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08/08/2014

Artigo: Direito Notarial e Registral: Ramos Autônomos? - Milson Fernandes Paulin

Perscrutar acerca da divisão do Direito, de sua autonomia, é questão de mera conveniência acadêmica, porquanto o Direito é Uno em sua essência, vale dizer, em seu aspecto de estudo, enquanto Ciência. Até porque, à luz do Direito, o termo autonomia [científica] – do grego auto-nomía (auto-determinação) – há de ser compreendido não sob o espectro de independência (estado de não se achar sob domínio ou influência), mas no de interdependência (dependência mútua). Nos dizeres de Alfredo Augusto Becker, citado por Cláudio Martins, a questão da “autonomia de qualquer ramo do direito é problema falso, inspirada tais palavras na unicidade do direito”. i

Na antiguidade clássica, dada a simplicidade da organização social, único, de fato, era o Direito. Segundo a menção de Paulo Dourado de Gusmão, “[...] o desenvolvimento social e a especialização das relações jurídicas fizeram com que fosse o campo jurídico dividido em regiões, denominadas por princípios e regras próprias”. ii Foi a complexidade das relações jurídicas e da sociedade, oriunda de seu próprio desenvolvimento, que fez com que o Direito se especializasse, no sentido de arvorar-se iii em diversos microssistemas.

Bem verdade que esse “arvoramento”, como produto do gigantismo do Direito enquanto Ciência, por certo que não se desenvolveu com base naquela idéia simples e tão pragmática tal qual costumamos encontrar na doutrina, muitas vezes arquitetada sob a forma de um grande esquema sinótico, pelo contrário: pode-se dizer que a maior parte dos microssistemas, deflorados no curso da evolução histórico-jurídica, quase sempre é (ou foi) fruto de alguma necessidade sentida, de algum clamor social. Daí a imagem de ser bastante controvertida, desde épocas romanas (Digesto 533 d.C.), a taxonomia ontogênica das normas jurídicas, residindo o pomo de discórdia, pra começar, na segmentação dicotômica do Direito: público e privado – considerado público aquele que diz respeito ao Estado [ou coisa romana]; e privado, o que tem por escopo regular as utilidades dos particulares (publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod ad singolorum utilitatem).

Necessário é deixar consignado, antes de tudo, que a idéia de completude da Ciência Jurídica, como valor inerente às codificações em geral, sempre se mostrou uma inviabilidade histórica. Até pelo fato de que a inter-relação entre os principais setores do Direito, notadamente o público e o privado, não implicam a absorção de um pelo outro, numa relação de choque, mas de interdependência, de dependência recíproca. Como alude Marquesi, “Essa relação de proximidade entre os dois ramos torna permeáveis suas fronteiras, permitindo a ambos acessar o terreno um do outro. Essa possibilidade não desmerece nem um nem outro ramo; antes os valoriza e enriquece, tornando-os mais ágeis na consecução de seus fins”. iv

Não se discute, então, que o Ordenamento Jurídico se constitui num conjunto harmônico-normativo, num arcabouço lógico, coerente e homogêneo de regras e princípios. Paulo Nader, v a propósito, já disse que a setorização em classes e ramos é obra de iniciativa da Ciência do Direito ou Dogmática Jurídica, na deliberação de organizar o Direito Positivo, para fazê-lo prático ao conhecimento, às investigações científicas, à metodologia do ensino e ao aperfeiçoamento das instituições jurídicas. Para o autor,

Antes de ser adjetivo, público, privado, penal, civil, o conjunto de normas expressa o substantivo Direito. Assim, cada ramo do Direito Positivo, além de possuir caracteres próprios, participa das propriedades inerentes à árvore jurídica: processo de adaptação social; normas coercitivas sob o comando do Estado; sujeição à variação histórica e submissão aos princípios de Direito Natural; fórmula de realização dos valores Segurança e Justiça. vi

Mote de merecido destaque, nesse quadrante, diz respeito às capilaridades pelas quais se fizeram alocar os diversos ramos do Direito, no curso dessa ininterrupta segmentação metódica. Para a doutrina, a rigor, de um lado está o Direito Público, compreendendo, em sua esfera externa: o Direito Internacional Público, o Direito Internacional do Trabalho, o Direito Penal Internacional, dentre outros; e, em sua esfera interna: o Direito Constitucional, o Direito Administrativo, o Direito Tributário, o Direito do Trabalho, o Direito Previdenciário, o Direito Agrário, dentre outros; de outro, o Direito Privado, que, em sua esfera comum, abarca: o Direito Civil; e, em sua esfera especial: o Direito Comercial e o Direito Internacional Privado.

