Por João Rodrigo Stinghen
O avanço da tecnologia sempre traz novidades que facilitam o acesso a informações relevantes, como é o caso da Central de Escrituras e Procurações (também chamada de Busca CEP). Essa ferramenta permite que qualquer interessado consulte a existências desses atos notariais em nome de terceiros — o que até então era restrito aos tabeliães de notas.
A mudança exige uma reflexão sob a ótica da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD): a publicidade dessas informações ofende a privacidade das partes envolvidas?
Aspecto institucional
Após deliberação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [1] e a publicação do Provimento CNJ nº 194/2025, passou a ser permitida a consulta pública à funcionalidade “Busca CEP”. Até então, a ferramenta era módulo operacional da Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados (Censec), de consulta restrita a notários.
A Busca CEP permite que qualquer cidadão consulte os atos lavrados em nome de determinada pessoa natural ou jurídica. A consulta retorna o nome do cartório, o tipo de ato (escritura ou procuração pública) e os livro e folhas do livro onde foi lavrado — sem revelar o conteúdo do instrumento, nem o objeto da negociação.
À primeira vista, essa abertura pode gerar desconfiança sob o argumento de que se estaria violando a privacidade dos cidadãos. No entanto, uma análise mais profunda revela que a medida, se corretamente utilizada, é compatível com os princípios da proteção de dados. Mais do que isso: pode ser uma ferramenta a serviço do interesse público.
Do ponto de vista institucional, a medida deve ser entendida como uma iniciativa que equilibra publicidade notarial, eficiência administrativa e proteção de dados pessoais.
O princípio da finalidade — pilar da LGPD — é atendido, pois a abertura da consulta tem como escopo legítimo a ampliação do acesso à informação pública, favorecendo a proteção do crédito e a desjudicialização.
Com efeito. o objetivo de facilitar o acesso aos dados de procurações e escrituras é facilitar a busca patrimonial em face de credores inadimplentes. Por um lado, isso ajuda a proteger o crédito, diminuindo o risco envolvido e abaixando as taxas de juros. Por outro, contribui para desafogar o Judiciário, cuja “taxa de congestionamento processual […] encontra maiores índices exatamente nos processos de execução” [2].
O sistema também respeita o princípio da necessidade, pois os dados fornecidos pela ferramenta são mínimos: não há divulgação do objeto do ato, do valor da transação, nem de dados de terceiros eventualmente envolvidos. A consulta apenas indica a existência de determinado ato em nome da pessoa objeto da busca, funcionando como um índice público (e não como a certidão).
De igual modo, são cumpridos os princípios da segurança e da prevenção. O acesso à ferramenta exige a identificação do usuário, com fornecimento de CPF ou CNPJ e assinatura digital, o que evita abusos e impede a prática conhecida como webscraping (raspagem automatizada de dados).
A rastreabilidade das consultas colabora com o princípio da responsabilização e da prestação de contas, já que permite que o Colégio Notarial do Brasil (CNB) fiscalize seu uso e identifiquem eventuais desvios.
Aliás, a legitimidade da medida decorre da forma como foi construída. O Colégio Notarial, entidade representativa dos tabeliães de notas, participou ativamente do processo perante o CNJ.
Do relatório da decisão do CNJ [3], depreende-se que várias das medidas de segurança que hoje tornam a Busca CEP uma ferramenta segura e adequada à LGPD decorrem da participação ativa do CNB no feito.
E mais: essa participação conferiu representatividade institucional dos notários e assegurou a harmonia da ferramenta com o ordenamento jurídico brasileiro, que confere aos tabeliães a competência para conservar a publicizar os atos lavrados.
Houve, portanto, respeito à função social da atividade notarial. A medida garante, por um lado, que o acesso à informação seja facilitado para o cidadão e, por outro, preserva o papel do notário como guardião do conteúdo dos atos [4].
Quem deseja conhecer os detalhes de determinada escritura ou procuração precisará solicitar certidão diretamente ao cartório responsável. Isso mantém a viabilidade econômica da atividade notarial e garante a autenticidade e a fé pública do documento emitido.
