Com o advento da Lei 9.514/1997, o legislador brasileiro inaugurou tendência, ainda em curso, de desjudicialização das relações privadas. Assim, uma vez positivado o procedimento extrajudicial de execução das dívidas garantidas por alienação fiduciária de bem imóvel, a atividade cartorária veio se expandindo cada vez mais no Brasil, sendo possível citar, como exemplos posteriores, os divórcios e inventários extrajudiciais (Lei 11.441/2007), a usucapião extrajudicial (Lei 6.015/1973, artigo 216-A) e a adjudicação compulsória extrajudicial (Lei 14.382/2022).
A despeito disso, dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelam que há, no Brasil, quase 84 milhões de processos em tramitação, sendo que 35 milhões deles foram ajuizados em um único ano (2023) [1]. Os números superlativos conduzem a uma reflexão importante: O quanto o próprio Poder Judiciário se mostra alinhado ao Poder Legislativo, no esforço de permitir que os entes privados se sintam seguros ao recorrer a procedimentos extrajudiciais?
No intuito de fomentar o debate sobre o tema, este artigo se destina a esmiuçar uma discussão ainda em curso no Superior Tribunal de Justiça, a qual ganhou um novo capítulo, em virtude de mudanças introduzidas pelo Marco Legal das Garantias Civis (Lei 14.711/2023) nos artigos 26 e 27 da Lei 9.514/1997. Vale ressaltar que os referidos dispositivos legais já descreviam, há quase trinta anos, as regras atinentes ao procedimento extrajudicial de execução das alienações fiduciárias de bens imóveis.
De início, é importante recordar que a positivação da referida garantia na legislação brasileira baseava-se na necessidade de dotar nosso ordenamento jurídico de instrumentos capazes de recompor com celeridade, nos financiamentos imobiliários e operações de crédito com garantia imobiliária, as situações de mora e inadimplemento [2]. Até então, a lei brasileira já admitia a execução extrajudicial de uma modalidade de garantia real que, ao contrário da alienação fiduciária em garantia – definida como direito real incidente sobre coisa própria [3] — recaía sobre a coisa alheia: o Decreto-Lei 70/66 previa, para a execução de hipotecas, a possibilidade de recurso à via extrajudicial.
Todavia, para além dos percalços enfrentados por credores hipotecários em virtude da permanência do bem no patrimônio do devedor [4], controvérsias de matriz jurisprudencial e doutrinária em torno da constitucionalidade do procedimento faziam com que os credores hipotecários optassem pela execução judicial [5]. Considerando que essa, em muitos casos, se mostrava demorada e infrutífera, dada a existência frequente de credores privilegiados, aos quais se atribuía boa parte do produto do leilão, a hipoteca caiu em profundo ostracismo, cedendo lugar, sempre que possível, à alienação fiduciária de bens imóveis [6]. Dados coletados nos últimos anos pelo Banco Central revelam que somente 3% dos financiamentos imobiliários em curso estão atrelados a garantias hipotecárias [7].
E em que pese o procedimento judicial de execução das hipotecas já fosse, por lei, inconfundível com o procedimento extrajudicial de execução das alienações fiduciárias de bens imóveis, acórdãos recentes do Superior Tribunal de Justiça tendem a impor ao segundo rito regras próprias do primeiro, sem que tal possibilidade esteja contemplada na Lei 9.514/97. O ponto central de tais decisões envolve a alegação de arrematação por preço vil — historicamente atrelada à execução hipotecária — no âmbito da execução extrajudicial da alienação fiduciária de bem imóvel.
Considerando que, mesmo antes do advento do Marco Legal das Garantias Civis, o artigo 27, §2º, da Lei 9.514/1997 já admitia, no segundo leilão, a arrematação pelo maior lance oferecido, “desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais”, era esse o patamar valorativo mínimo para que a execução da garantia fosse ultimada. Por isso, se no primeiro leilão o valor ofertado fosse inferior ao valor do imóvel, conforme estipulado no contrato (artigo 27, §1º), o segundo leilão teria lugar, considerando as condições antes mencionadas para que o imóvel pudesse ser arrematado. Observe-se, portanto, que os lances mínimos a serem ofertados em cada um dos leilões são, aqui, determinados não por um juiz, mas sim pela própria lei.
