Por Moema Locatelli Belluzzo e Fabiana Aurich
1. Introdução
A transformação digital dos serviços públicos, intensificada durante e após a pandemia, possibilitou a prática de atos que antes exigiam presença física das partes, agora realizados à distância e com uso de assinatura digital. Trata-se de um avanço incontestável, que trouxe inúmeros benefícios e facilidades aos cidadãos.
Entretanto, essa evolução demanda reflexões cuidadosas, sobretudo diante de valores que devem permanecer inegociáveis na prática de atos e na formalização de negócios: a segurança jurídica e a autenticidade das informações. A digitalização não pode prescindir de mecanismos que assegurem a confiabilidade dos procedimentos e a proteção das partes envolvidas.
Nesse contexto, destaca-se a plataforma Gov.br, desenvolvida pelo Governo Federal, já amplamente utilizada pela população brasileira para requerer benefícios, emitir documentos e realizar diversas transações eletrônicas. Embora represente um avanço relevante, seu uso traz à tona dois desafios significativos: a inclusão digital, pois é necessário que o cidadão possua conhecimento e familiaridade suficientes para operar o sistema e a robustez na verificação da identidade do usuário e na segurança do acesso, aspectos essenciais para prevenir fraudes e preservar a integridade dos serviços.
No tocante à segurança, este tem se revelado o maior desafio da digitalização de serviços públicos. Episódios noticiados pela imprensa e amplamente repercutidos nas redes sociais evidenciaram vulnerabilidades relevantes no sistema, expondo cidadãos a riscos concretos de usurpação de identidade, fraudes financeiras e prejuízos patrimoniais. Tais incidentes demonstram que a tecnologia, embora essencial para a modernização, exige constante aprimoramento de protocolos de autenticação, criptografia e fiscalização, sob pena de comprometer a confiança dos usuários.
Diante desse cenário, impõe-se reconhecer que, para determinados atos e negócios jurídicos, permanece imprescindível recorrer a meios que conciliem eficiência tecnológica com segurança jurídica plena, como os serviços notariais e registrais. Essas atividades, atualmente também disponíveis em ambiente eletrônico, operam sob rígida normatividade, fé pública e responsabilidade pessoal do delegatário, oferecendo um nível de proteção substancialmente superior e garantias legais mais sólidas, capazes de assegurar a validade, a autenticidade e a integridade dos negócios formalizados.
2. A vulnerabilidade da conta Gov.br: Casos de fraude e decisões judiciais recusando documentos assinados por meio do Gov.br
A conta Gov.br foi instituída pelo decreto 8.936/161 como um meio oficial de autenticação eletrônica destinado à identificação segura do cidadão nos sistemas públicos. Funciona como uma credencial única de acesso a diversas plataformas governamentais, tais como Meu INSS, eSocial, Carteira de Trabalho Digital, Conecte SUS, Portal de Serviços Gov.br e, em integração com o e-CAC, à Receita Federal.
Além de centralizar o acesso aos serviços públicos, a conta Gov.br também possibilita, conforme o nível de confiabilidade atribuído ao usuário, a assinatura eletrônica de documentos diretamente pelo aplicativo oficial, nos termos do art. 3º, inciso IX, do decreto 8.936/16. Essa funcionalidade amplia o leque de atos que podem ser praticados à distância, dispensando a presença física do cidadão em órgãos públicos ou repartições, e consolidando o Gov.br como um elemento central na política de digitalização do Estado brasileiro.
Embora o decreto 8.936/16 discipline o funcionamento da conta Gov.br e sua utilização para autenticação e assinatura de documentos, a base normativa que define as modalidades de assinatura eletrônica no Brasil está prevista na lei 14.063/202. Essa lei estabelece parâmetros técnicos e jurídicos para o uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos, entre particulares e em comunicações processuais, classificando-as de acordo com o grau de segurança e confiabilidade que oferecem.
De acordo com o art. 4º da lei 14.063/20, as assinaturas eletrônicas são classificadas em três modalidades, distintas pelo grau de segurança e confiabilidade na identificação do signatário.
Assim, tem-se que a assinatura eletrônica simples permite identificar o autor do ato e associar seus dados ao documento eletrônico, mas não utiliza mecanismos avançados de autenticação. A assinatura eletrônica avançada recorre a certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou a outros meios de comprovação de autoria e integridade admitidos pelas partes, devendo estar vinculada de forma única ao signatário, ser operada sob seu controle exclusivo e permitir a verificação de qualquer alteração posterior do documento. Já a assinatura eletrônica qualificada, a mais segura, é emitida com certificado digital da ICP-Brasil, nos termos da MP 2.200-2/01, observando padrões normativos e de segurança específicos. Conforme o § 1º do mesmo artigo, o que diferencia essas modalidades é o grau de confiança quanto à identidade do titular e à manifestação de sua vontade, sendo a assinatura qualificada a que oferece as garantias mais robustas.
