A aquisição de imóveis rurais por estrangeiros residentes no Brasil e pessoas jurídicas estrangeiras autorizadas a funcionar no Brasil é um tema que tem sido alvo de inúmeros debates e dúvidas desde a publicação do Parecer CGU/AGU 01/2008, pela Advocacia Geral da União.
A Lei 5.709/1971, regulamentada pelo Decreto 74.965/1974 e pelo art. 23 da Lei 8.629/1993, estabelece as regras relativas à aquisição de imóveis rurais por estrangeiros residentes no Brasil ou pessoas jurídicas estrangeiras autorizadas a funcionar no Brasil. De acordo com o artigo 1° e respectivo parágrafo único da Lei 5.709/71, a pessoa jurídica brasileira cuja maioria do capital seja detida por estrangeiros (pessoas físicas ou jurídicas) está sujeita às mesmas restrições aplicáveis às empresas estrangeiras.
Após a promulgação da Constituição de 1988, passou-se a discutir se o regime estabelecido na Lei 5.709/71 permaneceria aplicável às empresas jurídicas brasileiras controladas por estrangeiros, vez que o artigo 190 da Constituição estabelece que as restrições e limitações à aquisição ou arrendamento de imóveis rurais se aplicam a pessoas físicas e jurídicas estrangeiras, não indicando pessoas jurídicas nacionais controladas por estrangeiros.
Diante da dúvida da recepção ou não da Lei 5.709/71 pela Constituição de 1988 e em observância ao art. 4º da Lei Complementar 73/93, a AGU emitiu o Parecer AGU/LA-04/94, no qual sustentava que o §1º do art. 1º da Lei 5.709/71 não teria sido recepcionado pela Constituição de 1988 com base na interpretação dos artigos 171 e 190 da Carta e no entendimento de que as empresas brasileiras de capital estrangeiro não estariam sujeitas às restrições aplicáveis a estrangeiros. Tal entendimento foi ratificado pelo Parecer GQ 181/98, emitido em razão da promulgação da Emenda Constitucional 6 e da revogação do artigo 171 da Constituição.
Em 23 de agosto de 2010 a Advocacia Geral da União emitiu o Parecer CGU/AGU 01/2008, o qual alterou seu entendimento a respeito da aquisição de imóveis rurais por sociedades brasileiras controladas por estrangeiros. De acordo com o parecer, as empresas brasileiras cuja maioria do capital seja detida por estrangeiros está sujeita às restrições previstas na Lei 5.709/71.
Vale destacar que os pareceres da AGU não têm força de lei, representando apenas a interpretação da Constituição e outros atos normativos pela AGU e vinculando apenas os órgãos e entidades da administração federal, conforme determina o art. 4º da Lei Complementar 73/93. Assim, no caso dos imóveis rurais, os pareceres da AGU são vinculativos para o Incra e para o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), mas não são vinculativos para órgãos do Poder Judiciário como os tabelionatos de notas e cartórios de registro de imóveis.
Ademais, em não sendo o parecer da AGU de caráter vinculante para os tabelionatos de notas e registros de imóveis e em havendo o risco de tais órgãos aplicarem entendimentos distintos, em 13 de julho de 2010 (antes inclusive do parecer acima mencionado) a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça determinou que os tabelionatos de notas e os registros de imóveis passassem a observar integralmente o regime da Lei 5.709/71 sob pena de responsabilidade.
Portanto, não houve revogação expressa ou controle de constitucionalidade do §1º do art. 1º da Lei 5.709/71 e o entendimento da AGU a respeito do tema foi alterado em um lapso temporal razoavelmente curto, gerando insegurança jurídica quanto às transações ocorridas entre o parecer de 1994 e o de 2010.
Apesar do inciso XIII do parágrafo único do art. 2º da Lei 9.784/99 limitar os efeitos da nova interpretação firmada no Parecer AGU/LA 01/2010 às situações jurídicas aperfeiçoadas a partir de sua publicação, o Incra, os tabelionatos de notas e os registros de imóveis entendiam que a expressão “situações jurídicas aperfeiçoadas” se referia tão somente às aquisições efetivamente registradas nos cartórios de registro de imóveis até a publicação do parecer.
Tal entendimento ampliou ainda mais a insegurança jurídica, especialmente no que se refere às transações que já haviam sido concluídas, mas cujo registro no cartório de registro de imóveis permanecia pendente.
