O desembargador Alves Braga Jr. consumou uma boutade que me persegue como nótula biográfica hilária. Segundo ele, eu seria "o maior especialista em direito revogado do Brasil". Imagino que o ilustre desembargador pretendeu endereçar-me um elogio. Nas enfadonhas viagens que empreendemos Brasil afora, nas visitas do CNJ - Conselho Nacional de Justiça, entretínhamo-nos com histórias sobre o regime hipotecário do século XIX e suas vicissitudes e particulares. Ele então se admirava que eu pudesse discorrer sobre hipoteca e penhor de escravos, reserva de prioridade, sistemas hipotecários belga e francês1 no bojo nas discussões conduzidas pelo gênio de José Tomás Nabuco de Araújo no transcurso da década de 1854 a 1864.
A publicação deste pequeno volume em homenagem ao grande Ademar Fioranelli é ensejadora de perquirições mais amplas. O tema da hipoteca e do penhor de escravos não mereceu até aqui um estudo profundo e sistemático, nem é este o escopo deste opúsculo, e isto por razões de tempo e especialidade. Não sou historiador, é bom que se diga desde logo. Entretanto, calha ventilar assuntos relacionados ao direito registral pelo viés da história institucional. Toca-me a ideia de que não há futuro possível sem que possamos reatar o curso perene das instituições a partir do reconhecimento dos passos dados pelos nossos maiores no passado. Como disse alhures, a tradição não se reduz a meras cinzas de antigalhas apagadas pelo tempo, mas é chama viva que regenera o passado com virtude para plasmar o futuro.
A pergunta que buscarei agitar nesta reflexão e aprofundamento dos mais doutos é a seguinte: por qual razão, descumprindo expressa determinação da Primeira República, os arquivos dos cartórios que continham documentos relativos à escravidão não foram incinerados? Mais especificamente, por que os Registros de Imóveis não cumpriram à risca a determinação legal constante do parágrafo único do art. 11 do decreto 370, de 1891? Eis o texto legal:
"Parágrafo único. Os livros do registro sob o n. 6, nos quais era transcrito o penhor de escravos, serão incinerados, e se deles constarem outros registros, estes serão transportados com o mesmo número de ordem para os novos livros de n. 2, 4 ou 5".
Algumas pistas podem ser encontradas na literatura. São impressivas as reflexões do velho Conselheiro Ayres - José da Costa Marcondes Ayres -, como se vê em Memorial de Ayres. Machado de Assis, à parte a penetrante perspectiva psicológica de seus personagens, nos dá uma possível chave para dilucidar os temas que ora nos ocupa: qual terá sido a razão de Ruy Barbosa haver determinado a destruição dos documentos sobre a escravidão? Suspeito que somente um registrador especialista em direito revogado perceberia esse dispositivo que remanesceu desgarrado no conjunto normativo da época, obscurecido, um tanto, pela questão decorrente da famosa decisão de 14 de dezembro de 1890, do mesmo Ruy, que determinava a arrecadação e incineração de todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda. Eis o teor da decisão:
Decisão s/n. de 14 de dezembro de 1890.
Manda queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos à escravidão, existentes nas repartições do Ministério da Fazenda.
Ruy Barbosa, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e presidente do Tribunal do Tesouro Nacional:
Considerando que a nação brasileira, pelo mais sublime lance de sua evolução histórica, eliminou do solo da pátria a escravidão - a instituição funestíssima que por tantos anos paralisou o desenvolvimento da sociedade, inficionou-lhe a atmosfera moral;
Considerando, porém, que dessa nódoa social ainda ficaram vestígios nos arquivos públicos da administração;
Considerando que a República está obrigada a destruir esses vestígios por honra da Pátria, e em homenagem aos nossos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira;
Resolve:
1º - Serão requisitados de todas as tesourarias da Fazenda todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, relativos ao elemento servil, matrícula dos escravos, dos ingênuos, filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenários, que deverão ser sem demora remetidos a esta capital e reunidos em lugar apropriado na Recebedoria.
