Por Luís Henrique Acioly
O estudo analisa os impactos da tecnologia no registro de imóveis, focando em segurança jurídica e técnica, assinaturas eletrônicas e uso da blockchain.
Introdução
No que se refere ao ambiente regulatório das novas tecnologias, pode-se observar o direcionamento de medidas regulatórias às novas ferramentas e à renovação de dinâmicas sociais, tal como ocorre com a IoT - Internet das Coisas, a plataformização de serviços e a inteligência artificial generativa. No entanto, não se pode deixar de lado que a evolução tecnológica apresenta implicações em setores exaustivamente sistematizados, trazendo questionamentos sobre como balizar as antigas normas com o cenário atual.
Essa preocupação é muito bem externada pela professora Lyria Bennett Moses (2013), para quem a normalização incidente à tecnologia é matéria também afeta ao problema de desconexão regulatória, quando novas técnicas se apresentam em um espaço regulado de maneira que se modifica a própria feição da atividade, promovendo a necessidade de adequação normativa. Esse é o caso do mercado imobiliário e o registro de imóveis.
As serventias extrajudiciais e o sistema do fólio real apresentam de vital importância para a segurança jurídica e publicidade dos direitos reais, contribuindo para a pacificação social, e como tal, também foram inseridas à era digital. Nasce, assim, o desafio da forma adequada de viabilizar uma segurança jurídica, objeto do registro de imóveis, em compatibilização com a segurança técnica na utilização de novas tecnologias.
Para tanto, dois temas são decodificadores do avanço tecnológico no registro imobiliário: a aceitabilidade de diferentes espécies de assinaturas eletrônicas para garantia a autenticidade dos documentos nato-digitais; e os parâmetros de segurança dos documentos arquivados eletronicamente, especialmente no RCDE - Repositório Confiável de Documento Eletrônico, sendo a blockchain uma possível tecnologia auxiliar relevante. Tem-se como problema de pesquisa a delimitação técnico-jurídica dos quesitos de autenticidade e elementos de confluência do registro eletrônico de imóveis com a blockchain.
O presente estudo busca, assim, traçar o panorama jurídico atual da inserção do registro de imóveis no ambiente digital, com ênfase no SREI - Sistema do Registro Eletrônico de Imóveis e sob a ótica dos temas decodificadores. Para tanto, é imprescindível compreender o escorço evolutivo do SREI, o horizonte das assinaturas eletrônicas para atos envolvendo bens imóveis nos registros públicos e a moldura técnica em que a blockchain se funda. A presente pesquisa consolida dois raciocínios construtivos: analisar-se-á o primeiro decodificador a com foco na estrutura normativa existente; e avaliar-se-á o segundo decodificador a partir da sua confluência com possibilidades tecnológicas, isto é, a blockchain.
1. Desenvolvimento do registro eletrônico de imóveis no cenário jurídico brasileiro
Diferente de outras atividades, em que a regulamentação vem a reboque, o registro imobiliário brasileiro, em sua maior parte, teve o seu desenvolvimento decorrente do avanço normativo, em atenção ao constante aperfeiçoamento das técnicas jurídicas e arquivísticas. Foi assim com a lei 6.015/1973, que instituiu o sistema de fólio real, em que se deu preponderância à matrícula com cerne da atividade registral (Ribeiro, 2019).
Esse aprimoramento técnico e jurídico ocorreu como reação ao sistema de transcrições que, conforme assevera Fioranelli (2014), tornava obrigatória a repetição da caracterização do bem registrado a cada vez que sua propriedade era transmitida ou de qualquer outra forma era onerado. Com o sistema de matrículas, os imóveis passaram a ter um registro concentrado, fazendo-se constar toda a cadeia dominial do bem (Castro, 2021), assim como sua realidade, observando-se a devida qualificação objetiva e modificações estruturais (Ribeiro, 2019).
A eficiência e eficácia desse sistema deu embasamento à ampliação do registro de imóveis, dando ao oficial registrador o protagonismo na proteção do direito de propriedade a partir da qualidade da informação vinculado à matrícula imobiliária (Ribeiro, 2019). No entanto, na contemporânea sociedade da hyper-informação (Madalena, 2019), a Internet tem assumido o lugar de protagonista das relações sociais, promovendo mudanças em termos culturais, econômicos, jurídicos e governamentais (Castells, 2002).
Sem embargo de ressaltar a profundidade do tema "Governo como Plataforma", a remodelagem da prestação de serviços públicos por meio da Internet também alcançou o registro imobiliário, notadamente a partir da lei 11.977/09. Esse diploma deu luz à possibilidade de recepção e emissão de documentos eletrônicos, desde que observados os requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP Brasil e a arquitetura e-PING.