À luz da legislação, a assinatura Gov.br enquadra-se como assinatura eletrônica avançada, apresentando um nível intermediário de confiabilidade na identificação do signatário. Tanto é assim que o art. 5º, II, da mesma lei, estabelece que esse tipo de assinatura é admitida para interações com entes públicos de menor impacto, que não envolvam informações protegidas por grau de sigilo, bem como para o registro de atos perante as juntas comerciais.
Apresentado o contexto legal e o panorama sobre a assinatura Gov.br, passa-se à exposição de casos concretos de fraude envolvendo sua utilização:
O Poder Judiciário também tem restringido a utilização de documentos assinados por meio da plataforma Gov.br em processos judiciais, evidenciando a falta de credibilidade quanto à identificação segura do signatário.
No REsp 2.199.052/PB (2025/0059608-7), o ministro Paulo Sérgio Domingues destacou que, embora a Plataforma de Cidadania Digital tenha sido instituída pelo decreto 8.936/16 para interações com entes públicos (art. 3º, IX), o decreto 10.543/20 expressamente vedou seu uso para assinatura de documentos em processos judiciais (art. 2º, parágrafo único, I).
Ressaltou, ainda, que a plataforma não é credenciada na ICP-Brasil, motivo pelo qual considerou apócrifa a petição de recurso especial assinada via Gov.br, determinando a intimação do advogado para regularização no prazo de cinco dias, sob pena de não conhecimento do recurso.
De forma semelhante, o CNJ, em resposta à consulta 0003850-52.2024.2.00.0000, rechaçou o uso da assinatura Gov.br para autorizações eletrônicas de viagem. Embora reconheça que a assinatura eletrônica por certificado digital ou pela plataforma possua validade jurídica em outros contextos, o CNJ entendeu que ela não supre, por si só, a exigência legal e regulamentar de reconhecimento de firma em Cartório para autorizações de viagem de menores desacompanhados.
O argumento central, nesse caso, foi assegurar a autenticidade do consentimento dos pais ou responsáveis, garantindo maior proteção às crianças e adolescentes. E, aqui, o grande diferencial de segurança está na videoconferência realizada pelo e-Notariado, que permite a verificação, em tempo real, da identidade e da manifestação de vontade do responsável, registrando o ato com fé pública notarial e reduzindo significativamente o risco de fraudes, aspecto que não é plenamente alcançado pela assinatura Gov.br.
Todos esses episódios, somados às decisões dos Tribunais e do CNJ, evidenciam a fragilidade do sistema quando utilizado sem critérios rigorosos de autenticação e proteção da identidade, como pode ocorrer com a plataforma Gov.br.
Embora a assinatura eletrônica via Gov.br possua validade jurídica, ela não exige, por padrão, o uso de certificado digital ICP-Brasil. A robustez da autenticação varia conforme o nível da conta (bronze, prata ou ouro) e, nos níveis mais baixos, a validação pode ocorrer apenas com login e senha, ou com dados facilmente obtidos por terceiros, sem verificação biométrica obrigatória.
Essa configuração abre espaço para fraudes: criminosos obtêm ou interceptam as credenciais de acesso da vítima, invadem a conta Gov.br, elevam o nível de permissão ou exploram recursos já disponíveis e, a partir daí, assinam documentos, emitem procurações, alteram cadastros em órgãos públicos e até realizam transações financeiras, tudo com aparência de ato legítimo. Essa vulnerabilidade gera um cenário de incerteza jurídica quanto à autoria e à integridade dos atos assinados, sobretudo quando não há mecanismos adicionais, como a conferência presencial ou por videoconferência notarial.
3. A segurança jurídica da assinatura pelo e-Notariado
O provimento 100/20 do CNJ, atualmente incorporado ao Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial, regulamentou a prática de atos notariais eletrônicos com segurança, validade jurídica e fé pública, por meio da plataforma e-Notariado. A assinatura digital realizada por esse sistema utiliza um certificado notarizado, emitido exclusivamente por tabelião de notas, em ambiente controlado e com protocolos de segurança mais rigorosos do que aqueles adotados em plataformas de autenticação genérica.