2º - Uma comissão composta dos Srs. João Fernandes Clapp, presidente da Confederação Abolicionista, e do administrador da Recebedoria desta Capital, dirigirá a arrecadação dos referidos livros e papéis e procederá à queima e destruição imediata deles, que se fará na casa da máquina da Alfândega desta capital, pelo modo que mais conveniente parecer à comissão.
Capital Federal, 14 de dezembro de 1890 - Ruy Barbosa2.
Ruy Barbosa foi vituperado por esta decisão acabrunhante. "Irreflexão, leviandade ou aleivosia - eis o tríptico da malévola e reiterada acusação a Ruy Barbosa em torno dos arquivos da escravidão", bradará Francisco de Assis Barbosa, refutando as acusações assacadas contra o nosso Águia de Haia3.
Seu sucessor, Alencar Araripe, reiteraria a ordem nos seguintes termos:
Circular 29 - Ministério dos Negócios da Fazenda - Rio de Janeiro, 13 de maio de 1891.
"Convindo, para cumprimento das instruções expedidas por este ministério, em 14 de dezembro de 1890, que fiquem extintos todos os livros e papéis referentes ao elemento servil, recomendo aos Srs. inspetores das tesourarias da Fazenda que providenciem, com toda a urgência, para que sejam incinerados, sem demora, os livros de lançamento e as declarações feitas para a cobrança da taxa de escravos, e os mandados devolvidos ao juízo que os houver expedido, ex vi do art. 5º da lei 3.396, de 24 de novembro de 1888; desaparecendo por este modo os últimos documentos que atestam a ex propriedade servil.
A incineração será feita em presença da Junta da Fazenda, e disto se lavrará uma ata minuciosa, da qual se remeterá cópia a este ministério.
E, para que a falta de tais livros não afete a responsabilidade dos exatores, cujas contas ainda não tenham sido tomadas, quanto à arrecadação daquele imposto, deverá a verificação dessa responsabilidade ser feita pela confrontação da importância das certidões extraídas dos talões, com as partidas do livro da receita.
Veremos, mais à frente, as razões apresentadas pela crítica para justificar a decisão de Ruy e executada por Alencar Araripe. Antes, porém, voltemos a Machado de Assis para destacar uma passagem - aliás da glosa penetrante de José da Costa Marcondes Ayres, o velho Conselheiro Ayres -, que retraça e antecipa a trajetória frustrânea da decisão de 1890. Colhe-se do delicioso texto o seguinte:
"Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia"5.
Os atos particulares, as escrituras tabelioas, os registros hipotecários, os autos judiciais, o riquíssimo acervo documental que repousa nos cartórios nunca se exauriu completamente pelo tramo da decisão reputada infamante. Este manancial documental remanesce à espera da prospecção inteligente da história.
Várias são as razões de se não terem atendidas as determinações da resolução ministerial. Comecemos pela advertência lançada por José Gomes B. Câmara. Segundo ele, a incineração foi motivada por um interesse eminentemente fiscal, restrita ao Ministério da Fazenda. Diz que não se tratou propriamente de uma portaria, mas de uma decisão de cariz administrativo, lançada de modo adequado:
"Em lugar próprio, em anotação inserida junto ao texto de tal decisão, e não, a rigor, portaria, como se tem afirmado e designado tal deliberação, vai inserida sucinta nota a respeito. Desde já lembrado que não foi publicada com as demais decisões, não obstante divulgada em O Direito, vol. 54. p. 160, dúvida não persistindo de que é de índole eminentemente de decisão, e não portaria o seu teor, a sua origem, a sua finalidade"6.
