Ultimamente os municípios têm investido com freqüência contra as unidades de serviços notariais e de registros para a cobrança da chamada “taxa de licença”, como forma de viabilizar a expedição pelas prefeituras do respectivo alvará de funcionamento para os cartórios.
Para enfrentar a questão, de saída, há de considerar que os serviços notariais e de registros possuem natureza pública. Já não é novidade que a atividade notarial e registral, desde o advento da Constituição Federal de 1988, possui roupagem peculiar, caracterizando-se pelo exercício privado de uma função pública, mediante delegação do Poder Público (art. 236, caput, da CF).
Nesse trilho, os serviços de registro e notariais são públicos, não afastando esta característica o fato de serem prestados em caráter privado por particulares. Segundo a doutrina, inclusive, seus atores enquadram-se na categoria de particulares em colaboração com o Estado, de modo que as unidades para as quais receberam a delegação do Poder Público são consideradas parte integrante da organização judiciária, como serventias do foro extrajudicial.
Em outros dizeres, apesar dos atos notariais e de registro serem exercidos em caráter privado – porque eles não são remunerados pelos cofres públicos, mas sim pelo pagamento de custas e emolumentos que lhes fazem os interessados nos respectivos serviços –, tal circunstância não desnatura a natureza dos referidos serviços, que são sabidamente públicos. São, em realidade, atividades jurídicas próprias do Estado, cuja prestação é traspassada para os particulares mediante delegação. Vale dizer, notários e registradores atuam como delegados do Poder Público.
Nesse caminho, colhe-se elucidativo raciocínio de José Cretella Júnior: “Relembre-se que o serviço público tem esse caráter, não em si e por si, em essência – serviço público material – mas ‘em razão de quem o fornece’. Se o Estado titulariza certo serviço – ensino, transporte, a atividade é, formalmente, serviço público. Os serviços notariais e de registro cabem, por sua relevância, ao Estado, mas os Poderes Públicos, por delegação, permitem que sejam exercidos em caráter privado”. 1
Com arrimo nessas ponderações iniciais, faz-se necessário considerar que os serviços notariais e de registros não podem ser equiparados às atividades comerciais comuns ou mesmo assemelhados a qualquer serviço prestado em iniciativa privada. Colaciona-se nessa linha de pensamento manifestação precisa deAna Luísa de Oliveira Nazar de Arruda: “Muito salutar é, entretanto, salientar efusivamente que um cartório não pode ser equiparado a uma empresa privada, em que se prestam serviços de caráter privado, essencialmente disponíveis, muitas vezes supérfluos, e de natureza eminentemente contratual. Os serviços notariais e de registro são de natureza compulsória, de caráter público, cuja prestação interessa a toda sociedade”. 2
Sedimentada esta premissa, indaga-se: afinal, o que é alvará?
Hely Lopes Meirelles sempre ensinou que “Alvará é o instrumento de licença ou da autorização para a prática de ato, realização de atividade ou exercício de direito dependente de policiamento administrativo. É o consentimento formal da Administração à pretensão do administrado, quando manifestada em forma legal.” 3
A partir do conceito fornecido pela clássica doutrina administrativista vê-se que “alvará” nada mais é do que um ato administrativo pelo qual a Administração Pública confere licença ou autorização para a prática de ato ou para o exercício de atividade sujeitos ao poder de polícia do Estado – tomada aqui a expressão “Estado” no seu sentido amplo, significando qualquer das pessoas jurídicas de direito público, na esfera federal, estadual e municipal.
Nessa senda, não parece correto admitir que o funcionamento da unidade de serviço extrajudicial – que presta serviço público à população e cuja existência decorre de Lei, havendo regras definidas nas Leis Federais 6.015/73, 8.935/94. 9.492/97 e 10.169/00, entre outras – possa estar condicionado à concessão de alvará por parte da municipalidade. Ora, se como adrede examinado, a atividade do notário e do registrador é considerada serviço público disciplinado por lei, não há outra conclusão a se chegar. Falta aos municípios legitimidade para autorizar a prestação ou o funcionamento dos serviços notariais e de registros. Entender noutro sentido, com a devida vênia, leva ao absurdo de se permitir, por exemplo, a exigência de alvará municipal para a instalação e funcionamento do fórum de determinada comarca, ou de qualquer outro órgão público seja do Estado, seja da União.