Questão nodulosa, e que a nós fala de perto, refere-se à recepção da cadeira Notarial e Registral a ser compreendida como segmento do Direito dotado de autonomia científica. Argumentam os negativistas que recepcionar um segmento do direito como ramo independente, dotado de autonomia, requer mais que mera ordenação didática, sendo mister o preenchimento de “[...] certos requisitos relativos ao campo onde incida, isto é, o seu objeto, o método próprio, os princípios gerais extraídos de estudo sem estarem confundidos com os de outras disciplinas”. vii Dito isso à maneira de Rufino Larraud, “a) no aspecto estrutural, dever-se-á estar diante de um conjunto sistematizado de normas jurídicas, ou seja, à frente de um conjunto de normas dotado de autonomia estrutural e sistemática; b) no aspecto dogmático, é necessário que tal sistema tenha princípios próprios”. viii

Vicente de Abreu Amadei, a seu modo e, no mesmo sentido, aduz que “O estudo sistematizado dos princípios jurídicos é o que se denomina principiologia jurídica, que tem por fim não só identificar os diversos princípios de direito, gerais e setoriais, mas estudá-los com cientificidade, em busca de ordenação racional com coerência metodológica”. ix Leonardo Brandelli perfilha do mesmo entendimento, malgrado recepcione a presença de princípios não no direito notarial, tomado como ramo independente, mas na função notarial [e registral], esta sim, segundo o autor, dotada autonomia estrutural ou sistemática (constituindo-se num sistema normativo), conquanto não científica. x

Dentre os que concebem a existência da cadeira Registral e Notarial como ramo jurídico independente, dotado de cientificidade autônoma, por outro lado, figuram Lacruz Berdejo e Sancho Rebullida xi, Elvin Leonel Díaz Sánchez xii, Alberto Molinario, xiii Fernando Lopes de Zavalía xiv (ambos pugnando acerca da autonomia registral); Fernando Jesús Torres Manrique xv, Milson Fernandes Paulin xvi, Albergaria Pereira xvii, Roberto J. Pugliese xviii, Carlos Fernando Brasil Chaves e Afonso Celso F. Rezende xix (ambos defendendo a autonomia do Direito Notarial).

Em tempo, antes de traçarmos, pontualmente, ainda que per summa capita, as razões pelas quais nos fizeram pender pela defesa da corrente que acastela a manutenção de um direito registral e notarial autônomo, necessário é alocar, primeiramente, dita Ciência sob o espectro lógico-jurídico, o que fazemos, respectivamente, à luz de pequenos exemplos, lapidados por parte da doutrina alienígena e nacional e engendrados à construção dessa ótica:

El derecho registral integra el sistema jurídico con normas y principios propios de derecho público y privado, que coexisten y funcionan armónicamente constituyendo una disciplina independiente de la cual el derecho registral inmobiliario es una de sus principales ramas. xx

Existe un derecho registral integrado por los principios y normas comunes a los derechos registrales específicos que pueden obtenerse por vía de inducción y generalización de las normas reguladoras de la actividad y efectos registrales de los diversos derechos registrales particulares y que se nutre también de los principios establecidos por el derecho privado en orden a los instrumentos públicos y privados. xxi

El derecho registral es heterogéneo, pero sobre la base de participar de la concepción de que el derecho es un fenómeno unitario admite la existencia de un derecho registral, reconociendo que cuando mas ascendemos en el terreno de lo general, menor será el número de afirmaciones que podremos verificar . xxii

Por vezes classificado como ramificação do direito civil, não se encontra o direito notarial enquadrado como campo essencialmente de direito privado. É, em verdade, ramo pertencente ao direito público, mas com intersecção em direito privado, visto que o tabelião não só atua no relativo à vontade apresentada pelos particulares, como também mantém profunda relação com o Estado [...]. xxiii

