Notícias

17/07/2025

Artigo - Cartórios como agentes de proteção patrimonial: entre a função registral e o dever de cautela social

Por Gabriel de Sousa Pires

Introdução

A violência patrimonial é uma das formas mais silenciosas - e muitas vezes naturalizadas - de violação de direitos praticada contra mulheres e idosos no Brasil. Longe dos holofotes das agressões físicas ou verbais, ela opera com sutileza e aparente legalidade: doações forçadas, procurações obtidas sob coação, transferências patrimoniais com vícios de vontade e atos praticados em evidente estado de vulnerabilidade.

Nesse cenário, os cartórios não são apenas receptores de declarações de vontade formalmente manifestadas, mas atores institucionais com capacidade - e dever - de exercer cautela social. Investidos da função pública de conferir segurança jurídica aos atos da vida civil, os notários e registradores atuam como verdadeiros guardiões da legalidade, da boa-fé objetiva e da dignidade da pessoa humana.

A crescente judicialização de atos extrajudiciais viciados por coação ou fraude tem evidenciado um ponto crítico: a mera aparência de legalidade não basta. Quando o agente delegado presencia sinais concretos de abuso, a omissão pode se transformar em conivência jurídica - com impactos graves e irreversíveis para o patrimônio e a vida de pessoas vulneráveis.

Este artigo propõe uma reflexão sobre o papel dos cartórios como agentes de proteção patrimonial, discutindo os limites da atuação notarial e registral diante de situações de suspeita, os fundamentos jurídicos do dever de cautela, os riscos de responsabilização por omissão, e boas práticas que vêm sendo adotadas por delegatários em diferentes partes do país.

A violência patrimonial: conceito, números e perfis de vulnerabilidade

A violência patrimonial é uma forma específica de abuso que atinge diretamente a autonomia e a dignidade da vítima, com impactos muitas vezes mais duradouros que a violência física. Segundo a Lei Maria da Penha (lei 11.340/2006), ela se configura como "qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos". No Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003), tal violência também é reconhecida como grave violação de direitos fundamentais.

Na prática, trata-se de um fenômeno com múltiplas faces: filhos que convencem pais idosos a transferirem imóveis com base em laços afetivos e promessas vazias; maridos que retiram bens comuns do casal e forçam a dependência econômica; familiares que forjam documentos para se apropriar de heranças ou pensões. Em todos esses casos, há um denominador comum: o esvaziamento do poder de autodeterminação da vítima, quase sempre em situação de vulnerabilidade física, emocional ou informacional.

Dados do governo federal apontam que os idosos são as maiores vítimas desse tipo de violência no Brasil, com destaque para os casos de retenção de cartões bancários, desvio de aposentadorias e transferências de bens imóveis feitas sob pressão psicológica. Já entre as mulheres, o ciclo de violência doméstica frequentemente inclui o controle financeiro e a supressão da independência patrimonial como mecanismos de dominação.

Casos recentes com grande repercussão pública, como o da atriz Larissa Manoela - que denunciou o controle total de seus bens pelos próprios pais - evidenciam que a violência patrimonial não se restringe a populações de baixa renda ou sem acesso à educação formal. Ela atravessa classes sociais, assume roupagens variadas e se esconde por trás de laços familiares, afetivos e de confiança.

A maior parte dos atos de violência patrimonial é formalizada, ironicamente, dentro da legalidade aparente - com escrituras públicas, registros de imóveis ou procurações lavradas e registradas sem qualquer resistência institucional. É nesse ponto que os cartórios se tornam peças-chave: são eles que, muitas vezes, testemunham os sinais de abuso antes de qualquer outra autoridade pública. Se houver silêncio institucional nesse momento, o dano pode se consumar com aparência de legalidade - mas com vício insanável de origem.

O notário e o registrador como "gatekeepers" da legalidade e da boa-fé

No Brasil, os cartórios exercem uma função pública por delegação do Estado. Embora frequentemente percebidos como simples entes de formalização documental, os serviços notariais e de registro possuem, em sua essência, uma função protetiva e preventiva de altíssima relevância social. São responsáveis por conferir autenticidade, publicidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos - e, mais que isso, por zelar pela higidez da vontade manifestada.