Em passo seguinte, a esta altura já com certa maturidade doutrinária, não se discute mais que na novelsistemática constitucional, o poder delegante a que se refere a Lex Mater, no caput do art. 236, é, inexoravelmente, o Poder Judiciário. Afinal, se este é o Poder responsável pela fiscalização e decretação do fim da delegação – nos termos da Lei vetora da atividade notarial e registral (Lei nº 8.935/1994) –, nada mais natural que seja atribuída ao Judiciário a competência para outorgar as delegações notariais e de registros.
Nesse ângulo, ainda na dogmática jurídico-constitucional, o § 1º do art. 236 da Constituição – norma constitucional de eficácia limitada, na clássica dicção de José Afonso da Silva – estabelece, que “Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade e criminal dos notários, os oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário”.
A premissa constitucional é muito clara e espanca qualquer dúvida. Não há, pois, necessidade de qualquer esforço hermenêutico para concluir que o Poder Judiciário é o responsável pela fiscalização dos serviços notariais e de registros.
Completando o preceito constitucional, a Lei nº 8.935/1994 disciplinou detalhadamente o regime jurídico a ser aplicado aos notários e registradores e em capítulo específico (Capítulo VII) esmiuçou como deve ser a fiscalização do Poder Judiciário frente às serventias extrajudiciais. Observe-se em detalhe a polida redação do art. 37, que para sua intelecção dispensa outras ponderações: “A fiscalização judiciária dos atos notariais e de registro, mencionados nos arts. 6º a 13, será exercida pelo juízo competente, assim definido na órbita estadual e do Distrito Federal, sempre que necessário, ou mediante representação de qualquer interessado, quando da inobservância de obrigação legal por parte de notário ou de oficial de registro, ou de seus prepostos”.
Coloca-se em evidência que não é outro o objetivo dessa zelosa fiscalização a ser materializada pelo Judiciário Estadual senão para que os serviços notariais e de registros “sejam prestados com rapidez, qualidade satisfatória e de modo eficiente, podendo sugerir à autoridade competente a elaboração de planos de adequada e melhor prestação desses serviços, observados, também, critérios populacionais e sócio-econômicos, publicados regularmente pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística” (art. 38 da Lei nº 8.935/1994).
Com efeito, considerando-se o alvará como instrumento que materializa uma fiscalização positiva em relação à determinada atividade, é de rigor advertir que na hipótese dos serviços notariais e de registros, essa fiscalização é incumbência exclusiva do Poder Judiciário. Nessa ampla moldura, eventual interferência do Poder Executivo Municipal na fiscalização dos cartórios extrajudiciais mostra-se juridicamente inoportuna e incabível, capaz inclusive de balançar a harmoniosa convivência dos Poderes da República, comprometendo-se o pacto federativo.
Diga-se de passagem, sequer legitimação constitucional para esta atuação dos municípios existe. Peremptória, nesse sentido, foi a conclusão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: “(...) Trata-se de matéria incontroversa, havendo expressas disposições legais a discipliná-la no sentido de que compete ao Poder Judiciário fiscalizar as atividades realizadas pelos notários, oficiais de registros e respectivos delegados, não podendo, pois, o Município exercer poder de polícia com relação a estes serviços.Nos termos do art. 236, § 1º, da CF/88 e art. 37 da Lei n. 8.935/84, compete ao Poder Judiciário estadual fiscalizar as atividades realizadas pelos notários, oficiais de registros e seus respectivos prepostos, sendo indevida a exigência, pelo ente municipal, de licença prévia de funcionamento e cobrança de taxa de fiscalização ou vistoria (TJRS – Apelação Cível 70042273854, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. Arno Werlang, DJ 13.12.2012). Também nessa linha confiram-se os julgados: TJRS – Apelação Cível nº 70015176829, Primeira Câmara Cível, Rel. Luiz Felipe Silveira Difini, julgado em 09/08/2006; TJRS – Apelação e Reexame Necessário nº 70010126001, Primeira Câmara Cível, Rel. Henrique Osvaldo Poeta Roenick, julgado em 15/12/2004.