Vários projetos haviam sido enviados à Câmara e ao Senado para buscar a indenização dos proprietários de escravos. Aliás, o problema "indenizacionista" foi um dos fatores da quartelada de 1889 - ao lado da questão religiosa, militar (Paraguai), da crise econômica e do impulso federalista por seus laivos maçônicos e positivistas. As fogueiras cívicas que se acenderam no Rio de Janeiro e Bahia, e que consumiram os documentos relativos à escravidão, foram qualificadas por Gilberto Freire, com peculiar humor e ironia, como "autos-de-fé republicanos"7. Como nos revela Robert Slenes, "as matrículas [de escravos] e o registro de mudanças constituíam a única base legal para a propriedade em escravos. Foi, provavelmente, por causa deste dispositivo que Rui Barbosa, como Ministro da Fazenda em 1890, mandou destruir as cópias desses documentos guardadas nas coletorias; com esta medida teria dificultado a prova de posse anterior de escravos, e assim sustado qualquer movimento que reivindicasse, perante o governo, a indenização da propriedade perdida com a abolição". E continua:
"Entretanto, a ordem de Rui Barbosa não atingiu as cópias de um grande número desses manuscritos que chegaram a ser arquivados nos cartórios. Entre 1872 e 1888 os herdeiros, em qualquer processo de herança, eram obrigados a provar seu direito de posse sobre os escravos do espólio, perante o juiz responsável. Como resultado, em muitos inventários de bens de pessoas falecidas daquele período, encontram-se cópias das listas nominativas de matrícula, sobretudo das relações de 1872-73, e certidões comprovando o nascimento de ingênuos e a compra de novos escravos"8.
De fato, "os manuscritos estão enterrados nos cartórios", como disse o professor Slenes.
As fogueiras cívicas e os autos-de-fé republicanos
Após o golpe militar de 1889 - a que o povo assistiu impotente e "bestializado"9 -, o país viveria um período tumultuado relativamente às questões relacionadas com a lavoura, especialmente após o progressivo livramento servil. Decretada afinal a abolição, vários foram os projetos "indenizaconistas"10 - propostos, por exemplo, por Coelho Rodrigues, Cotejipe e João Alfredo -, somente arrefecendo com a Proclamação da República e, especialmente, com a atuação do próprio Ruy Barbosa. Veja-se a resposta que deu aos "aristocratas mendicantes", que pleiteavam alguma forma de compensação pela abolição imediata e sem indenização, articulada no requerimento firmado por Anfriso Fialho e outros. Vamos ao texto do despacho ministerial:
"De José Porfírio Rodrigues de Vasconcelos e seus filhos, José Melo Alvim e o Dr. Anfriso Fialho, apresentando as bases para a fundação de um banco encarregado de indenizar os ex-proprietários de escravos ou seus herdeiros, dos prejuízos causados pela lei de 13 de maio de 1888, deduzidos 50% de seu valor em favor da República.
Mais justo seria, e melhor se consultaria o sentimento nacional, se se pudesse descobrir meio de indenizar os ex escravos, não onerando o Tesouro. Indeferido"11.
A resposta que a todos parecia eficaz para superar as crises do momentoso período foi: eliminar os comprovantes fiscais que se achavam no Ministério da Fazenda e que poderiam servir de base e fundamento à onda indenizatória.
Como vimos, o texto da decisão de 14 de dezembro de 1890 pareceu centrar o seu foco nos arquivos da administração fazendária. Segundo Francisco de Assis Barbosa, os objetivos de Ruy Barbosa (e de seu sucessor, Alencar Araripe) se resumiriam a eliminar o comprovante fiscal da propriedade servil, esboroando suas evidências:
"É importante insistir no objetivo determinante dos atos, tanto o de Ruy Barbosa, como do seu sucessor Alencar Araripe, que era o de eliminar o comprovante fiscal da propriedade servil, para assim evitar, como salientamos, a situação de fato, sempre questionada na época, em torno da propriedade do escravo, desde que a entrada de africanos fora considerada ilegal pela lei de 7 de novembro de 1831, assinada por Diogo Antônio Feijó, ministro da Justiça, declarando livres todos os escravos vindos de fora do Império e impondo penas aos importadores dos mesmos escravos. Lei que, seguida do Decreto de 12 de abril de 1832, e assinada ainda por Feijó, regulamentou a anterior sobre o tráfico de africanos"12.
A entrada ilegal de escravos a bordo dos navios negreiros deixou um rastro probatório que alguns gostariam de apagar, desfalcando os constritores de um poderoso foco de tensão política - à parte o evidente comprometimento do orçamento, já minguado, com o pagamento de indenizações vultosas.
