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23/10/2014

Qualificação registral e crime de desobediência

A advogada, Silvia Dip faz uma análise sobre a autonomia do registrador contrastada por ordens judiciais que, recusando-lhes, ainda que de modo implícito, o exercício da qualificação registral, indicam a vizinhança de crime de desobediência.

Autonomia registral – independência jurídica

Tem sido comum recebam os registradores ofícios e mandados judiciais, com exigência da prática inquestionada de registros e averbações sob pena de crime de desobediência e ameaça de medida de prisão.

A autonomia registral, atributo legal de todo registrador, está posta em xeque. Ao registrador de imóveis, delegatário de serviço público (art. 236, da CF) e profissional de direito (art. 3º, da Lei n. 8.935/94), a lei conferiu independência no exercício de suas atribuições (artigo 28, da Lei n. 8.935), a ele incumbindo o direito e dever de qualificação dos títulos apresentados para fins de registro, incluídos os títulos judiciais, submetidos a possível revisão administrativa (art. 198, da Lei n. 6.015/73, e art. 30, inciso XIII, Lei n. 8.935).

Ao impor-se o cumprimento da ordem de registro sob pena de desobediência, impede-se ao Oficial de Registro o exame das formalidades registrais, de que é ele guardião, guardião que atua até mesmo sob o peso de tríplice responsabilidade: civil, penal e administrativa (artigos 22 a 24 e 31 a 36, da Lei n. 8.935) e que, em última análise, é instrumento de garantia de um direito fundamental de primeira geração, o direito de propriedade (artigo 5º, caput, da CF).

Já isso seria bastante para, em observância do devido processo legal para o registro de um título, preservar-se a faculdade de o registrador qualificar negativamente esse título, sem a ameaça de incriminar-se pelo só cumprimento de uma de suas legais funções jurídicas.

Nessa linha, num julgado recente do egrégio Supremo Tribunal Federal, de que foi relator o Ministro Marco Aurélio, está assim ementado:

“O cumprimento do dever imposto pela Lei de Registros Públicos, cogitando-se de deficiência de carta de adjudicação e levantando-se dúvida perante o juízo de direito da vara competente, longe fica de configurar ato passível de enquadramento no artigo 330 do Código Penal – crime de desobediência -, pouco importando o acolhimento, sob o ângulo judicial, do que suscitado” (Habeas Corpus 85.911/9-MG).

Crime de desobediência?

Vai-se além, entretanto, porque esses títulos judiciais ferem também a lei penal material.O tipo objetivo do crime de desobediência inscrito no artigo 330, do CP estampa: “Desobedecer a ordem legal de funcionário público”, e está inserido no Capítulo II do Título XI da Parte Especial desse Código, capítulo que se denomina “Dos crimes praticados por particular contra a Administração em geral”.Trata-se de crime em que o sujeito ativo é o extraneus, a que se só pode concorrer como co-autor ou partícipe o funcionário público na definição do Código Penal (artigo 327, caput), conceito que abrange o registrador de imóveis.No direito penal, o princípio da reserva legal exige que os textos normativos sejam interpretados sem ampliações ou equiparações por analogia, salvo, talvez, quando in bonam partem.

O registrador público e o tabelião são agentes públicos (art. 236, da CF), e, para os efeitos penais, funcionários públicos (art. 327, caput, do CP). Disso deriva a admissibilidade de serem eles sujeitos ativos dos crimes funcionais (art. 312 a 326, do CP).

No entanto, o delito de desobediência, previsto no art. 330 do CP, é crime contra a administração pública que só pode ser praticado por particular. Assim, enquanto o Capítulo I do Título XI dessa Parte Especial cuida dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral, o Capítulo II trata dos crimes praticados por particular contra essa mesma administração em geral. Como é nesse Capítulo II que se encontra a previsão normativa do delito de desobediência, assim o sujeito ativo desse crime só pode ser o particular ou o funcionário público atuando fora de sua função.

Esse entendimento é comum na doutrina e na jurisprudência brasileiras (assim sustentam Nélson Hungria, Magalhães Noronha, Fabrinni Mirabete, Damásio de Jesus; nesse mesmo sentido, mais recentemente, a Revista de Direito Imobiliário publicou artigo de Ricardo Dip, então Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo).

Nesse diapasão, recolhe-se da jurisprudência:

“O crime de desobediência somente é praticado por agente público quando este está agindo como particular. Cód. Penal, art. 330. II. – O prefeito municipal que, quando no exercício de suas funções, deixa de cumprir ordem judicial, não comete crime de desobediência e, sim, o denominado crime de responsabilidade, tipificado no art. 1º, XIV, do D.L. 201/67, que é, na verdade, crime comum (HHCC 69.428, 70.252 e 69.850)” (Habeas Corpus n. 76.888, relatado pelo Ministro Carlos Velloso, na 2ª Turma do egrégio Supremo Tribunal Federal).