Usando o REsp nº 2.096.465/SP como exemplo paradigmático da tendência jurisprudencial acima mencionada, há um trecho desse acórdão assim redigido:
“Mesmo antes da vigência da Lei n. 14.711/2023, é possível a invocação não só do art. 891 do CPC/2015, mas também de outras normas, tanto de direito processual, quanto material, que i) desautorizam o exercício abusivo de um direito (art. 187 do Código Civil); ii) condenam o enriquecimento sem causa (art. 884 do Código Civil); iii) determinam a mitigação dos prejuízos do devedor (art. 422 do Código Civil) e iv) prelecionam que a execução deve ocorrer da forma menos gravosa para o executado (art. 805 do CPC/2015), para declarar a nulidade da arrematação a preço vil nas execuções extrajudiciais do imóveis alienados fiduciariamente” [8].
A análise do acórdão em comento se restringirá a somente um dos pontos ventilados, qual seja, se as normas processuais que impedem a arrematação por preço vil seriam aplicáveis ou não ao rito extrajudicial das alienações fiduciárias em garantia, descrito na Lei 9.514/1997. O problema teria lugar nas seguintes circunstâncias, mesmo antes do advento do Marco Legal das Garantias: suponha-se que o valor do imóvel objeto de alienação fiduciária, para fins de arrematação no primeiro leilão (artigo 27, §1º) fosse R$ 100 mil. Não havendo arrematante, teria lugar o segundo leilão, no qual, ainda nos termos de sua redação anterior, o artigo 27, §2º, da Lei 9.514/1997 autorizaria a arrematação pelo valor da dívida, acrescido das despesas.
Caso a dívida correspondesse a R$ 30 mil, seguindo-se a lógica esposada no acórdão, a arrematação não poderia ocorrer, a despeito da autorização legal, considerando que o artigo 891 do CPC impede a oferta de lance que corresponda a preço vil, sendo tal conceito descrito no parágrafo único desse dispositivo: “Considera-se vil o preço inferior ao mínimo estipulado pelo juiz e constante do edital, e, não tendo sido fixado preço mínimo, considera-se vil o preço inferior a cinquenta por cento do valor da avaliação”. Diante disso, não custa recordar: na execução extrajudicial das alienações fiduciárias em garantia sempre há preço mínimo, fixado por lei.
A despeito desse último detalhe, no acórdão em comento, o STJ atraiu regras do Código de Processo Civil, próprias de execuções judiciais — nas quais o juiz pode estipular o valor mínimo para arrematações —, para o procedimento extrajudicial de execução da alienação fiduciária do imóvel, no qual, como se viu, o preço mínimo a ser observado é estipulado em lei. Considerando tal aspecto, é de se indagar se seria razoável vislumbrar, na hipótese, como se faz na referida decisão judicial, exercício abusivo de um direito ou mesmo enriquecimento sem causa, já que a arrematação, no segundo leilão, observa o patamar mínimo legislativamente fornecido, qual seja, o valor da dívida acrescido das despesas. Nem credor, nem leiloeiro e nem arrematante poderão furtar-se de observar tal montante.
Vale ressaltar, também, que, dentre os precedentes do Superior Tribunal de Justiça citados no voto do eminente ministro relator, consta acórdão relatado pela ministra Nancy Andrighi no ano de 2021 [9]. Todavia, o paralelo, em tal caso, não poderia ter sido traçado em tais termos, já que a decisão mais antiga, à qual a mais recente fez menção, referia-se à alegação de arrematação por preço vil no primeiro leilão, no qual, com base na Lei 9.514/1997, o imóvel precisa ser arrematado pelo valor descrito no contrato (artigo 24, VI). Considerando esse aspecto, a arrematação que ocorresse por menos da metade do valor do imóvel no primeiro leilão poderia evidentemente ser questionada em juízo, pois, nessa hipótese, houve afronta ao próprio artigo 27, §1º, da Lei 9.514/1997, sendo, portanto, até desnecessário recorrer ao conceito de preço vil para justificar tal questionamento.