Estruturadas essas primeiras considerações, passemos, agora, aos argumentos dos partidários desse direito notarial/registral como ramo autônomo, raciocínio que, em linhas gerais, estrutura-se no sentido de que a instituição de fato reconhece a existência de princípios próprios direcionados a consubstanciar, bem como a fazer nortear o cerne da função-atividade; como a própria fé pública (ora tomada como princípio, ora como atributo). xxiv

Aduz a corrente, de outra banda, que o ponto nevrálgico da discussão reside na existência, ou não, de princípios exclusivos norteados a orientar a missão institucional, mas tal inteligência, na nossa visão, decerto que não se sustenta como um argumento sólido. Isto porque, como bem aludem Brasil Chaves e Rezende, é no mínimo contraditório querer “[...] acreditar que haveria, contudo, em todas as outras disciplinas tidas como autônomas, princípios exclusivos e que em nenhum momento demandariam aplicação em outra ramificação jurídica ou que não emanassem de outros ramos científicos”. xxv E continuam os autores:
 

[...] Princípios constitucionais não estariam fadados a orientar disciplinas outras, mas tão somente o seu direito próprio. O debate epistemológico é necessário, mas não pode ser realizado em âmbito reducionista. O reconhecimento da autonomia se dará, em última análise, por outros aspectos de maior complexidade e mais ligados à vida do que propriamente ao direito. É de reconhecer que o sistema notarial possui princípios e regras próprias, sendo composto de proposições que atuam diretamente em situações da vida. xxvi

Por fim, ecoa a corrente que a manutenção da autonomia notarial/registral reside, dentre outros aspectos, precisamente: 1) no seu objeto/finalidade, qual seja, alcançar a Justiça, como todos os ramos e o Direito em si pretendem, todavia, valendo-se de plexo de fontes peculiares e desiderato primário de organizar e aprimorar a Ciência Jurídica no átrio que lhe é reservado, vale dizer, “no campo de atuação que se projetam os atos notariais [registrais], bem como o aprimoramento da organização e estrutura do notariado, como instituição jurídica reconhecida que é”; xxvii e, 2) na sua posição no ordenamento jurídico, vale dizer, alocada a matéria nada menos que no vértice da hierarquia piramidal, na Constituição da República Federativa: “A autonomia do direito notarial, se não bastem os princípios científicos que permitem autorizá-la é reconhecida na Constituição Federal, atentando de modo idôneo a sua existência nessa condição”. xxviii

Pelo exposto, em que pese a opinião dos negativistas, acenando no sentido de que a Ciência Notarial e Registral, conquanto não detentora, ainda, de cientificidade autônoma, estaria no caminho certo rumo à estruturação e seqüente autonomia, filiamo-nos à corrente acastelada por Lacruz Berdejo, Sancho Rebullida, Elvin Leonel Díaz Sánchez, Aberto Molinario, Lopes de Zavalía, Fernando Jesús Torres Manrique, Albergaria Pereira, Pugliese, Brasil Chaves e Rezende, que bem recepcionam a cadeira registral e notarial como um verdadeiro microssistema.

Por corolário, entendemos que todos os cânones principiológicos que norteiam a matéria dos registros públicos e das notas hão de ser tomados não como princípios da função, mas como mandamentos nucleares desse próprio Direito autônomo e per si cientificizado: uma realidade que, aliás, países vizinhos, componentes do nosso continente americano (v.g. Argentina, Guatemala e Peru), assim como outros do velho mundo (v.g. França) há muito já vivenciam e bem conhecem de perto.
 