“O paciente -prefeito municipal, agindo em tal condição- não cometeu o delito capitulado no artigo 330 do Código Penal, ilícito previsto no Título XI, no Capítulo II, que cuida dos crimes praticados por particular contra a administração” (Habeas Corpus n. 71.875-2, relatado pelo Ministro Francisco Resek, na 2ª Turma do egrégio Supremo Tribunal Federal).

“Crime de desobediência: só excepcionalmente tem por sujeito ativo funcionário público (…). Acresce a circunstância de filiar o Código Penal, a espécie delitiva em causa, ao gênero de condutas cujo sujeito ativo é um particular” (Habeas corpus n. 64.142-3, relatado pelo Ministro Célio Borja, na 2ª Turma do egrégio Supremo Tribunal Federal).

“(…) atipicidade do delito de desobediência, quando em caso omissão de ato funcional de servidor público” (Habeas corpus n. 5043, relatado pelo Ministro José Dantas, na 5ª Turma do egrégio Superior Tribunal de Justiça).

“(…) o crime de desobediência definido no art. 330 do CP só ocorre quando praticado por particular contra a Administração Pública, nele não incidindo a conduta do Prefeito Municipal, no exercício de suas funções. É que o Prefeito Municipal, nestas circunstâncias, está revestido da condição de funcionário público” (Recurso ordinário em habeas corpus n. 7990, relatado pelo Ministro Fernando Gonçalves, na 6ª Turma do egrégio Superior Tribunal de Justiça).

“Os dirigentes de entidade integrante da Administração Pública Indireta, no exercício de suas funções, não cometem o crime de desobediência, pois tal delito pressupõe a atuação criminosa do particular contra a Administração” (Recurso ordinário em habeas corpus n. 9.066, relatado pelo Ministro Vicente Leal, na 6ª Turma do egrégio Superior Tribunal de Justiça).”O funcionário público, atuando nessa condição, não pratica crime próprio de particular contra a Administração Pública” (Recurso ordinário em habeas corpus n. 5.327, relatado pelo Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, na 6ª Turma do egrégio Superior Tribunal de Justiça).

No mesmo sentido: Inquéritos n. 1.757-4 e 1.931-3, decididos pelo Ministro Nelson Jobim, do egrégio Supremo Tribunal Federal; Petição 1.999, decidida pelo Ministro Néri da Silveira; Petição n. 3.081-8, decidida pelo Ministro Carlos Velloso; RHC n. 9.189, relatado pelo Ministro Vicente Leal, na 6ª Turma do egrégio Superior Tribunal de Justiça; HC n. 1.294, relatado pelo Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, na 6ª Turma do egrégio Superior Tribunal de Justiça.

Prevaricação

Outra questão que se põe, e que também será brevemente analisada, é a da adequação típico-objetiva do crime de prevaricação em caso de cumprimento de ordem judicial que se saiba ilícita.

Prevaricar é retardar ou deixar de praticar, o funcionário público, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal (art. 319, do CP).

Ato de ofício é o que se “compreende nas atribuições do funcionário, ou em sua competência, ou seja, ato administrativo ou judicial” (Magalhães Noronha, Direito Penal, 1995, v. IV, p. 258). O dolo específico desse delito é a satisfação de interesse ou sentimento pessoal: “Não haverá este crime se o agente retarda ou omite ato de ofício que, se praticado, poderia acarretar a responsabilidade penal ou administrativa dele próprio” (Delmanto, Código Penal Comentado, 2002, p. 637).

Desse modo, negar o registro porque o título aflige a legalidade, crime não é, embora possa sê-lo praticar um registro, com ilegalidade admitida, para satisfazer interesse pessoal.

A propósito, já se decidiu que os mandados judiciais devem respeitar a autonomia registral:

“Oficial de Cartório de Registro de Imóveis – Crime de prevaricação – Impossibilidade de atendimento de ordem judicial – Determinação para substituir matrícula em área apurada em memorial – Cumprimento de dever de ofício – Dúvida levantada – Habeas corpus concedido para trancar inquérito policial” (RT 719/426, Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo).

Prisão em flagrante?

De qualquer forma, ainda que fundada fosse alguma tipificação penal para o ato do registrador, em nenhuma o descumprimento da ordem judicial poderia levar à prisão em flagrante do registrador. É que o crime de desobediência, regido pela Lei 9.099/95, proíbe a prisão em flagrante no caso de promessa de comparecimento do suposto infrator ao Juizado (art. 69, parágrafo único).

Por outro lado, o crime de prevaricação tem o procedimento dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos (art. 513 e seguintes, do CPP) que exige a notificação prévia do acusado para apresentar resposta, a fim de evitar queixas infundadas contra os servidores públicos, e, por analogia in bonam partem, são-lhes aplicados os benefícios previstos na Lei 10.259/01 (analogia essa defendida por, entre muitos outros, José Renato Nalini, Alberto Silva Franco, Damásio de Jesus, na linha de firme jurisprudência, de que discrepam Volney Corrêa de Moraes e Ricardo Dip).

Silvia Dip é advogada em São Paulo (silvia@dipemeccia.adv.br)


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