A lei 11.977/09, também se arvorou a estabelecer o dever de os serviços de registros públicos instituírem um "sistema do registro eletrônico", conforme regulamentação própria. Seguindo essas linha, o Conselho Nacional de Justiça editou a sua recomendação 14, de 2014, para orientar as CGJ - Corregedorias Gerais de Justiça, das respectivas Unidades da Federação, na implementação de um "sistema do registro eletrônico de imóveis" (Gruber, 2016; Castro, 2021).
A recomendação 14, de 2014, estabeleceu que fossem observados os parâmetros definidos pela Associação do Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológicos, na implementação desse sistema, sem trazer maiores definições (Assad, 2016; Tavares, 2018).
No entanto, a CGJ/SP - Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo já havia editado, em 2012, o seu provimento 42, fornecendo diretrizes para a implantação do SREI - Sistema do Registro Eletrônico de Imóveis naquele Estado, dando forma à Central de Serviços Eletrônicos Compartilhados dos Registradores de Imóveis como ponto de acesso a serviços do registro imobiliário através da Internet (Assad, 2016; Castro, 2021). À luz dessa norma, o desenvolvimento, a operação e administração do SREI no estado paulista seria de responsabilidade da ARISP - Associação de Registradores Imobiliários de São Paulo (Assad, 2016; Castro, 2021).
Não muito distante, o Conselho Nacional de Justiça editou o provimento 47, de 2015, para traçar as diretrizes técnicas e jurídicas que deveriam ser observadas na implementação do SREI - Sistema do Registro Eletrônico de Imóveis no âmbito de cada Estados e Distrito Federal (Gruber, 2016). A partir dessa norma, promoveu-se a criação das centrais de serviço eletrônico compartilhados, administradas de forma local, mediante ato normativo promovido por cada Corregedoria Geral de Justiça. O provimento 47, de 2015, do CNJ, trouxe a necessidade de uniformidade das centrais eletrônicas em cada um dos Estados e Distrito Federal, demandando também a coordenação entre si, para que uniformização da prestação do serviço registral.
A pulverização das centrais eletrônicas estaduais foi, contudo, contrastada pela necessidade de consolidação de um ponto de acesso universal pela Internet, assim como de interoperabilidade inerente às diversas camadas técnicas que envolvem a prestação do serviço registral imobiliário em âmbito nacional.
Aliado à necessidade de prover efetividade à política de regularização fundiária, esse contexto fez surgir no texto da lei 14.365/2017, o ONR - Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis como responsável por implementar e operar o SREI em âmbito nacional (Tavares, 2018).
O diploma trouxe a estrutura geral para a formação, sustentação financeira e regulação do ONR, que seria constituído como entidade privada com vinculação obrigatória de todos os oficiais de registro imobiliário. Não compõem, assim, a administração pública federal, mas ostenta natureza jurídica sui generis (Castro, 2021). Coube à Corregedoria Geral do CNJ editar o provimento 89, de 2019, com as diretrizes específicas para os fins estatutários do ONR e para sua atuação, designando a implantação e operação do Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC) (Castro, 2021).
Com o provimento 89, do CNJ, o SREI passa a ser composto por: (i) todos os oficiais de registro de imóveis do Brasil; (ii) o SAEC - Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado; e (iii) as centrais de serviços eletrônicos compartilhados. Aos poucos, as centrais estaduais perderam protagonismo em relação ao SAEC, que agasalhou de forma horizontal uma gama de atividades implicadas ao registro imobiliário, integralizando serventias extrajudiciais em caráter nacional a partir de um único ponto de acesso na Internet (Valério; Benfatti, 2021).
A integralização de todas as serventias de registro de imóveis ao SAEC, e a sua prevalência frente à fragmentação das centrais estaduais, deu novos contornos ao SREI. Impulsionou-se a promoção de atos essencialmente digitais, como a emissão de certidões eletrônicas e a recepção de documentos nato-digitais, vinculando uma cadeia complexa de oficiais de Registro de Imóveis à promoção de um novo patamar tecnológico (Miranda, 2023).
Esse convergência de ações para o fomento ao serviço extrajudicial de caráter eletrônico foi consolidada com a lei 14.382/2022, que dispôs sobre o SERP - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, com fito de realizar a integralização dos demais ofícios de registros públicos, em moldes da governança semelhantes à coordenação do SREI.
O SERP - assim como o SREI em relação ao registro imobiliário - se propõe a construir um sistema eletrônico que efetive a interoperabilidade entre as bases de dados das serventias de registro, sua interconexão e a universalidade do atendimento ao usuário, utilizando-se das estruturas tecnológicas baseadas na Internet. Para tanto, a construção de parâmetros técnicos, balizados em sólido arcabouço normativo, se mostra essencial para viabilizar um ambiente seguro para o desenvolvimento do registro eletrônico de imóveis.
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Luís Henrique Acioly: Sócio e Coordenador da Área de Tecnologia e Governança do Chezzi Advogados, pós-graduando em Direito Digital pelo ITS-Rio e CEPED-UERJ.
Fonte: Migalhas