Ao lavrar uma escritura ou registrar um título, o delegatário não é um espectador passivo. Ele atua como guardião da legalidade e da boa-fé objetiva, devendo verificar se os requisitos formais e materiais do ato estão presentes e se há vícios evidentes que comprometam sua validade. Essa responsabilidade é ainda mais acentuada quando estão em jogo atos com impacto patrimonial significativo - como a doação de bens imóveis, lavratura de testamentos, outorga de procurações amplas ou renúncia de direitos.

Em contextos de vulnerabilidade - como no atendimento a idosos com sinais de confusão mental ou a mulheres acompanhadas de pessoas que tomam a palavra em seu nome - a função do notário e do registrador se amplia da legalidade formal para a cautela ética e social. Nesses casos, o que está em jogo não é apenas a técnica jurídica do ato, mas a própria integridade da vontade manifestada.

Nesse sentido, o delegatário atua como um verdadeiro "gatekeeper" (guardião de acesso) - expressão consagrada na literatura estrangeira para designar profissionais que exercem uma função de filtro entre a legalidade e a moralidade social. Seu papel não é julgar, mas perceber, questionar, interromper e, se necessário, recusar ou postergar o ato até que a vontade se mostre de fato livre, consciente e informada.

O Provimento nº 149/2023 do CNJ, por exemplo, ao tratar da atuação extrajudicial em casos envolvendo crianças e adolescentes em situação de acolhimento, reforça esse dever ampliado de zelo com a parte vulnerável, evidenciando uma tendência de evolução da função extrajudicial para além da mera formalização. Essa lógica pode e deve ser aplicada, por analogia, a outros grupos vulneráveis, como idosos e mulheres em contextos de dependência emocional ou financeira.

Ignorar sinais de manipulação ou coação pode, portanto, representar não apenas falha ética, mas também responsabilidade jurídica. Afinal, quem presencia o ato e chancela sua validade, mesmo diante de indicativos de vício, pode ser chamado a responder civil e até disciplinarmente por omissão gravosa.

Quando desconfiar? Sinais práticos de coação e abuso 

A atuação proativa do notário ou registrador em situações de suspeita não exige dotes investigativos ou bola de cristal - exige atenção, sensibilidade profissional e compromisso com a função pública que exerce. A coação raramente se apresenta em forma explícita. Ela se manifesta por gestos, olhares, silêncios constrangedores, discursos ensaiados e contradições. Saber reconhecer esses sinais é tão essencial quanto saber lavrar uma escritura pública.

Algumas situações demandam atenção redobrada:

Presença de acompanhantes que se sobrepõem à vontade do outorgante: quando o interessado é impedido de responder por si mesmo, sendo interrompido ou substituído em sua fala por filhos, cônjuges ou terceiros que "explicam" o que ele quer dizer. Em muitos casos, a própria linguagem corporal do acompanhante transmite domínio ou controle sobre a situação.

Idosos em estado de aparente confusão, apatia ou desconexão com o ato: pessoas que demonstram não compreender a extensão patrimonial do que estão fazendo ou que revelam surpresa com a leitura do ato. Frases como "ah, eu achei que era só pra facilitar", "foi meu filho que pediu" ou "me disseram que era o melhor a fazer" indicam ausência de compreensão plena.

Contradições internas entre o conteúdo do ato e as manifestações verbais: por exemplo, uma doação integral de bem imóvel a um único herdeiro, quando o declarante diz "vou fazer isso só pra facilitar a administração, mas é de todos os filhos". A divergência entre a intenção declarada e o efeito jurídico do ato deve acender o alerta.

Situações inusitadas ou fora do padrão para o perfil do outorgante: lavratura de procuração amplíssima por idoso sem instrução formal, testamento de última hora feito sob pressão hospitalar, venda de imóvel abaixo do valor de mercado por parte de pessoa em visível fragilidade emocional.

Pressa injustificada ou resistência à leitura integral do documento: quando os interessados pressionam pela assinatura imediata, recusam a leitura pública ou demonstram impaciência com explicações técnicas, há forte indício de que a formalização está sendo usada apenas como meio de legitimar uma vontade já distorcida.

É claro que nenhum desses sinais, isoladamente, prova a existência de coação. Mas a presença de dois ou mais deles em um mesmo atendimento deve levar o agente a parar, repensar e agir com prudência reforçada. A dúvida razoável, nesse contexto, não é fraqueza: é um indício de que o dever de cautela precisa se sobrepor à rotina cartorial.