Entretanto, o que dizer a respeito do Regulamento Hipotecário? O assunto descansou na remansosa diuturnidade de questões técnicas e jurídicas e na praxe cartorária. O que os historiadores perderam para sempre foram os livros de matrícula de escravos, de impostos e de entrada nas alfândegas. Os livros notariais e de registro (além dos autos judiciais de inventários e partilhas) resistiram às labaredas republicanas e se acham ainda espalhados pelos cartórios e arquivos judiciários, "enterrados" nos cartórios judiciais e extrajudiciais.
Crimen fué del tiempo.
Américo Jacobina Lacombe encerra o seu texto lembrando o verso do poeta hispano-americano: crimen fué del tiempo, no de España13. Com isso absolve Ruy Barbosa do cometimento do que, por outro lado, não hesitou de qualificar como "pedra de escândalo" da nossa história política e cultural. Aliás, diga-se de passagem, Lacombe faz uma defesa paradoxal de Ruy por não deixar de qualificar o ato ministerial de "espetáculo inquisitorial", "desvario", "espantosa obnubilação do pensamento nacional", "espantoso ato de vandalismo", "malefício" - vituperando o ato realmente abominável14, mas exaltando a figura proeminente do personagem.
Muito mais lúcida, sem dúvida, terá sido a voz dissonante de Francisco Coelho Duarte Badaró, que, em sessão que aprovaria a moção de apoio à iniciativa de Ruy Barbosa, ousou discordar de seus pares:
"Sr. Presidente, não quero que ninguém entenda que, ao levantar para pronunciar-me contra esta moção, eu pretenda condenar a obra meritória dos abolicionistas. O que faço é protestar contra o ato de cremação de todo o arquivo da escravidão no Brasil, porque envolve interesse histórico. Nós, em vez de procurarmos destruir, o que é uma obra de verdadeiros iconoclastas, devíamos ter a nossa Torre do Tombo, um edifício destinado a recolher os papeis de todos os arquivos do país.
Somos um povo novo que corremos o risco de ter dificuldades para escrever a nossa história, porque é deplorável o que se observa em todas as municipalidades e nas repartições das antigas províncias: por toda a parte o mesmo abandono, o mesmo descuido, e por último o facto de mandar-se queimar grande número de documentos que podiam servir para se escrever com exatidão a história do Brasil, no futuro. (Muito bem; muito bem.)"15.
Eis que os livros de registro sobreviveram...
Apesar da "espantosa obnubilação" barbosiana, suas determinações ministeriais e regulamentares não se concretizariam plenamente - apesar das fogueiras acendidas em 1891 no Rio de Janeiro e em 1893 na Bahia. Saúdam os defensores de Ruy Barbosa que a sua criticada decisão não se cumpriria por uma triste sina da administração pública brasileira - afinal, neste país nem todas as leis e decisões são feitas para serem cumpridas. Fosse de outra forma e "a nossa emperrada máquina burocrática terá funcionado eficazmente pela primeira vez, para nossa infelicidade"16. Seja como for, as decisões dos primeiros republicanos não foram atendidas. Comprovam-no os arquivos dos Tabelionatos e Registros de Imóveis espalhados por todo o país, que mantiveram, diligentemente, os seus livros de registro intactos e preservados do incêndio republicano.
Ao final e ao cabo, voltando aos velhos e pesados livros, o traslado das ditas transcrições, como determinado no parágrafo único do art. 11 do Decreto 370/1891, seria custoso e de difícil consumação, já que tal implicaria uma investigação afanosa e de duvidosos resultados práticos. Além disso, restariam as escrituras públicas e as hipotecas inscritas ainda sob a égide do Decreto 482/184617 e as hipotecas de fazendas e penhores de seus acessórios (escravos) inscritas a partir de 1865.
Hipoteca e penhor de escravos
Voltemos no tempo e ao tema de nossa especialidade. O decreto 482, de 1846, aludia à "hipoteca" de escravos (art. 2º). Diz o texto legal:
"Art. 2º As hipotecas deverão ser registradas no Cartório do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hipotecados. Fica, porém, exceptuada desta regra a hipoteca que recair sobre escravos, a qual deverá ser registrada, no registro da Comarca em que residir o devedor".
A exceção da regra da inscrição na comarca de situação dos bens imóveis, renderia acesa discussão na reforma de Nabuco, razão pela qual o penhor de escravos revestiu-se da fórmula jurídica do constituto possessório.