E veja-se o quanto é importante analisar a íntegra das decisões judiciais antes de citá-las: além do precedente relatado pela ministra Nancy Andrighi em 2021, o REsp nº 2.096.465/SP, aqui usado como exemplo do debate hoje travado acerca do tema no Superior Tribunal de Justiça, cita um segundo precedente, o AgInt no REsp 1.892.965/ES, cujo relator foi o saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino [10]. A leitura desse último precedente, em sua íntegra, também revela que sua fundamentação se respalda no precedente da ministra Nancy Andrighi, o qual, conforme já exposto, não poderia ter servido de paradigma, por referir-se ao primeiro leilão (artigo 27, §1º) e não ao segundo leilão, no qual se autoriza a arrematação por valor igual ou superior ao valor da dívida, acrescida das despesas (artigo 27, §2º).
Resta, ainda, um ponto do acórdão a ser analisado, o qual é, inclusive, o ponto central desta análise. Ao fundamentar seu voto, o eminente relator afirma que a nova redação conferida ao §2º do artigo 27 da Lei 9.514/1997 teria “alcançado” o objetivo de encerrar a controvérsia acerca da aplicabilidade do artigo 891, parágrafo único, do CPC, ao procedimento extrajudicial de execução das alienações fiduciárias, transcrevendo, na sequência, a nova redação:
“§2º. No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que seja igual ou superior ao valor integral da dívida garantida pela alienação fiduciária, das despesas, inclusive emolumentos cartorários, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais, podendo, caso não haja lance que alcance referido valor, ser aceito pelo credor fiduciário, a seu exclusivo critério, lance que corresponda, a pelo menos, metade do valor de avaliação do bem”.
Em sede doutrinária, o professor Melhim Chalhub defendia a necessidade de “adequação” do artigo 27, §2º ao artigo 891 do CPC, argumentando, antes do advento do Marco Legal das Garantias Civis que o lance mínimo no segundo leilão deveria corresponder “ao montante da dívida e encargos ou 50% do valor da avaliação, o que for maior” [11]. Não foi essa, no entanto, a opção adotada pelo legislador.
No intuito de melhor explicar tal ponto, é importante esclarecer que o Marco Legal das Garantias Civis introduziu uma bifurcação de regimes no procedimento de leilão extrajudicial das alienações fiduciárias. Assim, quando a dívida decorre de financiamento destinado à aquisição ou construção de imóvel residencial do devedor, o regramento a ser seguido será o disposto no artigo 26-A. Nos termos do §3º do referido dispositivo legal, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor integral da dívida, acrescida das despesas. Veja-se, portanto, que nos casos onde talvez haja mais fragilidade do devedor, por tratar-se de financiamento contratado em virtude da aquisição de imóvel residencial, não há menção alguma a patamar mínimo de 50% do valor de avaliação do imóvel, não podendo ser, portanto, a essas hipóteses que o acórdão aqui comentado fez referência.
Extinção da dívida
Ainda no que diz respeito às mudanças legislativas que constam do artigo 26-A, o § 4º dispõe, atualmente, que se no segundo leilão não for alcançado o patamar mínimo mencionado no parágrafo antecedente, a dívida será considerada extinta, com recíproca quitação, ficando o credor investido na livre disponibilidade do imóvel. Ou seja, se não houver oferta ao menos equivalente ao valor da dívida, a propriedade do objeto da garantia se consolida definitivamente em favor do credor, sendo, em contrapartida, extinta a dívida. Nesse caso, mesmo que o montante da dívida supere o valor obtido pelo credor numa venda feita entre particulares após os dois leilões infrutíferos, tendo em vista a livre disponibilidade do imóvel, nada mais poderá ser cobrado do devedor.
Os demais financiamentos garantidos por alienação fiduciária de bem imóvel terão seus leilões extrajudiciais regidos pelo artigo 27 da Lei 9.514/1997. Foi ao §2 desse dispositivo legal que o REsp nº 2.096.465/SP fez referência. Todavia, a despeito da menção ali feita, não é possível extrair da nova redação que o legislador proíba a arrematação pelo valor da dívida quando tal montante for inferior ao valor de 50% da avaliação. Na verdade, somente quando o valor ofertado não alcançar o valor da dívida mais despesas – ou seja, hipótese na qual, originalmente, a arrematação não poderia ocorrer – terá o credor a opção de aceitar, a seu exclusivo critério, lance que corresponda a ao menos metade do valor de avaliação.
Não há, na nova redação do parágrafo, assim como também não havia na redação original, qualquer óbice à arrematação pelo valor da dívida, acrescida das despesas, mesmo quando tal quantia corresponde a menos de 50% do valor de avaliação do imóvel. Portanto, se no segundo leilão há lance igual ou superior ao montante descrito no artigo 27, §2º, não há escolha atribuída ao credor, “e a expropriação do imóvel se consuma em favor do arrematante” [12].
