É POSSÍVEL REVOGAR UMA PROCURAÇÃO COM CLÁUSULA DE IRREVOGABILIDADE?
É comum aparecer na serventia um usuário solicitando a lavratura de um ato notarial de revogação de procuração que ele mesmo outorgou com cláusula de irrevogabilidade. Em um exame leigo e superficial do caso poder-se-ia concluir: ora, se ele deu uma procuração dizendo ser irrevogável, não pode agora querer revogar.
Porém, existem situações em que se torna inafastável a postura do Tabelião de lavrar a revogação da procuração, ainda que o outorgante tenha inserido cláusula de irrevogabilidade. Situações fáticas e questões jurídicas fundamentam esta conclusão.
Veja-se o caso da esposa que outorga procuração com cláusula de irrevogabilidade ao marido para que ele administre o patrimônio da família. Havendo quebra de fidelidade, por exemplo, fatalmente estará aniquilada a confiança embasadora da outorga, não sendo crível que esta esposa fique impossibilitada de revogar os poderes que outorgou quando o afeto vigia.
Outra situação que se teve conhecimento foi a de uma pessoa que outorgou procuração para que um despachante procurasse e adquirisse um imóvel para ela. Esse despachante fez inserir outros poderes na procuração, passando a contrair obrigações em nome da mandante e ainda a gravou com cláusula de irrevogabilidade. Seria razoável impedir que a outorgante revogasse unilateralmente esta procuração pelo fato de conter cláusula de irrevogabilidade?
Diante dessas situações, o Tabelião deve se valer de alguns institutos jurídicos para embasar a sua decisão de lavrar ou não o pretendido ato.
Em primeiro lugar, importante diferenciar procuração e mandato, apesar de que em muitos momentos o próprio legislador confunde tais institutos.
Mandato é contrato, e pode ser bilateral quando o mandatário for remunerado ou unilateral quando gratuito. É ainda consensual, aperfeiçoando-se com a mera manifestação de vontade e informal, vez que sequer precisa ser instrumentalizado (Art. 656 do Código Civil). Finalmente, é um contrato preparatório que visa outra relação jurídica e também personalíssimo, calcado na confiança.
Por seu turno, a procuração é um ato jurídico unilateral, por meio do qual uma pessoa outorga poderes de representação para outrem. A outorga da procuração pode ser anterior, concomitante ou posterior ao contrato de mandato. Ela servirá apenas para instrumentalizar o mandato para um terceiro.
Com essas premissas, pode-se adentrar ao âmago da questão, ou seja, saber se é possível revogar uma procuração que contenha cláusula de irrevogabilidade.
As causas de extinção da procuração seguem as mesmas diretrizes da extinção do mandato, incluindo-se apenas a hipótese de substabelecimento sem reserva. Nesta senda, a revogação e a renúncia são formas de resilição unilateral, sendo permitidas apenas nas hipóteses previstas em lei. Não se trata, então, de resilição bilateral que se daria por distrato, com a participação das duas partes, mas sim de ato unilateral de revogação quando a extinção se der pelo outorgante ou renúncia, quando pelo outorgado.
O Art. 683 do Código Civil trata exatamente da revogação do mandato (e procuração) que contém cláusula de irrevogabilidade, senão vejamos:
“Quando o mandato contiver a cláusula de irrevogabilidade e o mandante o revogar, pagará perdas e danos”.
Nota-se que o dispositivo prevê expressamente a possibilidade de revogação de mandato ainda que haja cláusula de irrevogabilidade, fazendo apenas menção de que tal revogação poderá ensejar o pagamento de perdas e danos (se houver, é claro).
Neste mesmo sentido, basta uma análise superficial dos institutos mandato e procuração para que se possa concluir a possibilidade de sua revogação mesmo que haja cláusula de irrevogabilidade.
Etimologicamente, no direito romano, a palavra mandato provém da expressão “manus dare”, que significa “dar as mãos”, configurando contrato de confiança e amizade. Assim, a representação convencional é sempre temporária e excepcional, sendo que ninguém pode ser privado de retomar a direta administração de seus interesses quando lhe aprouver.
Conforme os ensinamentos de Carlos Roberto Gonçalves, o mandato “É contrato personalíssimo ou intuitu personae porque se baseia na confiança, na presunção de lealdade e probidade do mandatário, podendo ser revogado ou renunciado quando aquela cessar e extinguindo-se pela morte de qualquer das partes. Celebra-se o contrato em consideração à pessoa do mandatário, sendo, destarte, a fidúcia o seu pressuposto fundamental. Como conseqüência, é essencialmente revogável, salvo as hipóteses previstas nos arts. 683 a 686, parágrafo único, do Código Civil. Cessada a confiança, qualquer das partes pode promover a resilição unilateral (ad nutum), pondo termo ao contrato”.
Silvio de Salvo Venosa também trata da característica da revogabilidade intrínseca do mandato: “(...) Fundado na confiança, a qualquer momento pode o mandante revogá-lo, da mesma forma que pode o mandatário a ele renunciar. Pela revogação, o mandante suprime os poderes outorgados. Essa revogação constitui, na verdade, uma denúncia vazia ou imotivada do contrato de mandato, pois independe de qualquer justificativa. Ao mandante cabe julgar o interesse de manter ou não o mandatário. Essa revogação é ato unilateral, independe de justificação ou aceitação do mandatário. Pode ocorrer antes ou durante o desempenho do mandato.