Seja como for, a disposição de 1846 permaneceu em vigor até o advento da Lei 1.237, de 24/9/1864, e de seu decreto regulamentador (Decreto 3.453, de 26/4/1865). As considerações levadas a efeito nas comissões encarregadas de encaminhar a reforma da legislação hipotecária jogam luzes sobre o problema da hipoteca de escravos. Na sessão de 23/5/1864, os senadores que integravam as ditas comissões reunidas de legislação e fazenda - José Tomás Nabuco de Araújo, Visconde de Itaboraí, Bernardo de Souza Franco, Barão de Pirapama, J. M. da Silva Paranhos, J. Ignácio Silveira da Motta - observariam que os escravos não poderiam ser objeto de hipoteca de modo avulso, senão que só poderiam ser hipotecados conjuntamente com as propriedades agrícolas:
"Prevaleceu, porém, no ânimo das duas Comissões, o princípio fundamental de que a hipoteca, em razão do direito de sequela que a caracteriza e da certeza e duração de que carece o crédito real, não pode ter por objeto senão os imóveis. Se os escravos, conforme a proposição da Câmara dos Deputados, são suscetíveis de hipoteca, não é senão conjuntamente com a propriedade pelo motivo excepcional de que o valor das propriedades agrícolas entre nós muito depende do número de seus escravos". (...)
"Todavia parece às Comissões que cumpre tornar uma providência para prevenir o inconveniente ponderado, e esta providência vem a ser a derrogação do art. 273, 2ª parte, do Código Comercial que proíbe o penhor de escravos: derrogado este artigo bem podem os proprietários recorrer ao penhor com a - cláusula constituti -, por virtude da qual os escravos continuam em seu poder ainda que por título precário".
Em síntese, decidiu-se:
Que são suscetíveis de hipoteca todos os escravos pertencentes à propriedade agrícola - e não somente aqueles que, conforme a lei de 30 de agosto de 1833, se consideravam aderentes.
Que os escravos só podem ser hipotecados conjuntamente com as propriedades agrícolas.
Que somente se consideram hipotecados com a propriedade os escravos especificados no contrato.
Que as crias nascidas das escravas hipotecadas, como acessões naturais, se consideram compreendidas na hipoteca18.
Não passou despercebido da Comissão que o penhor mercantil de escravos era vedado pelo Código Comercial de 1850 (Lei 556, de 25 de junho de 1850, art. 273), mas tal disposição seria derrogada pelo advento da Lei Hipotecária de 1864 (§ 1º do art. 2º)19.
O sistema registral brasileiro acolheria a inscrição da hipoteca e do penhor de escravos. Assim dispunha a lei 1.237 de 24 de setembro de 1864:
Art. 2.º A hipoteca é regulada somente pela lei civil, ainda que algum ou todos os credores sejam comerciantes.
(.)
Os imóveis
Os acessórios dos imóveis com os mesmos imóveis.
Os escravos e animais pertencentes às propriedades agrícolas, que forem especificados no contrato, sendo com as mesmas propriedades.
Portanto, a partir de 1865 dar-se-ia a hipoteca de escravos somente com a consequente hipoteca da propriedade, como se vê na parte final do dispositivo. A mesma lei estabeleceria que, no caso de escravos, quando considerados destacadamente, poderiam ser objeto de garantia por meio do penhor de escravos, cuja eficácia da transcrição era dependente da inscrição da hipoteca. Assim dispunha o § 6º do art. 6º do decreto 3.453/1865:
O penhor, devidamente transcrito com antecedência, prevalecia contra a hipoteca posterior dos mesmos escravos, "hipoteca que não pode ter lugar senão conjuntamente com a hipoteca de algum imóvel"20. Perdigão Malheiro aclara bem a situação:
"Desde que a lei hipotecária autoriza, por exceção, a hipoteca de escravos como acessório do estabelecimento agrícola, a inscrição da hipoteca em tais condições deve compreender também esses escravos, que são em tal caso reputados imóveis por destino, aderentes às propriedades. Deve, portanto, ser inscrito no liv. 2º, (inscrição especial). O Iiv. 6 é para a transcrição do penhor de escravos de estabelecimentos agrícolas com a cláusula constituti (Reg. cit., art. 39), cousa muito diversa da hipoteca. Junho, 1874"21.