Nova regra
Diante desse cenário de dúvida e insegurança quanto às transações ocorridas no período de 7 de junho de 1994 a 22 de agosto de 2010, principalmente aquelas que ainda se encontravam em fase de aperfeiçoamento, a AGU e o MDA emitiram a Portaria Interministerial 4, de 25 de fevereiro de 2014, esclarecendo que o sentido da expressão “situações jurídicas aperfeiçoadas” para fins da aplicação do Parecer AGU/LA 01/2010.
São consideradas “situações jurídicas aperfeiçoadas”, conforme o artigo 2º, aquelas em que a aquisição de imóvel rural por pessoa jurídica equiparada a estrangeira já tenha (a) sido objeto de escritura pública lavrada no período de 7 de junho de 1994 a 22 de agosto de 2010, ainda que não registrada; (b) decorrido de aquisição de empresa, cujo instrumento de sucessão empresarial tenha sido apresentado à Junta Comercial até 22 de agosto de 2010, sem prejuízo de eventual autorização ou escrituração legalmente exigida, incluindo eventual aprovação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica; e (c) sido realizada no período de 7 de junho de 1994 a 22 de agosto de 2010, mas sua escrituração ou depósito dependa de ato ou decisão de órgão da Administração Pública e a demora não seja culpa da parte interessada.
No que se refere à hipótese de escritura pública lavrada e não registrada mencionada no item (a) acima, apesar de não estar expresso no texto da portaria, entendemos que apenas se enquadram nesse cenário os casos em que foi lavrada escritura transferindo definitivamente a titularidade dos imóveis, quais sejam, escrituras de compra e venda, doação, permuta, partilha, entre outras.
No tocante ao item (b) acima, entendemos que a interpretação da Portaria Interministerial 4/2014 tem grande valor, na medida em que oferece um respaldo para muitas transações societárias já realizadas, sendo que no caso contemplado (aquisição de empresa) não haverá a necessidade de levar-se o ato societário a posterior registro em registro de imóveis.
Com relação à hipótese indicada no item (c), ali certamente se enquadram os casos em que foi celebrado um compromisso de compra e venda no período de 7 de junho de 1994 a 22 de agosto de 2010 e a lavratura da escritura pública dependa de atos da Administração Pública, como a aprovação do georreferenciamento da área pelo Incra e a aprovação da transação pelo Conselho de Defesa Nacional (CDN), entre outros. Já nos casos de compromissos de compra e venda que dependam de outras condições, o enquadramento na hipótese do item (c) acima poderá variar conforme as características de cada caso.
Em suma, a Portaria Interministerial 4/2014 trouxe maior clareza quanto à aplicação do Parecer AGU/LA 01/2010, permitindo que as aquisições que se enquadrem nas hipóteses acima possam ser efetivadas. É importante destacar que a portaria vincula apenas os órgãos e as entidades da administração federal, não sendo obrigatória para os demais órgãos, especialmente os cartórios de registro de imóveis, os quais são vinculados ao Poder Judiciário.
Por esse motivo, no que tange às aquisições enquadradas nas hipóteses (a) e (c) acima mencionadas, a Portaria Interministerial 4/2014 acaba não resolvendo a situação de insegurança vigente, vez que os órgãos externos ao Poder Executivo, especialmente os cartórios de registro de imóveis, não são obrigados a observá-la. Portanto, certamente os cartórios de registro de imóveis e tabelionatos de notas continuarão a observar as normas emitidas pelo CNJ a respeito da aplicação da Lei 5.709/71 e deverão se negar a registrar as aquisições enquadradas nas hipóteses (a) e (c) mencionadas acima.
Nesses casos, o problema apenas será solucionado (i) em cada caso, se houver manifestação expressa do Incra no sentido de dar validade à transação; ou (ii) de forma mais ampla e efetiva, após efetiva manifestação e concordância do CNJ com relação ao disposto na portaria interministerial, de modo que os registros de imóveis sejam obrigados a observar a referida norma e essas situações sejam de fato resolvidas e passíveis de registro.
Concluímos assim que, apesar do avanço trazido pela Portaria Interministerial 4/2014, a ausência de revogação expressa ou controle de constitucionalidade do §1º do art. 1º da Lei 5.709/71 ainda faz com que a interpretação quanto à recepção do referido dispositivo pela Constituição de 1988 e, consequentemente, a situação das aquisições de imóveis rurais por sociedades brasileiras controladas por estrangeiros, permaneça sujeita a um elevado grau de dúvidas.