Por Moema Locatelli Belluzzo
Imagine a seguinte situação: você se dirige ao cartório de registro civil alegando que há um erro no seu assento de nascimento, lavrado há mais de 20 anos. Informa que seu nome foi registrado como “Marcos”, mas que, na verdade, sempre foi “Marco” e solicita a correção gratuita, por entender tratar-se de um erro evidente e grosseiro cometido à época.
Hoje, à frente da serventia, encontra-se um oficial recém-aprovado em concurso público, que à época da lavratura do ato sequer havia nascido. E então surgem as perguntas inevitáveis: de quem foi o erro? Como se comprova que houve efetivamente um erro? Seria do declarante que forneceu os dados? Do registrador que os transcreveu? E mais: se o oficial responsável à época agiu com base nas declarações das partes e sob o manto da fé pública, como pode agora o novo titular, estranho aos fatos e à cadeia de atos pretéritos, ser compelido a corrigir gratuitamente um suposto equívoco do qual não participou e cuja origem sequer pode ser objetivamente verificada?
É a partir dessa situação concreta, comum na prática extrajudicial, que se desenvolve uma reflexão: até que ponto a vedação à cobrança de emolumentos, prevista no artigo 3º, IV, da Lei nº 10.169/2000, pode ser aplicada ao delegatário atual, quando o erro alegado é remoto, incerto e imputável a um oficial anterior? A resposta a essa questão exige mais do que uma leitura literal da norma. Impõe o exame da estrutura jurídica do serviço extrajudicial, da inexistência de personalidade jurídica dos Cartórios e dos pressupostos legais que autorizam a responsabilização pessoal do delegatário.
No que se refere à responsabilidade civil, esta é caracterizada nas hipóteses em que se busca, por meio de ação judicial própria, a reparação de um dano mediante indenização. Trata-se, portanto, de matéria que exige o devido processo judicial, no qual devem ser comprovados, de forma cumulativa, os requisitos previstos no artigo 927 do Código Civil: conduta (ação ou omissão), culpa ou dolo, nexo de causalidade e dano.
No tocante aos serviços notariais e de registro, com a alteração promovida pela Lei nº 13.286/2016, o artigo 22 da Lei nº 8.935/1994 passou a prever expressamente que a responsabilidade civil dos notários e registradores é subjetiva, exigindo a demonstração de dolo ou culpa. Em arremate, em 27 de fevereiro de 2019, o plenário do Supremo Tribunal Federal reafirmou a jurisprudência da Corte, no julgamento do citado Tema 777 de Repercussão Geral (RE 842.846/RS), reconhecendo que o Estado responde, objetivamente, pelos danos causados a terceiros por tabeliães e oficiais de registro no exercício de suas funções, fixando a seguinte tese: “o Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.”
Já no âmbito da responsabilidade administrativa, aplicável no exercício do poder disciplinar da Corregedoria, exige-se igualmente a verificação de conduta funcional, culpa (por ação ou omissão dolosa ou culposa), nexo causal e violação a deveres legais, conforme o disposto nos artigos 31 a 33 da Lei nº 8.935/1994. A doutrina administrativa é uníssona em afirmar que não há sanção administrativa válida sem a demonstração de culpabilidade (cf. JUSTEN FILHO, Curso de Direito Administrativo, 2015, p. 596), sendo imprescindível o respeito ao devido processo legal e à ampla defesa (artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição).
Nesse sentido, a Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo já decidiu que “a responsabilidade administrativa do delegatário somente surge com a existência de uma conduta dolosa ou culposa” (Processo CGJSP nº 45.426/2012, relator desembargador José Renato Nalini). Portanto, tanto na esfera civil quanto na administrativa, é inafastável a demonstração concreta de conduta pessoal, voluntária e culposa do delegatário, sendo absolutamente vedada a responsabilização automática, objetiva ou retroativa, sob pena de afronta direta à Constituição e aos princípios que regem o Estado democrático de direito.
É nesse contexto que se insere o artigo 3º, inciso IV, da Lei nº 10.169/2000, que dispõe: “É vedada a cobrança de emolumentos em decorrência da prática de ato de retificação ou que tenha de ser refeito ou renovado em razão de erro imputável aos respectivos serviços notariais e de registro.” A norma visa proteger o usuário, impedindo que este arque com os custos de um erro que não cometeu, o que, em princípio, é legítimo.
