A ATIVIDADE NOTARIAL À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS
Durante a atuação notarial não é incomum surgirem situações em que o Tabelião se vê num dilema, tendo de um lado os protagonistas do ato que buscam garantir seus interesses particulares e do outro o escopo da atividade, qual seja a de gerar a segurança a priori.
O Tabelião está jungido à legalidade, só podendo praticar os atos que expressamente lhe foram delegados e sempre de acordo com ordenamento jurídico. Já as partes podem fixar livremente o conteúdo e os efeitos dos atos e negócios que pretendem realizar, estando limitados apenas às proibições expressas da lei.
Este breve estudo visa demonstrar que os princípios contratuais podem auxiliar o notário neste impasse, com aplicabilidade direta e imperativa em sua atividade, para gerar segurança jurídica dos atos negociais. Tratar-se-á do princípio da autonomia privada, da força obrigatória, da função social e da boa fé objetiva.
De forma bem direta, autonomia privada é o poder de uma pessoa em escolher se quer contratar ou não, com quem irá contratar e, principalmente, o conteúdo desse contrato.
Ao recepcionar a manifestação de vontade das partes, o Tabelião deve estar atento para constatar se efetivamente há vontade, e se ela está isenta de vícios.
É comum aparecerem na serventia pessoas que, seja em razão da idade seja em razão de algum problema mental, não possuem plena noção do ato que estão praticando. Há ainda casos de tentativa de ludibriar pessoas humildes, que pensam estar assinando um simples documento para reconhecimento de firma, quando na verdade estão a doar seu patrimônio.
A imediação notarial, o contato direto e sereno com o usuário, escutando quase que como num confessionário seu desejo íntimo, sem açodamento em querer finalizar logo o ato, tudo isso serve para que o Tabelião exerça seu mister com qualidade.
Cabe ao Tabelião zelar pelo pleno exercício da autonomia privada, analisando cuidadosamente a capacidade das partes para a prática do ato notarial, obstando-o quando não estiver seguro da higidez mental.
Estando as partes decididas em contratar, surge uma nova responsabilidade ao Tabelião para assegurar a autonomia privada. O conteúdo a ser estampado no ato deve ser amoldado com a vontade externada pelas partes, tendo o cuidado de não afrontar as normas e princípios constantes do ordenamento.
O princípio da juridicidade que norteia a atividade notarial impõe a obrigação de cuidado para que o ato esteja sempre em consonância com o ordenamento jurídico. Aliás, esta é uma das limitações da autonomia privada. Por mais que as partes busquem atingir seus interesses privados, valendo-se da liberdade contratual autônoma, o Tabelião deve impedir o acesso de tudo o que afronta a ordem jurídica e seja um risco para a pacificação social.
Assim, no exercício de suas funções o notário deve ficar atento para que a vontade esteja realmente isenta de vícios e amoldada aos ditames legais, firmando a certeza a priori e evitando litígios futuros.
O princípio da força obrigatória dos contratos é consequência lógica da autonomia privada, vez que, havendo liberdade de contratar ou não, e de fixar o conteúdo do contrato, em o fazendo, a parte deve cumprir sua prestação ou suportar os ônus do inadimplemento.
Hoje este princípio tem sido relativizado para se privilegiar a boa fé objetiva, a função social do contrato e para evitar a onerosidade excessiva. Porém, nunca se pode descuidar que o dever de cumprir o pactuado está ínsito ao Estado Democrático de Direito, vez que caso as relações firmadas deixem de possuir caráter vinculador, corre-se o risco de se voltar ao tempo da barbárie.
O papel do Tabelião é de suma importância para garantir que tudo o que foi pactuado seja cumprido. A cautelaridade notarial impõe dever de prudência ao Tabelião, cabendo a ele se antecipar a todas as consequências do ato que pratica. Para tanto, deve haver um profundo conhecimento dos institutos do inadimplemento, arras e da cláusula penal.
Devem ser previstas no ato notarial as consequências para o caso de inadimplemento seja ele absoluto - quando a prestação se torna impossível ou deixa de existir interesse objetivo do credor em seu cumprimento - ou relativo - quando não se observa o tempo, lugar ou forma no cumprimento da prestação, havendo apenas mora.
Ainda, nas escrituras preliminares, devem ser fixadas as arras e a sua modalidade, que pode ser confirmatória, quando não permite arrependimento, ou penitencial, quando o arrependimento é uma faculdade contratual.
Quando todas estas questões são bem explicadas às partes pelo Tabelião e inseridas de forma clara e articulada numa escritura pública, mitiga-se a chance de um inadimplemento e de um desacordo que, invariavelmente, terminaria afogando ainda mais o Poder Judiciário.
A doutrina assevera que a função social do contrato limita a autonomia privada, através de suas dimensões interna e externa.