Diferentemente do que ocorre na assinatura pelo Gov.br, cuja robustez varia conforme o nível da conta e que, nos níveis mais baixos, pode depender apenas de login e senha ou de autenticação simplificada, o certificado notarizado exige a identificação presencial ou por videoconferência conduzida pelo próprio tabelião. Essa identificação é complementada pela verificação biométrica facial cruzada com bases oficiais, o que reduz de forma significativa o risco de falsificação ou uso indevido. Além disso, a emissão do certificado é sempre vinculada a um notário específico, que responde civil, administrativa e criminalmente pelo ato, criando um elo de responsabilidade pessoal que não existe nas demais plataformas.
A confiabilidade desse certificado decorre da própria fé pública que reveste os atos notariais. Como explicam Vitor Frederico Kumpel e Carla Modina Ferrari (2023, p. 110), a fé pública ou publica fides deriva da confiança social na veracidade e legitimidade dos atos praticados por autoridade pública, relação esta que se entrelaça com a boa-fé e a aparência, em tradição histórico-jurídica de matriz romano-canônica.
Outro aspecto relevante é que os documentos assinados com certificado notarizado podem ser submetidos ao módulo "e-Not Assina", que realiza o reconhecimento eletrônico de firma com o mesmo valor jurídico do reconhecimento feito presencialmente no Cartório. Nessa hipótese, o documento não apenas recebe uma assinatura digital, mas também tem sua autoria e integridade certificadas por um agente dotado de fé pública, o que amplia o seu valor probatório.
Essa atuação notarial também possui caráter preventivo: o tabelião, no exercício de sua função pública, zela para que o conteúdo do documento seja compreendido pelas partes, que a manifestação de vontade seja livre e consciente e que não haja vícios formais capazes de gerar litígios. Trata-se de uma cautelaridade que não se limita à autenticação da identidade, mas se estende à verificação da regularidade formal do ato e à preservação da segurança jurídica.
Em síntese, a assinatura eletrônica pelo e-Notariado combina mecanismos técnicos robustos de autenticação com a responsabilidade pessoal do notário e a fé pública notarial, oferecendo um nível de segurança, rastreabilidade e eficácia jurídica que se mostra especialmente relevante para contratos, procurações, escrituras e demais negócios patrimoniais de maior relevância, cenário em que a mera assinatura eletrônica, sem a chancela notarial, se revela insuficiente para mitigar riscos e prevenir litígios.
4. Conclusão
A transformação digital dos serviços públicos é irreversível e representa um avanço histórico na relação entre o Estado e o cidadão. Contudo, a tecnologia, por si só, não garante segurança nem autenticidade. No universo jurídico, confiança não se improvisa: constrói-se com controles rigorosos, responsabilidade e verificação qualificada da identidade.
A plataforma Gov.br é um passo importante nesse processo, mas os episódios de fraude, as restrições impostas pelo Poder Judiciário e os posicionamentos de órgãos como o CNJ deixam claro que sua estrutura de autenticação ainda não oferece a blindagem necessária para todos os atos jurídicos, especialmente aqueles de maior impacto patrimonial ou pessoal.
Nesse cenário, os serviços notariais eletrônicos, por meio do e-Notariado, representam muito mais do que uma alternativa tecnológica: são a tradução, no ambiente digital, da mesma fé pública que protege negócios e direitos há séculos no meio físico. Aqui, cada assinatura é fruto de uma identificação segura, conferida por um profissional que responde pelo ato e que atua de forma preventiva para evitar litígios. É tecnologia aliada à responsabilidade humana, capaz de transformar um arquivo digital em prova robusta e incontestável.
Em um tempo em que a informação circula à velocidade de um clique e a fraude pode se materializar em segundos, adotar o e-Notariado não é apenas modernizar, é blindar. É garantir que a transição para o digital preserve a essência da segurança jurídica, protegendo pessoas, empresas e o próprio Estado. Os Cartórios, agora também no mundo virtual, permanecem onde sempre estiveram: na linha de frente da defesa da verdade, da confiança e dos direitos.
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2.199.052, Relator Ministro Paulo Sérgio Domingues, julgado em 11 jul. 2025. Diário da Justiça Eletrônico Nacional, Brasília, DF, 11 jul. 2025.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Consulta n. 0003850-52.2024.2.00.0000. Brasília, DF, 2024.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 149, de 30 de agosto de 2023. Dispõe sobre os procedimentos para a lavratura e registro do ato de reconhecimento voluntário de filiação socioafetiva perante os ofícios de registro civil das pessoas naturais e dá outras providências. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 31 ago. 2023.
KUMPEL, Vitor Frederico. Tratado de Direito Notarial e Registral: Vol III: tabelionato de notas. 2ª Edição. São Paulo. YK Editora. 2022.
Fonte: Migalhas