* MILSON FERNANDES PAULIN
Tabelião de Notas e Oficial de Registro Civil no Município de Aracruz/ES
Vice-Presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção Espírito Santo
Pós-Graduado em Direito Notarial e Registral pela PUC/MG
Autor de obras e artigos em sites e revistas especializadas
Membro da União Internacional do Notariado – UINL


iAlfredo Augusto Becker apud MARTINS, Cláudio. Direito notarial: teoria e técnica. Fortaleza: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1974, p. 75.

iiGUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 258-259.

iii Em princípio, verdade, o direito privado era único, sendo as relações reguladas por um conjunto de normas sem diferenciação. Numa fase posterior o direito romano passou a fazer distinção entre o jus civile (o direito civil aplicado aos súditos romanos) e o jus gentium (o direito das gentes), aplicado aos estrangeiros e às relações entre estrangeiros. Mais tarde, já em época Justiniana, a divisão passou a ser tripartida: jus civile, jus gentium e jus naturale (uma espécie de ideal jurídico). Na Idade Média, paralelamente ao nascimento do Constitucionalismo, o direito civil identifica-se com o direito romano contido no corpus júris civile, sofrendo concorrência do direito canônico devido a autoridade da Igreja. Com a chegada da Idade Moderna e Contemporânea, o mundo se vê diante das chamadas gerações de direito, dando a teoria do dogma da completude lugar à especialização do direito num universo de microssistemas e segmentações jurídicas.

ivMARQUESI, Roberto Wagner. Fronteiras entre o direito público e o direito privado. In: CANEZIN, Claudete Carvalho. Arte jurídica (coord.). Juruá: Curitiba, 2004.

vNADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 341.

viIdem, ibidem.

vii POLETTI, Ronaldo. Introdução ao direito. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 263.

viiiLARRAUD, Rufino. Curso de derecho notarial. Buenos Aires: Depalma, 1966, p. 102.


ixAMADEI, Vicente de Abreu. Princípios de protestos de títulos. In: DIP, Ricardo (coord.). Introdução ao direito notarial e registral. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004, p. 95.

x BRANDELLI, Leonardo. Teoria geral do direito notarial. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 117-121.

xiLACRUZ BERDEJO, José Luiz; SANCHO REBULLIDA, Francisco de Asís. Derecho inmobiliario registral. Barcelona: Bosch, 1984, p. 21-22.

xii SÁNCHEZ, Elvin Leonel Díaz. Autonomía Del derecho registral em el ordenamiento jurídico guatemalteco. Guatemala: Tesis presentada a la Junta Directiva de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales de la Universidad de San Carlos da Guatemala, prévio a conferirsele el grado acadêmico de licenciado em ciencias jurídicas y sociales y los títulos profesionales de abogado y notário. Guatemala, 2009, passim.

xiiiAlberto Molinario apud CORNEJO, Américo Atílio. Derecho registral. Buenos Aires: Astrea DH, 2001, p. 11.

xivLOPES DE ZAVALIA, Fernando. Curso Introductorio AL derecho registral. Buenos Aires: Vistor de Zavalia Editor, 1983, passim.

xvMANRIQUE, Fernando Jesús Torres. Derecho notarial. Peru. Disponível em: http://www.monografias.com/trabajos56/derecho-notarial/derecho-notarial.shtml.

xvi PAULIN, Milson Fernandes. Nascituro: aspectos registrais e notariais. Belo Horizonte: Del Rey, 2014, p. 61-67.

xviiIdem, ibidem, prefácio.

xviiiPUGLIESE, Roberto J. Direito notarial brasileiro. São Paulo: LEUD, 1989, p. 10-13.

xix CHAVES, Carlos Fernando Brasil; REZENDE, Afonso Celso Furtado de. Tabelionato de notas e o notário perfeito. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 57-62.

xxCarta de Buenos Aires – aprobada em el primer congreso internacional de derecho registral.

xxiAlberto Molinario apud CORNEJO, Américo Atílio. Op. cit., p. 11.

xxiiLOPES DE ZAVALIA, Fernando. Op. cit., passim.

xxiiiCHAVES, Carlos Fernando Brasil; REZENDE, Afonso Celso Furtado de. Op. cit., p. 60.

xxiv A propósito, PAULIN, Milson Fernandes. Da fé pública notarial e registrária. In: MELO, Marcelo Augusto Santana de. Revista de Direito Imobiliário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, Ano 35, vol. 72, p. 189-199.

xxvCHAVES, Carlos Fernando Brasil; REZENDE, Afonso Celso Furtado de. Op. cit., p. 60.

xxviIdem, ibidem, mesma página.

xxvii PUGLIESE, Roberto J. Direito notarial brasileiro. São Paulo: LEUD, 1989, p. 11.

xxviiiIdem, ibidem, p. 13.


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