Suspender o ato, solicitar documentação complementar, exigir atendimento reservado ou até sugerir a presença de um curador ou defensor público são medidas preventivas legítimas - e, em muitos casos, absolutamente necessárias.

O que fazer? Boas práticas e protocolos de proteção

Detectar sinais de coação ou vulnerabilidade é apenas o primeiro passo. A responsabilidade institucional do cartório não se encerra na percepção do risco - ela se projeta sobre a atitude tomada diante do risco. É nesse ponto que entram as boas práticas, os protocolos internos e a consciência de que a função notarial e registral pode ser exercida com zelo sem se tornar arbitrária.

Aqui estão algumas diretrizes já adotadas por cartórios modelo no Brasil e que podem servir de referência:

1. Suspensão cautelar do ato

Se houver dúvida relevante quanto à manifestação de vontade, o ato pode (e deve) ser suspenso. A suspensão não é negativa, mas ato de prudência administrativa, especialmente em escrituras de doação, procurações irrestritas ou renúncias patrimoniais. O registrador ou tabelião deve formalizar a justificativa em termos objetivos, com base nos sinais identificados.

2. Atendimento reservado

 Quando possível, o atendimento à parte vulnerável deve ocorrer sem a presença de terceiros. Isso permite ao delegatário verificar a espontaneidade da manifestação de vontade, sem interferência de acompanhantes. Em muitos casos, o simples ato de ficar a sós com o outorgante revela constrangimentos ocultos ou vícios latentes.

3. Registro interno de atendimento atípico

Cartórios que prezam pela cautela mantêm registros próprios de atendimentos incomuns - como uma espécie de relatório confidencial sobre o que motivou a suspensão, a recusa ou a postergação de um ato. Essa prática não só preserva o delegatário contra acusações futuras, como demonstra diligência objetiva.

4. Sinalização a órgãos competentes

Quando houver suspeita concreta de abuso reiterado - especialmente em relação a idosos - o cartório pode encaminhar comunicação ao Ministério Público, à Defensoria Pública ou aos conselhos tutelares (em caso de incapazes). Não se trata de denúncia formal, mas de dever cívico e funcional de proteção da parte vulnerável, nos termos da legislação protetiva.

5. Protocolo mínimo de avaliação de risco

Cartórios podem (e deveriam) estabelecer protocolos internos padronizados, com um checklist de indícios de coação e critérios para acionar medidas preventivas. Isso garante segurança jurídica ao ato e evita decisões arbitrárias.

6. Capacitação continuada da equipe

Escreventes, substitutos e demais atendentes precisam estar aptos a reconhecer sinais de abuso, saber como agir e quando escalar o atendimento ao tabelião ou oficial. Cartórios socialmente responsáveis capacitam sua equipe com noções básicas de vulnerabilidade, violência patrimonial e atendimento humanizado.

Responsabilidade do notário/registrador: Limites e fundamentos

A atuação dos delegatários não é apenas uma função pública delegada pelo Estado - é também uma função técnica sujeita a responsabilidade civil, disciplinar e, em certos casos, até criminal. A ideia de que o cartório é uma "caixa registradora da vontade alheia" já foi superada há muito. O notário e o registrador têm o dever jurídico de recusar atos que ofendam a legalidade, a moralidade e a boa-fé objetiva.

Ato jurídico formal não é sinônimo de ato jurídico válido

Muitos atos viciados por coação ou simulação passam ilesos pela lavratura cartorial porque aparentam legalidade formal. No entanto, a jurisprudência brasileira já consolidou que a forma não convalida a vontade viciada. Assim, se o tabelião presencia indicativos de vício e ainda assim chancela o ato, pode ser responsabilizado pelos danos daí decorrentes.

Responsabilidade civil do delegatário

A responsabilidade civil pode emergir quando a omissão ou a conduta negligente do cartório concorre diretamente para a lesão patrimonial sofrida pela vítima. Exemplo: se um tabelião lavra escritura de doação de imóvel por uma idosa de 92 anos, visivelmente confusa, sem leitura prévia e sem atendimento reservado, e depois se comprova que a vontade foi induzida ou simulada, há nexo causal claro entre a omissão funcional e o dano causado.

