Como seria o modelo de guarda ideal? Pablo Stolze — A atual dicção do Código Civil já permite que se imponha a guarda compartilhada, quando possível, em situações excepcionais. Eu não alteraria a redação do Código Civil atual neste ponto. O que o projeto poderia ter feito é regular a guarda alternada. As normas do projeto deixam a impressão que se queria regulamentar a guarda alternada, mas acabou reverberando no âmbito da compartilhada, impondo modelo obrigatório, que eu não acho razoável. ConJur — A guarda compartilhada evita a alienação parental? Pablo Stolze — A guarda compartilhada tende a evitar alienação parental quando existe acordo. Mas, se não houver acordo, a alienação vai ganhar mais espaço ainda. ConJur — Há uma interferência do Estado na vida privada ao impor a guarda compartilhada? Pablo Stolze — Quando há um acordo, não. Impor um modelo obrigatório [de guarda compartilhada] é uma interferência, de certa forma. ConJur — Qual o limite do Estado de interferir na vida privada? Pablo Stolze — Dizer o limite entre o público e o privado num conceito apriorístico é impossível. Não há como responder isto, não é matemático. Em alguns momentos, o Estado brasileiro interfere demais na vida privada. ConJur — O STJ acerta ao estabelecer indenização por abandono afetivo? Pablo Stolze — Sim. Eu penso que a indenização por abandono afetivo se justifica a luz do principio da função social e pela natureza pedagógica da indenização. ConJur — O Código Civil brasileiro completou 12 anos em vigor, em 2014. Qual a avaliação que o senhor faz deste código? Pablo Stolze — Um código não muda a realidade da gente. O que muda é a postura. A lei não vai mudar nossa realidade, pode auxiliar, mas a mudança parte de dentro para fora. O grande avanço do Direito não se deu propriamente com o Código Civil de 2002, mas sim com a constitucionalização do Direito Civil, que já se processava antes. ConJur — Houve uma mudança social por conta do Código? Pablo Stolze — Sempre parto da premissa de que a mudança social deve ser endógena. É claro que a lei ajuda. Um exemplo é a lei que estabeleceu a necessidade do cinto de segurança, educou muita gente. Então o código em muitos pontos ajudou, mas em outros também precisa de reforma urgente. ConJur — Em que ponto o Código precisa de reforma? Pablo Stolze — O Direito Sucessório da companheira é um exemplo. O Código fez um regramento duríssimo para companheira, colocando-a numa situação pior do que um primo do falecido. Antigamente, ela tinha o regramento das leis de 94 e 96 que traziam uma situação próxima a da esposa. Na minha opinião, deve ser assim. Mas, hoje, a companheira pode receber no campo da herança menos que um primo do falecido. Na minha visão, houve uma violação ao princípio constitucional da vedação do retrocesso. Entendo, inclusive, que este dispositivo é inconstitucional. ConJur — As famílias poliafetivas devem ser reconhecidas pelo Judiciário? Pablo Stolze — Sim. Se o núcleo poliafetivo é estável e ao longo dos anos formou família, como negar? É o afeto que diz o que é família. ConJur — O Judiciário não estaria legislando neste caso? Pablo Stolze — Não. Reconhecer judicialmente não é legislar, neste caso. O que não se admite é deixar estas pessoas à margem da lei. ConJur — O STF, quando reconheceu a união homoafetiva, não legislou? Pablo Stolze — Isso está relacionado com a temática muito bem trabalhada pelo professor Luís Roberto Barroso, que é o ativismo judicial. O Judiciário pode atuar proativamente quando o legislador não atua, existe uma possibilidade de fazer isto. O Supremo atua proativamente em muitos casos, talvez, pelo fato do mandado de injunção não funcionar bem no Brasil. O que não pode haver é um excesso. Mas, volto a minha premissa, será que neste caso temos um ativismo tão visível ou o reconhecimento de um fato da vida? Então não é legislar, é