E mais adiante conclui:
"E quanto aos estabelecimentos agrícolas, quando constituído o penhor com a cláusula constituti, exigiu o registro (Lei citada, art. 6º, § 6º; regulamento 3.453 de 1865, art. 265); e, ainda, quando dados em hipoteca, só admite, por exceção, como acessórios do estabelecimento (Lei citada, art. 2°, § 10; Regulamento citado, art. 140, § 2°)"22.
Lafayette sustenta que "o escravo, suposto por si só, não possa ser objeto de hipoteca, uma vez hipotecado conjuntamente com o prédio agrícola, fica sempre sujeito ao vínculo hipotecário, embora posteriormente seja desligado do mesmo prédio"23.
Livro 6 - transcrição do penhor de escravos
O decreto 3.453 de 26 de abril de 1865 criaria o Livro 6 - transcrição do penhor de escravos:
Art. 30. O livro n.º 6 - Transcrição do penhor dos escravos -, servirá para a transcrição do penhor de escravos pertencentes às propriedades agrícolas celebradas com a cláusula constituti (art. 6º, § 6º, da Lei).
A cláusula do constituto possessório reafirma e não descaracteriza a natureza da garantia real pignoratícia (art. 265). Além disso, o regulamento reafirma a classificação dos escravos como bens acessórios da propriedade:
Art. 140. Consideram-se acessórios dos imóveis agrícolas e só podem ser hipotecados com estes imóveis:
O art. 139 é claro: "Pode ser objeto da hipoteca, mas juntamente com os imóveis, a que pertencem, os acessórios dos imóveis, ou os imóveis por destino". Diz Agapito da Veiga:
"Os escravos, animais, os instrumentos da lavoura, e os utensílios das fábricas, são considerados acessórios das propriedades agrícolas, e por isso podem ser hipotecados conjuntamente com a propriedade"24.
Além disso, a lei de 1864 previa que a hipoteca convencional compreenderia todas as benfeitorias que acrescessem ao imóvel hipotecado - inclusive as acessões naturais, dentre as quais "se consideram incluídas as crias nascidas das escravas hipotecadas" (§ 2º do art. 4º).
Já apontava, em 1866, Agostinho Marques Perdigão Malheiros:
"A hipoteca de escravos não pode hoje recair senão sobre os que pertencerem a estabelecimentos agrícolas, com tanto que sejam especificados no contrato, e só conjuntamente com tais imóveis como acessórios destes, do mesmo modo que os animais"25.
Matrícula de escravos
Aliás, sobre a especificação - hoje diríamos especialidade do objeto da garantia - além de identificados pelo nome, idade, procedência etc., os escravos deveriam ser matriculados, nos termos do decreto 4.835, de 1º de dezembro de 1871 (art. 1º). Proibia-se a lavratura de escrituras públicas de alienação, transmissão, penhor, hipoteca de escravos sem que estivessem presentes "as relações das matrículas ou certidão delas, devendo ser incluídas no instrumento os números de ordem dos matriculados, a data e o município em que se fez a matrícula, assim como os nomes e mais declarações dos filhos livres de mulheres escravas, que as acompanharem" (art. 45).
Nos livros de transcrição, obrigava-se a identificação dos escravos pelo nome e característicos (§ 5º do art. 271 do decreto 3.453/1865). Em todos os registros pesquisados verifiquei a existência do nome, indicação de cor - "preto", "crioulo", "negro", "pardo" -, sem qualquer especificação de filiação (salvo quando o objeto do penhor alcançasse o filho do escravo apenhado), naturalidade e matrícula, feita nos termos do Decreto 4.835, de 1º de dezembro de 1871.
Os escravos eram matriculados nas coletorias localizadas nas comarcas, como o caso das transcrições abaixo reproduzidas - números 31 e 32, datadas de 18/4/1881 e 8/2/1882, lavradas pelo Oficial Interino do Registro de Imóveis de Franca, Estado de São Paulo, Virgílio Gomes Guimarães26.