A indenização pode envolver perdas patrimoniais diretas (ex: valor do bem alienado), lucros cessantes e até danos morais - tanto da vítima quanto, eventualmente, de herdeiros prejudicados.

Responsabilidade disciplinar

O Código de Normas das corregedorias estaduais, em geral, impõe ao notário e ao registrador o dever de zelar pela autenticidade, legalidade e segurança dos atos, podendo responder administrativamente por omissões, atos contrários ao interesse público ou que afrontem os princípios da função pública.

Suspensões, multas e até perda da delegação podem ser aplicadas em casos graves de conivência com atos ilegítimos, especialmente quando se comprova que o delegatário teve condições de agir e preferiu o silêncio conveniente.

Limites da responsabilidade

Claro: o delegatário não tem poder investigativo nem pode presumir má-fé sem fundamento. Sua responsabilidade não é objetiva, mas sim baseada na existência de sinais concretos de irregularidade que foram ignorados sem justificativa plausível. Ou seja: a exigência é razoável e compatível com sua formação técnica e atribuições legais.

Fundamentação jurídica do dever de cautela Princípio da legalidade e da boa-fé objetiva (CC, art. 422).

Poder-dever de recusa de atos ilegais ou abusivos (art. 30 da lei 8.935/94).

Função social do serviço notarial e registral.

Dever de indenizar por omissão culposa (arts. 186 e 927 do Código Civil).

Princípio da dignidade da pessoa humana como valor estruturante da atuação registral.

Em resumo: o preço da omissão pode ser alto - e não só para a vítima, mas para a própria credibilidade institucional do serviço extrajudicial. Proteger a vontade livre, informada e legítima não é ato de coragem heroica, mas sim obrigação funcional de quem exerce a fé pública.

Conclusão

Em uma sociedade marcada por desigualdades estruturais e relações de poder nem sempre visíveis, os cartórios ocupam uma posição estratégica e insubstituível: são pontos de contato direto entre o Estado e o cidadão no exato momento em que decisões patrimoniais ganham forma jurídica. Esse poder, legitimado pela fé pública, carrega consigo uma responsabilidade proporcional.

A violência patrimonial contra mulheres e idosos, embora muitas vezes travestida de legalidade, revela-se como grave violação de direitos fundamentais - e, não raro, tem início ou se concretiza com a chancela de atos notariais e registrais. Por isso, ignorar sinais de abuso é mais do que omissão: é abdicar da função social que sustenta o próprio serviço extrajudicial.

Cartórios que atuam com prudência, escuta ativa, atendimento humanizado e protocolos preventivos não estão extrapolando sua função - estão cumprindo seu dever com excelência e dignidade institucional.

A formação humanista dos delegatários, o estímulo à capacitação das equipes, a padronização de boas práticas e o diálogo com o Ministério Público e a Defensoria são caminhos possíveis, reais e já em andamento em algumas serventias modelo do país. Falta, ainda, ampliar essa consciência para além das exceções - transformando o zelo com a parte vulnerável de boa prática em padrão de atuação.

A Constituição da República, ao consagrar a dignidade da pessoa humana e a função social da propriedade como fundamentos da ordem jurídica, impõe ao Estado e a seus delegatários a obrigação de atuar com mais do que técnica: exige cautela ética, escuta ativa e compromisso com o bem comum.

É tempo de reconhecer: o cartório é, sim, um agente de proteção patrimonial. E negar esse papel é fechar os olhos para o futuro do próprio serviço extrajudicial.

Referências bibliográficas

Ministério Público do Estado do Mato Grosso. Violência patrimonial: entenda o que é e como afeta a vida de muitas mulheres. Disponível aqui.

IBDFAM. Caso Larissa Manoela: especialista explica o que caracteriza a violência patrimonial. Disponível aqui.

Conselho Nacional de Justiça. Revista CNJ - artigo sobre cartórios e vulnerabilidade. Disponível aqui.

Casa Civil da Presidência da República. Violência patrimonial e financeira: pessoas idosas são as maiores vítimas no Brasil. Disponível aqui.

Agência Brasil. OAB alerta para o aumento de violência patrimonial contra idosos. Disponível aqui.

Epa! Vimos que você copiou o texto. Sem problemas, desde que cite o link: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/434744/cartorios-como-agentes-de-protecao-patrimonial

Fonte:  Migalhas.


•  Veja outras notícias