reconhecer um fato da vida. É um ativismo proativo sim, saudável e necessário, porque o Judiciário não pode se furtar a prestar jurisdição. ConJur — Mas há quem defenda que o Supremo legislar é uma ameaça a democracia. Pablo Stolze — Ameaça a democracia é a falta de respeito e a omissão dos poderes no cumprimento dos seus deveres. ConJur — Por que o senhor é contra a legítima? Pablo Stolze — Acho que a legítima é muito mais causa de misérias no Judiciário do que de amparo. O que a gente vê com a legítima são filhos que querem que seus pais morram, irmãos que se detestam, parentes que brigam durante anos. A legítima deveria ser preservada enquanto houvesse filhos incapazes. Se meus filhos são capazes, a minha obrigação é dar amor, afeto e educação. Com o patrimônio, faz-se o que quiser: deixar para alguma ONG, hospital de combate ao câncer. Mas, hoje, não é possível porque existe a legítima. ConJur — O senhor é a favor do regime de separação de bens obrigatório para maiores de 70 anos? Pablo Stolze — Não. É inconstitucional. Isto cria uma vedação absurda. Com 70 anos, a pessoa pode ser senadora, pode ser presidente da República, mas não pode escolher o regime de bens do seu casamento? Não tem lógico isto. ConJur — O STJ reconheceu o direito ao esquecimento no caso da Chacina da Candelária. No caso da apresentadora Xuxa Meneghel, o STF negou o mesmo direito. Como o senhor avalia estas duas situações? Pablo Stolze — Não dá pra eu dar uma opinião específica em cada caso. O fato é que em qualquer raciocínio que se faça sobre direito ao esquecimento se lida com a teoria da ponderação de interesses. Você analisa os interesses que estão em jogo, e pesa à luz da proporcionalidade. É o tipo da situação que só analisando o caso concreto o juiz pode chegar a uma conclusão. No Brasil, a gente precisa de uma regulamentação mais específica. Talvez, um projeto mais definitivo sobre o direito ao esquecimento. Na verdade, foi um assunto que veio à tona com mais força no Brasil nos últimos anos. ConJur — O STJ tem reconhecido o direito do transexual de mudar de nome ainda que não tenha feito a mudança de sexo. Qual a sua opinião sobre isto? Pablo Stolze — Sou totalmente favorável que a pessoa busque sua realização pessoal, sua felicidade. ConJur — Se após o casamento o parceiro descobre que seu companheiro é transexual, ele deve ter o direito a indenização? Pablo Stolze — O transexual pode casar com qualquer pessoa. Mas se não é relevada a situação anterior e a esposa ou o marido só descobre depois de casada, o casamento pode ser anulado e pode gerar, em tese, responsabilidade civil. O fato é que se o transexual vai casar tem que comunicar a mudança de sexo. O casamento é um ato supremo de intimidade afetiva. Então, se o outro descobre depois de casado, isto pode gerar invalidade do casamento. ConJur — Como avalia os juizados especiais? Pablo Stolze — É um modelo que quanto mais aperfeiçoado melhor para a população, porque as respostas tendem a ser mais rápidas. Nem sempre são, pois tem acúmulos de processos. Mas a estrutura do juizado é muito mais facilitada do que a da Justiça comum. ConJur — A Suprema Corte brasileira fundamenta bem as suas decisões? Pablo Stolze — Sim. Penso que o Supremo poderia, talvez, aumentar o número de ministros. O Supremo tem tido, nos últimos anos, um caráter cada vez mais de Corte Constitucional. Sou a favor disto. Antes, havia enxurrada de processos, como instância de quarto grau. Deve ter este viés constitucional para que possa ter mais tempo para decidir. ConJur — O que pensa sobre a forma de escolha para ministros do STF? Pablo Stolze — A escolha para ministro do Supremo deveria ser modificada. Não devia passar pelo Poder Executivo. Deveria ter uma estrutura de carreira própria do Judiciário. Hoje, se analisar o Supremo, poucos são os juízes de carreira que chegam lá. |