A dimensão interna impõe respeito aos direitos individuais, protegendo-se a dignidade da pessoa humana entre os contratantes e vedando as cláusulas abusivas. Considerando que o Tabelião é um profissional do direito, tendo como função balizar o ato para que esteja sempre em conformidade com o ordenamento, ele não deve aceitar numa escritura pública a inclusão de uma cláusula que ofenda norma de ordem pública e seja cominada de invalidade.
Aliás, esta é a grande crítica feita pelos estudiosos ao modelo atual do financiamento imobiliário, em que se transfere às instituições financeiras a atribuição de lavrar contratos com “força de escritura pública”. As instituições financeiras, na busca incessante de maximizar lucros e reduzir os riscos do inadimplemento, impõem em seus contratos particulares diversas cláusulas abusivas sem qualquer controle estatal, podendo gerar uma litigiosidade potestativa e sobrecarregando o Poder Judiciário.
Noutro sentido, a função social em sua dimensão externa dispõe que o contrato deve respeitar os interesses de terceiros e os interesses metaindividuais da sociedade tais como o meio ambiente, o urbanismo, o consumidor, entre outros. Aqui também o Tabelião deve atuar para proteger a sociedade de qualquer mal que sua escritura pública puder gerar, expurgando ou moldando qualquer cláusula com conteúdo social ofensivo.
Desta forma, o notário deve velar pela liberdade contratual, mas sempre balizada no ordenamento jurídico, ou seja, podem contratar o que quiserem, desde que não afrontem direitos individuais ou metaindividuais.
A boa fé objetiva é uma cláusula geral implícita em todos os negócios jurídicos, que impõe deveres anexos ou laterais à obrigação principal como regra cogente de conteúdo ético e exigibilidade jurídica.
Isto significa que, além de cumprir a obrigação principal, as partes devem observar outras obrigações implícitas ao negócio, consubstanciadas no dever de proteção, lealdade, cooperação e de informação para a outra parte.
Conforme ensina Jorge César Ferreira Silva, os deveres de informação e de esclarecimento são aqueles que obrigam as partes a se informarem mutuamente de todos os aspectos atinentes ao vínculo, de ocorrências que, com ele tenham certa relação e, ainda, de todos os efeitos que, da execução, possam advir.
Aqui paira o grande papel do Tabelião. Ele deve explicar às partes com muita clareza e paciência as cláusulas e condições constantes da escritura pública, aconselhando a melhor forma de atingirem seus objetivos e, principalmente, protegendo o hipossuficiente social, qual seja, aquele que não possui condições técnicas de compreender a voracidade contratual do mundo moderno.
Neste sentido, importante lição nos dá José Augusto Delgado quando assevera que “... a vida na sociedade capitalista nos ensina a sermos competidores, onde o contrato é mais uma arena dessa luta diária. A boa-fé objetiva, aliadas aos ideais do Estado Social, busca humanizar essa disputa, impondo aos contratantes deveres anexos às disposições contratuais, onde não tem cabimento a postura de querer sempre levar vantagem”.
O notário moderno é aquele que capta não só a vontade externada pelas partes, mas principalmente a ingenuidade, a simplicidade e a demasiada confiança do homem simples, e age para protegê-lo, igualando-o materialmente à outra parte, e dando segurança jurídica plena à negociação imobiliária.
Ao analisar as disposições contratuais, o notário deve velar pela distribuição equitativa de direitos e deveres para que haja um efetivo equilíbrio contratual que é a base dos contratos sinalagmáticos onerosos.
Ademais, ao extrair as certidões reais, fiscais e judiciais, necessárias para a prática do ato, o notário deve analisar seu conteúdo e, caso constate algum risco ao comprador, deve informá-lo para que tenha ciência e decida sobre o prosseguimento ou não da negociação.
Esse dever de informação está ínsito à boa fé objetiva a ser observada também pelo Tabelião, sob pena de afronta aos seus deveres institucionais, podendo acarretar a invalidação do ato em razão da violação positiva do contrato.
Deste breve estudo, pode-se aferir que o notário tem que estar atento aos princípios contratuais para bem executar o seu mister. O princípio da autonomia privada impõe ao Oficial um cuidado para que a vontade manifestada esteja isenta de vícios e de acordo com o ordenamento jurídico.
Estando a vontade hígida, o Tabelião tem por obrigação velar pela força obrigatória dos contratos, inserindo de forma clara e articulada cláusulas e condições para garantir que tudo o que foi pactuado seja cumprido.
Pelo princípio da função social do contrato, o Oficial deve balizar o ato para que esteja sempre em conformidade com o ordenamento, nunca aceitando incluir em suas notas uma cláusula abusiva que possa gerar qualquer invalidade.
Finalmente, a boa fé objetiva impõe ao notário que explique com clareza e paciência as cláusulas e condições constantes da escritura pública, aconselhando e protegendo o hipossuficiente.
Bibliografia
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