O mesmo raciocínio é reforçado no § 5º do artigo 110 da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), que dispõe: “Nos casos em que a retificação decorra de erro imputável ao oficial, por si ou por seus prepostos, não será devido pelos interessados o pagamento de selos e taxas.” Importa destacar, contudo, que essa redação é posterior à Lei nº 10.169/2000, tendo sido introduzida pela Lei nº 13.484/2017. À luz do critério cronológico de interpretação normativa, essa inovação legislativa ajustou e atualizou a disciplina anterior, substituindo a expressão genérica “erro imputável aos respectivos serviços notariais e de registro” — constante da Lei nº 10.169/2000 — pela formulação mais precisa “erro imputável ao oficial, por si ou por seus prepostos”.
Essa alteração não foi meramente redacional, mas substancial: reafirma que a responsabilidade é pessoal do delegatário que praticou o ato (ou de seus prepostos), e não da serventia em abstrato, que, como reconhece a jurisprudência consolidada, não possui personalidade jurídica. O legislador, ao reformar o § 5º do artigo 110, alinhou a redação à lógica do sistema de responsabilidade civil e administrativa dos notários e registradores, reforçando a pessoalidade e a necessidade de vinculação direta entre conduta e agente. Por isso, a interpretação atual do artigo 3º, IV, da Lei nº 10.169/2000 deve ser feita à luz dessa alteração posterior, de forma harmônica com o ordenamento, de modo a afastar qualquer leitura que implique responsabilização genérica ou automática do novo titular por atos que não praticou.
A interpretação isolada e automática dessas disposições, desconsiderando os pressupostos da responsabilidade e os limites jurídicos da delegação, pode gerar distorções inaceitáveis. O simples fato de se tratar de ato a ser refeito não implica necessariamente a existência de erro imputável ao atual delegatário, ainda mais quando se trata de retificação de ato lavrado por titular anterior, décadas atrás.
Importa destacar que, inexistindo personalidade jurídica das serventias extrajudiciais, conforme reiteradamente reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ, AgRg no REsp 624.975/SC, Rel. Min. Maria Isabel Galloti, DJE 11.11.2010), a delegação é conferida ao titular de forma personalíssima, inaugural e originária. Trata-se, pois, de uma outorga individual, que não se transmite com ospassivos eventualmente deixados por gestores anteriores. Assim, não se pode imputar ao atual delegatário a responsabilidade por supostos atos errados praticados por oficial anterior do Cartório, pois sequer se verifica o pressuposto mais básico da responsabilização, seja ela civil, administrativa ou penal, que é a conduta. Sem a prática do ato por parte do agente a quem se pretende responsabilizar, inexiste fundamento jurídico legítimo para qualquer imputação.
Se ao atual delegatário é imposto o dever de refazer determinado ato gratuitamente, sem que se verifique sua participação ou falha no fato gerador da retificação, está-se, na prática, diante de verdadeira sanção administrativa disfarçada, sem processo regular, sem apuração de conduta, sem culpa e sem qualquer mecanismo de defesa.
Não há que se falar em responsabilidade objetiva do atual oficial, tampouco em responsabilização automática por ato praticado por delegatário anterior, sem qualquer vínculo entre a conduta e o suposto erro. O princípio da pessoalidade da responsabilidade funcional, conforme o artigo 22 da Lei nº 8.935/1994, impõe que cada delegatário responda apenas pelos atos que praticar com culpa ou dolo, não sendo admitida a transferência presumida de encargos decorrentes de atos alheios.
Tal prática viola frontalmente o princípio do devido processo legal (artigo 5º, LIV e LV, da Constituição) e a lógica elementar da responsabilidade: ninguém pode ser responsabilizado, ainda que administrativamente, por ato que não praticou, nem direta nem indiretamente.
Portanto, qualquer imposição de gratuidade com base no artigo 3º, IV, da Lei nº 10.169/2000 e no § 5º do artigo 110 da Lei nº 6.015/1973 pressupõe processo administrativo prévio, no qual se apure a existência de erro imputável ao atual delegatário, com garantia de contraditório e ampla defesa. Ausente essa apuração, não se pode compelir o delegatário a custear, com recursos próprios, a prática de atos gratuitos, sob pena de configurar penalidade administrativa aplicada à margem da legalidade e sem respaldo constitucional.