Essa dinâmica respeita as melhores práticas de disponibilização de dados indicadas no parágrafo único do artigo 101 do Código Nacional de Normas:
Art. 101. O compartilhamento de dados com centrais de serviços eletrônicos compartilhados é compatível com a proteção de dados pessoais, devendo as centrais observar a adequação, necessidade e persecução da finalidade dos dados a serem compartilhados, bem como a maior eficiência e conveniência dos serviços registrais ou notariais ao cidadão.
Parágrafo único. Deverá ser dada preferência e envidados esforços no sentido de adotar a modalidade de descentralização das bases de dados entre a central de serviços eletrônicos compartilhados e as serventias, por meio do acesso pelas centrais às informações necessárias para a finalidade perseguida, evitando-se a transferência de bases de dados, a não ser quando necessária para atingir a finalidade das centrais ou quando o volume de requisições ou outro aspecto técnico prejudicar a eficiência da prestação do serviço.
Percebe-se que a Busca CEP respeita com rigor a o que consta no dispositivo acima. Ao mesmo tempo em que permite uma consulta centralizada de dados restritos, garante que o acesso à íntegra dos atos ocorra de forma descentralizada, por meio de certidões.
Aspecto individual
Sob a perspectiva do usuário da ferramenta, porém, é preciso ter clareza de que o simples fato de a consulta ser pública não exime a observância da LGPD.
A lei se aplica a qualquer tratamento de dados, inclusive os extraídos de bases públicas. Nesse sentido, o artigo 7º, § 3º da LGPD estabelece que “o tratamento de dados pessoais cujo acesso é público deve considerar a finalidade, a boa-fé e o interesse público que justificaram sua disponibilização”.
Isso significa que o usuário da ferramenta se torna agente de tratamento [5], o que implica garantir a governança dos dados acessados. Para tanto, o tratamento deve cumprir as condições de legitimidade previstas na LGPD [6], a saber: a existência de base legal autorizativa do tratamento e o respeito aos princípios de proteção de dados.
As bases legais são o que autoriza a tratar os dados. É um rol de hipóteses taxativas previstas nos artigos 7º e 11 da LGPD (para dados comuns e sensíveis, respectivamente).
No uso da Busca CEP, ela poderá variar. Se o interessando possui um processo judicial instaurado contra o devedor cujo patrimônio pretende investigar, a consulta à ferramenta é fundada no exercício regular de direitos em processo (artigo 7º, VI, LGPD). Vale ressaltar que o usuário que faz as consultas deve ter um vínculo concreto com a parte credora, por meio de mandato ou contrato de prestação de serviços.
Se não há processo, pode se embasar na proteção do crédito (artigo 7º, X, LGPD) ou do legítimo interesse (artigo 7º, IX, LGPD). Nesse caso, é preciso que o agente demonstre os requisitos necessários para legitimação do tratamento, o que pode incluir teste de balanceamento e relatório de impacto.
No que diz respeito aos princípios, o agente de tratamento deve possuir um sistema de governança de dados que satisfaça todas as exigências legais. Nesse sentido, dentre outras questões, precisa se perguntar:
Outro aspecto decorrente dos princípios é a necessidade de respeitar os direitos dos titulares. Para tanto, é preciso garantir transparência por meio de avisos de privacidade claros e completos, disponibilizar canais para atendimento de solicitações e treinar seu pessoal para encaminhar as demandas de maneira satisfatória.
Conclusão
Em suma, a Busca CEP deve ser celebrada como um avanço institucional. A medida é economicamente útil e juridicamente legítima, contribuindo para a eficiência do Judiciário, a prevenção de fraudes e a segurança jurídica nas relações negociais.
Sob aspecto institucional, os riscos à privacidade dos titulares foram mitigados de forma eficaz, com restrição ao conteúdo dos dados e exigência de identificação do requerente. Sob aspecto dos usuários individuais, a conformidade à LGPD depende do uso ético e responsável da ferramenta.
Publicidade e privacidade, eficiência e legalidade, longe de serem conceitos antagônicos, podem e devem conviver — desde que haja boa-fé e governança de dados.
Fonte: Conjur