Quadra anotar ainda que não bastassem todos esses fundamentos jurídicos, há um imperativo de ordem prática que também deve ser considerado. No mais das vezes, o que se vê no mundo dos fatos é que a fiscalização municipal se limita única e exclusivamente à mera arrecadação de taxas periódicas e nada mais. É dizer em palavras outras que sequer o poder de polícia municipal – que serve de substrato para a exação tributária na modalidade “taxa” – é efetivamente levado a efeito pelo Poder Executivo Municipal, resumindo-se à cobrança do tributo sem qualquer conduta ou providência de ordem fiscalizatória para com aspectos técnicos referentes à instalação, funcionamento, higiene, saúde, segurança, ordem ou tranqüilidade públicas.
Entrementes, os municípios costumam fundamentar sua atuação fiscalizatória na necessidade de verificação do correto uso e ocupação do solo, localização física dos prédios, atendimento à legislação de acessibilidade, dentre outras questões. Cabe dizer que nessa ótica verifica-se nítida desconsideração por parte dos municípios da peculiar natureza jurídica dos serviços notariais e de registros, que, como amplamente explorado, não se confundem com as atividades das empresas privadas. Nessa linha de raciocínio, observe-se pedagógica manifestação do Tribunal de Justiça do Distrito Federal: “O poder de policia a ser exercido por serviços desta natureza, ainda que relacionado à questão urbanística, é da competência exclusiva da Corregedoria do Tribunal de Justiça, de forma que a exigência pelo Distrito Federal de Alvará de Funcionamento é indevida.(...) Avaliar se o imóvel é ou não seguro para a atividade, se está de acordo com as normas urbanísticas e ambientais, com o zoneamento, com os padrões legalmente estabelecidos para o funcionamento dos prédios”, para efeito de exigência de expedição de alvará de funcionamento, é rigorosamente providência desnecessária, uma vez que esse exame é feito quando da construção do prédio pela Emissão do Alvará de construção, depois, pela expedição de carta de Habite-se. Manifesto o desvio de finalidade com que se houve a autoridade coatora” (TJDFT – 2ª T. Cível, Apelação Cível e Remessa de Ofício nº 2000.01.1 081982-9, Rel. Des. Edson Alfredo Smaniotto, julgado em 01/12/2003).
Eloquente, a propósito, é o argumento de que as normatizações administrativas a cargo das Corregedorias Gerais da Justiça dos Estados – verdadeiras responsáveis pela orientação, coordenação e fiscalização das unidades de serviços extrajudiciais – têm evoluído sensivelmente no regramento das condições e exigências para a prestação dos serviços notariais e de registros, detalhando minuciosamente os padrões a serem observados pelos seus titulares. Mencione-se, por exemplo, valiosa previsão contida nas Normas do Serviço Extrajudicial da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, que em seu Capítulo XIII, item 20.1, determina: “Observadas as peculiaridades locais, ao Juiz Corregedor Permanente caberá a verificação dos padrões necessários ao atendimento deste item, em especial quanto a: a) local, condições de segurança, conforto e higiene da sede da unidade do serviço notarial ou de registro; (...) c) adequação de móveis, utensílios, máquinas e equipamentos, fixando prazo para a regularização, se for o caso; (...) g) fácil acessibilidade aos portadores de necessidades especiais, mediante existência de local para atendimento no andar térreo (cujo acesso não contenha degraus ou, caso haja, disponha de rampa, ainda que removível); h) rebaixamento da altura de parte do balcão, ou guichê, para comodidade do usuário em cadeira de rodas; i) destinação de pelo menos uma vaga, devidamente sinalizada com o símbolo característico na cor azul (naquelas serventias que dispuserem de estacionamento para os veículos dos seus usuários) e, finalmente, um banheiro adequado ao acesso e uso por tais cidadãos”.
