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19/03/2014

Entenda como funciona a partilha da herança

A dor da perda e a saudade são apenas o começo da angústia que muitas famílias enfrentam após a morte de um ente querido. A possibilidade de disputa entre os herdeiros, a interminável burocracia e um oneroso imposto sobre os bens da partilha compõem uma batalha que pode se arrastar por anos. 

Deixar um testamento, porém, pode reduzir a complexidade desse processo. "O testamento pode ser particular ou por escritura pública. Embora ambos exijam a presença de testemunhas, é mais difícil à família contestar a escritura pública, pois ela tem a certificação de um tabelionato", explica a advogada Ivone Zeger, autora do livro Herança - Perguntas e Respostas. No Estado de São Paulo, por exemplo, vem crescendo o número de testamentos feitos em cartório: de 5 628 em 2003 para 8519 em 2013, um aumento de 51%, segundo dados da seção paulista do Colégio Notarial do Brasil. VEJA conversou com especialistas para esclarecer os principais pontos em torno do tema. 

QUAL É O PRIMEIRO PASSO? 

O inventário, ou seja, o levantamento de todos os bens, direitos e dívidas do falecido. Sem ele. não existe partilha. Desde 2007, com a Lei Nº 11441. é possível fazer inventários extrajudiciais por meio de escritura pública, em cartório, o que torna o processo mais rápido e barato: enquanto um inventário judicial pode levar mais de um ano, o extrajudicial pode ser feito em um ou dois meses. Mas há requisitos. O primeiro deles é que o falecido não tenha deixado testamento. "Além disso, todos os interessados devem ser maiores de idade e considerados capazes, e também é necessária a presença de um advogado. Deve ainda haver consenso entre os herdeiros", explica a carioca Luciana Gouvêa, diretora do escritório Gouvéa Advogados Associados. 

É mesmo preciso fazer inventário? 

Sim. Ignorá-lo ou adiá-lo só traz desvantagens: paga-se multa se se passarem sessenta dias da data do atestado de óbito e, caso um dos herdeiros venha a falecer, a sucessão de bens fica aguardando o desfecho do inventário inicial, o que pode tornar o patrimônio da família indisponível por muitos anos. 

O QUE É MEAÇÃO? 

A partir do inventário, é estipulada a parte que cabe ao viúvo ou à viúva. Esse montante, chamado de meação, depende do tipo de regime matrimonial de bens do casal. Se eles eram casados em comunhão universal, o cônjuge tem direito à metade de todo o patrimônio do falecido - incluindo os bens que ele possuía antes do casamento, mesmo aqueles recebidos por doação ou herança. No caso da comunhão parcial de bens, o cônjuge também recebe a meação, mas ela se refere apenas ao patrimônio adquirido pelo casal durante o casamento, por meio do esforço comum. "O Código Civil de 2002, porém, determinou que no caso da comunhão parcial o cônjuge entra ainda como herdeiro daqueles bens que o falecido tinha quando era solteiro e que recebeu em doação ou herança", explica a advogada paulista Ivone Zeger. 

Já as pessoas casadas pelo regime de separação total de bens não têm direito à meação nem à herança. "Entende-se que quem opta por esse regime não quer meação nem sucessão. Mas isso ainda gera discussão jurídica, e há situações em que os tribunais deram ao cônjuge o direito de herança", diz Luiz Edson Fachin, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná e diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam). Na união estável, o companheiro também tem direito à meação, desde que o casal tenha definido por contrato o regime de bens. Se não houver contrato ou a definição do regime, vale a comunhão parcial. 

COMO E FEITA A DIVISÃO ENTRE OS HERDEIROS? 

Retirada a meação, o restante é o que constitui a herança. No Brasil, os herdeiros pagam imposto de até 8% sobre o valor dos bens, dependendo do estado (a meação não é taxada), até trinta dias após a data em que submetem o inventário. Os primeiros na linha sucessória são os descendentes (filhos ou netos) e o cônjuge que era casado em comunhão parcial de bens. Tomemos como exemplo uma pessoa que deixa três casas, tendo sido uma delas adquirida antes do casamento. Pela meação, o cônjuge ficaria com uma das casas adquiridas após a união, e a outra seria dividida entre os filhos. A terceira casa, aquela comprada antes do casamento, seria dividida igualmente entre os filhos e o cônjuge", diz Fachin. 

E quando não há descendentes? Aí são os ascendentes (pais, avós ou bisavós) que herdam. Se houver cônjuge, além da meação, ele fica com uma parcela dos bens que pertenciam apenas ao falecido. O restante fica com os herdeiros ascendentes. Como fica no caso de união estável? Se ela é regida pela comunhão parcial de bens, o companheiro também herda os bens do falecido adquiridos antes da união e, se houver filho, recebe o que couber a ele. Quando os filhos são apenas do companheiro falecido, o parceiro tem direito à metade do que receber cada um deles. Sem filhos comuns ou do companheiro falecido, mas com outros herdeiros como pais, avós, bisavós e, na falta desses, herdeiros colaterais (irmãos, tios, sobrinhos ou primos em primeiro grau), a parte da herança que cabe a ele é um terço do total. 