É importante ressaltar que, acaso prevaleça, no STJ, a orientação segundo a qual, no segundo leilão, não é mais possível a arrematação do imóvel por montante inferior a 50% de seu valor de avaliação, a consequência legal seria a aplicação do §5º do artigo 27, o qual dispõe, atualmente, que se no segundo leilão não houver lance que atenda ao referencial mínimo para arrematação estabelecido no §2º, o credor fiduciário ficará investido na livre disponibilidade do imóvel, sem que, em virtude disso, esteja obrigado a reverter qualquer quantia ao devedor (ver artigo 27,§ 4º).
Na verdade, ao contrário da interpretação conferida ao artigo 27, §2º, no acórdão aqui comentado, a nova redação do referido dispositivo não se destina a compatibilizar o regime do segundo leilão à regra contida no artigo 891, parágrafo único, do CPC. A causa provável da mudança legislativa residiria no § 5º-A, o qual determina que se o produto do leilão não for suficiente para o pagamento integral da dívida, das despesas e dos encargos mencionados no § 3º, o devedor continuará obrigado pelo saldo remanescente. Por esse motivo, não seria justo que o legislador autorizasse o fiduciário a aceitar montante inferior ao patamar mínimo para arrematação no segundo leilão — dívida acrescida das despesas — sem atrelar a alternativa agora prevista no artigo 27, §2º a um patamar razoável. A justificativa por trás da mudança seria, portanto, o direito, antes inexistente, de o credor cobrar eventual saldo devedor, caso não seja possível alcançar o montante integral da dívida após o segundo leilão [13].
[2] CHALHUB, Melhim Namen. Alienação Fiduciária – Negócio Fiduciário, 6ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2019, p. 261.
[3] “Enquanto a hipoteca, o penhor e a anticrese são direitos reais constituídos na coisa alheia, cujo dono permanece sendo o outorgante da garantia, a alienação fiduciária em garantia transfere a propriedade ao credor. Tal característica faz dessa espécie de garantia real o mais efetivo instrumento de proteção contra o risco de insolvência, uma vez que a coisa conferida em garantia permanece no patrimônio do credor até plena quitação do débito, sendo mantida, assim, fora do alcance dos demais credores do devedor comum. De fato, a coisa se sujeita exclusivamente à satisfação do titular da garantia, que não precisa se preocupar com a deterioração da situação patrimonial do devedor nem com a existência de credores privilegiados” (TEPEDINO, Gustavo, MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo, RENTERIA, PABLO. Fundamentos do Direito Civil, vol. 5 – Direitos Reais, 5ª ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2024, p. 501).
[4] V. nota acima.
[5] ABELHA, André e BRESOLIN, Umberto Bara. O novo Marco Legal das Garantias e o preço mínimo do 2º leilão na execução extrajudicial: novas regras, novos desafios. In: CHEZZI, Bernardo e EL DEBS, Martha (coords.). O novo Marco legal das Garantias – Aspectos práticos e teóricos da Lei 14.711/2023, 2ª ed. São Paulo: Jus Podium, 2025, p. 196.
[6] Idem, ibidem.
[7] Idem, ibidem.
[8] STJ, 3ª Turma, REsp n. 20966465/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julg. 14.05.2024.
[9] STJ, 3ª Turma, AgInt nos EDcl no REsp 1931921/ SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, publ. DJe 25.11.2021.
[10] STJ, 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, publ. DJe 23.03.2023.
[11] CHALHUB, Melhim Namen. Alienação Fiduciária – Negócio Fiduciário, 6ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2019, p. 191.
[12] ABELHA, André e BRESOLIN, Umberto Bara. O novo Marco Legal das Garantias e o preço mínimo do 2º leilão na execução extrajudicial, cit., p. 209.
[13] Na verdade, o art. 27, § 5º-A seria a alternativa legal conferida ao credor quando esse não quisesse: a) aceitar valor inferior ao valor da dívida acrescida das despesas, contanto que corresponda a ao menos 50% do valor da dívida; b) ficar investido da livre disponibilidade do imóvel, após os dois leilões infrutíferos, conforme previsto no art. 27, § 5º.
Fonte: Conjur