De mais a mais, comprovando-se não tratar de mero argumento de retórica, em termos essencialmente práticos, tem se verificado no contexto hodierno uma objetiva e eficaz fiscalização realizada pelo Poder Judiciário nas serventias extraforenses, bastando para se chegar a esta certeza uma simples análise das atas de correição, nas quais se encontram elencados diversos pontos como instalações, equipamentos, acessibilidade, higiene, segurança entre outros. Irrefutável, pois, que as condutas fiscalizatórias das prefeituras municipais esbarram em atribuições de outro Poder. Alinhando-se ao entendimento de ser exclusividade do Poder Judiciário a fiscalização das unidades extrajudiciais o Supremo Tribunal Federaljá se manifestou sem deixar dúvidas: “Taxa em razão do poder de polícia. A Lei matogrossense nº 8.033/2003 instituiu taxa em razão do exercício do poder de polícia. Poder que assiste aos órgãos diretivos do Judiciário, notadamente no plano da vigilância, orientação e correição da atividade em causa, a teor do § 1º do art.236 da Carta-cidadã” (STF – ADI nº 3151, julgado 08/06/2005, Rel. Min. Carlos Ayres Brito, DJ de 28/04/2006).
Por derradeiro, cabe acrescentar outro estribado argumento alhures apresentado porMarco Antonio de Oliveira Camargo. 4 Considerando-se, à guisa de raciocínio, as serventias de registro civil das pessoas naturais, a Lei nº 8.935/1994 determina peremptoriamente que “em cada sede municipal haverá no mínimo um registrador civil das pessoas naturais”. Desse modo, se a lei exige sua existência em todos os municípios não tem cabimento as prefeituras municipais dificultar ou impedir a instalação e funcionamento desse serviço trivial aos cidadãos. Parece teratológico considerar possível que a municipalidade possa censurar o funcionamento deste essencial serviço público. Imagine-se, nesse passo, o absurdo que seria se determinado município recusasse a concessão do alvará de funcionamento de uma serventia de registro civil das pessoas naturais – o que, para quem defende a legitimidade da fiscalização municipal, seria em tese possível, já que a concessão ou não do alvará é ato discricionário da municipalidade. Quem faria os registros de nascimento e de óbito? Os munícipes ficariam impedidos de se casar?
Em razão do princípio da continuidade dos serviços públicos, assim como da essencialidade dos serviços notariais e de registros à população é ululante que o ente municipal não pode impedir a prestação destes serviços indispensáveis. Aliás, sob este prisma a questão já foi enfrentada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, tendo sido afastada conduta manifestamente ilegal de determinado município: “Reexame Necessário de Sentença. Mandado de Segurança. Fechamento de cartório de registro civil como meio coercitivo no recebimento pela prefeitura municipal de taxa de alvará e localização dessa entidade judicial. Ilegalidade do ato. Ordem concedida. Sentença reexaminada confirmada. Traduz-se em ato ilegal e abusivo o Decreto Legislativo Municipal que determina o fechamento de Cartório de Registro Civil como meio coercitivo no recebimento dos tributos devidos por essa entidade judicial"(TJMT – RN 1.002, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. José Ferreira Leite, julgado 26.11.1996) .5
Por todos os argumentos articulados é de se concluir que as serventias extrajudiciais não estão sujeitas à ingerência fiscalizatória dos municípios, de modo que eventuais condutas das autoridades municipais nesse sentido, em realidade, desnaturam todo o arcabouço jurídico que rege a atividade notarial e registral.
Referências
1. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988, vol. IX, p. 4.611.
2. ARRUDA, Ana Luísa de Oliveira Nazar. Cartórios extrajudiciais: Aspectos Civis e Trabalhistas. Editora Atlas, p.17.
3. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Malheiros Editores, 22ª Edição. p.122 e 123.
4. CAMARGO, Marco Antonio de Oliveira. Da desnecessidade de alvará e taxa municipal, publicado em 06/12/2010, no blog do Colégio Notarial do Brasil, acessível em http://www.notariado.org.br/blog/?link=visualizaArtigo&cod=204)
5. RIBEIRO, José. Serviços Notariais e registrais. Imposto sobre serviço – ISS. As serventias e o alvará municipal. Disponível em http://www.irib.org.br/html/boletim/boletim-iframe.php?be=3247