E se o falecido não deixar um cônjuge nem um companheiro? Nesse caso, a divisão é feita entre descendentes ou ascendentes e. na falta de ambos, entre os herdeiros colaterais. 

É POSSÍVEL DEIXAR UMA PORCENTAGEM DISTINTA DA HERANÇA PARA CADA HERDEIRO? 

Sim, por meio de testamento. Mas apenas uma parte dos bens pode ser disposta dessa maneira. Se houver um cônjuge com direito à meação, quem faz um testamento pode dispor de metade da outra parte como bem entender. Ou seja, apenas 25% dos bens podem ganhar destino definido em testamento. Sem meação, pode-se distribuir metade de todo o patrimônio como se desejar. 

E QUANDO NÃO HÁ HERDEIROS? 

Depois de cinco anos do falecimento, se nenhum herdeiro se manifestar, a herança passa a ser patrimônio municipal. “A pessoa que não tem herdeiros diretos pode deixar um testamento beneficiando um amigo ou uma instituição, por exemplo. Nesses casos, parentes colaterais (como irmãos, tios ou primos) podem ser afastados da sucessão só pela vontade do autor do testamento", diz a advogada Luciana Gouvêa. Há ainda a possibilidade de fazer uma doação em vida, com a chamada reserva de usufruto vitalício. Isso significa que a pessoa pode doar uma casa, por exemplo, e continuar morando nela até a morte. Depois do falecimento, é automaticamente transferido ao donatário. 

Herança na nuvem 

A legislação brasileira não faz distinção entre bens tangíveis, como imóveis, carros e jóias, e intangíveis, como arquivos digitais salvos na nuvem. Ou seja, perante a lei, os herdeiros têm direito também à propriedade de músicas e e-books. O problema, porém, esbarra no contrato de compra de conteúdo digital. "Enquanto fotos armazenadas em sites de compartilhamento, como Flickr e Picasa, pertencem a quem criou a conta e enviou os arquivos, a pessoa que compra músicas no iTunes, por exemplo, adquire a licença de uso, não o arquivo", explica Victor Auilo Haikal, advogado especialista em direito digital do escritório Patrícia Peck Pinheiro Advogados, de São Paulo. Como as licenças são pessoais e intransferíveis, em tese elas cessam com a morte. Entretanto, como não há disposições específicas sobre esse tema tão novo na legislação sucessória, o assunto ainda vai gerar muita discussão jurídica. Perfis em redes sociais e contas de e-mail também são um terreno incerto*. 

Além da opção de cancelar o perfil, o Facebook oferece um serviço chamado Solicitação de Memorial: mediante a apresentação do atestado de óbito, pode-se pedir que o perfil seja transformado em um memorial, para que os amigos possam deixar mensagens de carinho sobre o falecido. O Google permite que seus usuários deixem uma espécie de testamento virtual para contas de Gmail, perfil do Google+, Picasa e YouTube. O Gerenciador de Contas Inativas possibilita que, depois de um período predefinido, o internauta opte por excluir os dados ou autorizar o acesso a um parente ou amigo de confiança. Para evitar mal-entendidos, o Google envia mensagem de texto ao celular e a outras contas de e-mail antes de concluir o processo. 

Desejo cumprido 

O testamento vital permite que uma pessoa decida quais tratamentos médicos aceita receber se vier a sofrer de uma doença grave e incurável. A Resolução 1995 do Conselho Federal de Medicina (CFM), de 2012, determina que esse direito do paciente seja respeitado pelo médico. "O paciente que tem ciência de que nenhum tratamento poderá reverter sua condição pode, por exemplo, optar por receber apenas cuidados paliativos para alívio da dor, renunciando a manobras extraordinárias para prolongar sua vida, como a entubação ou a internação em unidade de terapia intensiva", explica o advogado Ernesto Lippmann, membro da Comissão de Biotecnologia e Biodireito da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil e autor do livro Testamento Vital - O Direito à Dignidade. "Se o doente expressou essa vontade quando estava com plena consciência mental, ela se sobrepõe à opinião da família", diz o médico Ricardo Tavares de Carvalho, coordenador do Núcleo de Cuidados Paliativos do Hospital das Clínicas de São Paulo. 

Carvalho ressalta que a vontade do paciente só é válida em casos de doença terminal. "Uma pessoa que expressou recusa em ser entubada mas chega ao hospital com uma pneumonia grave, por exemplo, será entubada se o procedimento puder curá-la", diz. A resolução do CFM não estabelece um modelo de testamento vital. O paciente pode conversar com o médico, que descreverá a vontade do doente no prontuário, ou preparar um documento escrito.


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