Arrematando, Fábio Ulhôa Coelho assevera que: “Até mesmo quando a procuração contempla cláusula de irrevogabilidade, o mandante pode, em princípio, revogar o mandato. Nesse caso, está obrigado a arcar com a indenização pelos danos que isso trouxer ao mandatário (CC, art. 683), que terá, por exemplo, direito à remuneração proporcional à evolução das tratativas com os potenciais interessados”.
Desta forma, resta claro que a regra é da possibilidade de se lavrar um ato notarial de revogação de mandato e de procuração ainda que contenha cláusula de irrevogabilidade. Porém, existem situações em que efetivamente o mandato é irrevogável. São as hipóteses dos Art. 684 e 685 do Código Civil, que cominam de ineficaz eventual revogação.
A primeira hipótese de efetiva irrevogabilidade se dá quando a procuração estiver vinculada a outro contrato em que se firmou a irrevogabilidade. Ocorre normalmente quando há uma promessa irretratável de compra e venda juntamente com a outorga de procuração para a celebração do contrato definitivo.
Outra situação ocorre quando a procuração é outorgada no exclusivo interesse do outorgado, ou seja, quando os benefícios dos poderes conferidos são voltados ao próprio mandatário. Dá-se em regra quando a prestação que seria devida por uma das partes é substituída pela outorga de uma procuração.
Finalmente, será irrevogável o mandato conferido “em causa própria” ou “in rem suam”. Esta hipótese decorre normalmente de um contrato preliminar de compra e venda em que há quitação do preço, mas as partes de comum acordo firmam mandato irrevogável ao invés do contrato definitivo.
Somente nestas três hipóteses que o mandato e a procuração não poderão ser revogados. No mais, ainda que contenha cláusula de irrevogabilidade o Tabelião poderá lavrar o ato notarial de revogação da procuração.
Nota-se que este tema já foi objeto de aferição pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, cominando nos dois julgados dois julgados paradigmas que seguem:
Mandado de Segurança – Revogação de Mandato com cláusula de irrevogabilidade – Falta de notificação ao outorgado – Pretensão à nulificação da revogação da procuração pública – Rejeitado, liminarmente, com fundamento no art. 267, IV, do CPC – Admissibilidade da revogação, com fundamento no art. 683 do Código Civil – Recurso não provido. (TJSP – Apelação Cível nº 0013435–58.2011.8.26.0292 – Jacareí – 2ª Câmara de Direito Público – Rel. Des. Renato Delbianco – DJ 27.03.2013)
Neste processo o relator faz as seguintes ponderações:
“... a cláusula de irrevogabilidade deixa de ter natureza absoluta, melhor comportando à situação a admissibilidade de revogação, assim estabelecida na hipótese disposta no art. 683 do Código Civil, que mesmo excetuando a regra geral da revogabilidade dos contratos de mandato, aventa a possibilidade de sua revogação com perdas e danos. Concluindo, possível sim a revogação do instrumento com cláusula de irrevogabilidade, consubstanciado no disposto trazido no art. 683 do Código Civil, recaindo o fato trazido na exordial, na excepcionalidade da regra geral do contrato de mandato, contudo com previsão de revogabilidade, com repercussão em perdas e danos. Assim sendo, não vislumbro ato abusivo ou ilícito do notário, acertada a decisão do MM. Juiz a quo, não merecendo o recurso acolhimento”.
Processo 0023661-82.2012.8.26.0100 da 2ª VRP|SP: Procuração com cláusula de irrevogabilidade. Revogação. Possibilidade. Contrato fundado na confiança que dura enquanto persistir essa confiança. O mandante pode proceder à revogação, respondendo, no entanto, pelas perdas e danos que causar (artigos 683 e 684 do Código Civil)
O Relator do julgado assim assevera:
“Inteiramente fundado na confiança, o mandato só deve durar enquanto persistir essa confiança. Portanto, mesmo que convencionada a irrevogabilidade, ou estabelecido um período de validade, nada impede possa a mandante proceder à revogação, sujeitando-se, no entanto, a responder pelas conseqüências que seu ato provocar. Nesse sentido, Ap. c/Revisão nº 583.486.00/9 9ª Câmara Rel. Juiz Gil Coelho J. 30.08.00 do 2º TAC e Apel. Cível do 1º TAC nº 0415249-8 1ª Câmara Rel. de Santi Ribeiro, J. 27.11.89, no sentido de que a existência de cláusula de irrevogabilidade e irretratabilidade é irrelevante para o deferimento da revogação do mandato, respondendo em tal hipótese pelas perdas e danos infligidas ao mandatário. A propósito, essa é a orientação traçada no atual Código Civil (artigos 683 e 684)”.
Portanto, caberá ao Tabelião analisar caso a caso para aferir se está diante de uma das hipóteses em que a lei veda a revogação da procuração que contenha cláusula de irrevogabilidade ou se mesmo contendo tal cláusula poderá lavrar a revogação apenas com a presença do outorgante.
Bibliografia
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 3, p. 386.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005, v. 3, p. 296.
COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 3, p. 325.