Exigir a gratuidade de um ato do atual delegatário, que não participou da lavratura original, não tinha qualquer vínculo com a gestão anterior e sequer exercia a delegação à época dos fatos, significa desconsiderar a estrutura jurídica da responsabilidade civil e administrativa no ordenamento brasileiro. Ainda que o artigo 5º, inciso XLV, da Constituição, trate especificamente da responsabilidade penal, o princípio nele consagrado (o da pessoalidade da sanção) inspira também o regime jurídico das responsabilidades civis e administrativas, que não admitem a imposição de ônus a quem não praticou a conduta lesiva. A mera alegação da existência de um erro em registro antigo não autoriza, por si só, a imputação de responsabilidade ao novo titular, sem prova da autoria, da conduta e do nexo de causalidade.
Além disso, deve-se considerar que toda gratuidade em matéria de emolumentos possui impacto financeiro direto sobre a estrutura da delegação, que é exercida de forma privada, às custas do delegatário. A Lei nº 10.169/2000 prevê, em seu artigo 11, que atos gratuitos devem ser compensados por meio de fundos específicos, o que não ocorre quando se impõe, sem previsão legal, que o atual titular pratique um novo ato sem qualquer remuneração. A gratuidade, nesses casos, não é apenas juridicamente indevida: ela é economicamente inviável e institucionalmente injusta.
Ademais, os emolumentos têm natureza jurídica de tributo do tipo taxa, conforme reiterado pelo Supremo Tribunal Federal [1]. Sendo assim, toda gratuidade que envolva a dispensa de seu pagamento configura, na prática, renúncia de receita tributária. E, como tal, está sujeita aos rigores do artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000), que exige estimativa de impacto orçamentário-financeiro, compensação e previsão legal específica.
A própria Lei nº 10.169/2000, ao prever hipóteses de gratuidade, estabelece que deverá haver fonte de compensação para os atos praticados sem cobrança, sob pena de violação à sustentabilidade da delegação. Isso porque os cartórios não recebem recursos orçamentários para seu custeio. São exercidos por pessoas físicas, aprovadas em concurso público, que respondem com seus próprios meios pela manutenção da Serventia, do pessoal, dos encargos e da estrutura.
Portanto, não se pode tratar a gratuidade como se os cartórios fossem repartições públicas. Toda vez que se cogita a dispensa de emolumentos, é necessário perguntar: quem pagará essa conta? Diante de todas essas questões, impõem-se os seguintes questionamentos: como compatibilizar o direito do atual delegatário, que não praticou a conduta e, portanto, não pode ser punido por algo que não realizou, com o direito do usuário de não arcar com emolumentos em razão de comprovado erro que não lhe é imputável?
O primeiro e inafastável passo é a instauração de regular processo administrativo, com contraditório e ampla defesa, para apurar se efetivamente houve erro na prática do ato original. E mais: deve-se ter em mente que muitos desses atos foram praticados décadas atrás, com base em declarações das partes e sob o amparo da fé pública notarial ou registral, o que impõe ainda maior rigor na apuração do suposto equívoco.
Além disso, tanto na responsabilidade civil quanto na administrativa, o devido processo legal não se restringe à apuração da conduta, do dolo ou da culpa e do nexo causal, sendo igualmente indispensável para verificar a própria subsistência da pretensão punitiva ou indenizatória, o que inclui a análise da prescrição. Em inúmeros casos, os atos questionados remontam a décadas e, assim, eventual
responsabilização já se encontraria fulminada pelo decurso do prazo prescricional, de modo que desconsiderar essa verificação significa afrontar a segurança jurídica e impor ao atual delegatário um encargo que, juridicamente, já não poderia ser exigido.
Nessas hipóteses, ainda que se comprove a existência do erro, mas sendo ele imputável a delegatário que já não ocupa a serventia, é preciso encontrar uma solução que respeite os limites da responsabilidade pessoal e os princípios constitucionais. A medida mais justa e juridicamente equilibrada é a prática gratuita do novo ato em favor do usuário, por se tratar de erro reconhecido, com ressarcimento ao atual delegatário por meio de fundo de compensação ou outro mecanismo institucional, sem prejuízo da eventual ação regressiva contra o ex-delegatário, se cabível.
Essa solução concilia, de forma equilibrada, a proteção do interesse do cidadão com a preservação dos direitos do atual delegatário. Corrige o erro sem onerar indevidamente o usuário e, ao mesmo tempo, impede que o novo titular seja compelido a suportar uma sanção velada, em respeito inafastável aos princípios da legalidade, da pessoalidade da responsabilidade, da segurança jurídica e do devido processo legal.
[1]STF – RE: 116208 MG, Relator.: Min. MOREIRA ALVES, Data de Julgamento: 20/04/1990, TRIBUNAL PLENO, Data de Publicação: DJ 08-06-1990