Extinção da escravidão
O fato é que em 1888, pela lei 3.353, de 13 de maio de 1888, houve a "declaração de extinção da escravidão no Brasil" e todas as disposições legais e regulamentares seriam revogadas pelo ato imperial (art. 2º)27. Já antes, a desintegração econômica sustentada pelo sistema servil era percebida pelo fato de os banqueiros se recusarem a conceder empréstimos garantidos por hipotecas de escravos28 e a partir dali já não seriam admitidas igualmente transcrições de contratos de penhor de escravos29. Com base nesse cenário, como ficaram os livros de transcrição de penhor de escravos?
O livro de Transcrição de Penhor de Escravos
Após o advento da reforma de 1890, o livro de transcrição de penhor de escravos deveria agora servir privativamente para a inscrição do penhor agrícola - "enquanto não for organizado modelo especial para essa espécie de contrato":
"A inscrição da escritura de penhor agrícola deve ser feita no livro n. 6, destinado, pelo art. 13 do regulamento 3.453, de 26 de abril de 1865, para transcrição do penhor de escravos, colocando-se na casa dos nomes e característicos destes a declaração do objeto do penhor agrícola"30.
Esta disposição seria de duração provisória, isto é, "enquanto não estiverem findos os livros supra eludidos que destarte são aproveitados". De fato, o parágrafo único do art. 11 do Decreto 370, de 2 de maio de 1890, ordenava o traslado de elementos de outros registros relacionados com o penhor de escravos para os livros criados de números 2 (especial de hipotecas), 4 (transcrição dos ônus reais - direitos reais limitados - art. 238) ou 5 (penhor agrícola).
Entretanto, a reorganização dos livros de registro gerava controvérsias. Para pôr cobro às dúvidas, seria baixado o decreto 544, de 5 de julho de 1890, na consideração de que deveriam ser tomadas providências "para não ser embaraçada, por falta de livros, a instalação do registro de hipotecas em as novas comarcas". O Oficial deveria "aproveitar e adaptar nas antigas [comarcas] os fornecidos anteriormente à reforma decretada em 19 de janeiro do corrente ano [decreto 169-A/1890]". O decreto visava "remover dúvidas que na escrituração deles e dos novamente criados pelo regulamento de 2 de maio último [decreto 370/1890] se têm suscitado". Eis a redação do parágrafo único do art. 5º do decreto 544/1890:
"Art. 5º O livro 5, a que se referem os arts. 11 e 27 do novo regulamento, será escriturado conforme o modelo que acompanha este decreto.
Parágrafo único. O antigo livro 6 poderá ser aproveitado enquanto não se fornecer o novo livro 5, substituindo-se a indicação da 5ª coluna pela seguinte - Objeto de penhor agrícola - e aplicando tão somente à escrituração anterior do mesmo livro o disposto no parágrafo único do art. II do novo regulamento".
O mesmo decreto 544/1890 consagraria ainda a seguinte disposição:
"Art. 1º Nas comarcas em que ainda não houverem sido fornecidos os livros indispensáveis, na conformidade das disposições dos arts. 11, 12, 16, 18 e 19 do regulamento de 2 de maio do corrente ano, o registro se fará provisoriamente em outros tantos cadernos legalizados, segundo as prescrições dos arts. 13 e 14.
Parágrafo único. Esse registro provisório será transportado para os livros logo que forem estes fornecidos, sendo em seguida encerrados e mandados arquivar pelo juiz os referidos cadernos".
Finalmente, os livros criados pelo decreto 370/1890 seriam providos de partida pelo próprio Governo na Capital Federal e pelos Governadores nos Estados. Posteriormente, os oficiais do registro deveriam indenizar o seu custo à repartição de onde os receberam (art. 16).
Concluindo, os cartórios não incineraram os livros de notas, de inscrição hipotecária e de penhor de escravos, descumprindo as decisões ministeriais e a letra expressa do parágrafo único do art. 11 do decreto 370/1891. Encerrados e arquivados, os livros remanesceram "enterrados" até os dias de hoje nas serventias notariais e registrais mais antigas à espera de um historiador paciente e vocacionado.
Fonte: Migalhas