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17/04/2025

CNJ 20 Anos: Ações do Judiciário buscam devolver dignidade para pessoas em situação de rua

As quase 330 mil pessoas que vivem em situação de rua no Brasil são bem mais do que números estatísticos. São seres humanos que carregam sofridas histórias de abandono, tantas vezes pelos próprios familiares, seguem diariamente expostos à fome, ao frio, às diversas formas de violência e, em alguns casos, vivem uma busca incessante por álcool e drogas, na esperança de encontrar alívio para os momentos de dor. Ao longo dos últimos 20 anos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem atuado para que essas pessoas, historicamente invisíveis aos olhos de alguns setores da sociedade, sejam vistas e tenham sua dignidade devolvida.

O sentimento angustiante de ter perdido tudo, somado a desesperança diante das dificuldades para recomeçar, assombrava Antônio Feliciano, 64 anos. Nascido em Portugal, ele chegou ao Brasil há oito anos e, durante todo esse tempo, tem morado nas ruas de várias capitais do país. Atualmente em Brasília, alega que sua maior tristeza não diz respeito à falta de um teto sobre sua cabeça, mas à sensação de solidão interminável.

“Minha esposa e filha morreram há mais de oito anos. Depois da morte delas, eu vim para o Brasil e, desde então, tenho sobrevivido nas ruas, com saudade de um tempo que não volta mais. Já tive muitas perdas na vida, até mesmo a minha fazenda. Mas perder a minha família é a maior de todas as minhas dores”, revelou.

Há cerca de três anos, uma das chances de um novo começo na vida de Antônio não se concretizou. Ele havia recebido uma proposta para trabalhar em sua área de formação, Engenharia Mecânica, em São Paulo, mas a vida lhe reservara mais uma fatalidade. “Poucas horas antes de eu fazer o teste de habilidades para iniciar o novo emprego, sofri um grave acidente na perna. Dessa forma, não preenchi a vaga de trabalho e, para complicar ainda mais minha situação, nunca mais consegui andar sem muletas”, relatou.

Feliciano viveu experiências amargas nos últimos anos, mas reconhece que foi beneficiado por algumas ações da Justiça brasileira que trouxeram um suspiro de esperança. Quando chegou ao Brasil, durante os mutirões do Projeto PopRuaJud, ele conseguiu emitir os documentos necessários para acesso a um dos programas de transferência de renda do governo brasileiro.

A iniciativa do Poder Judiciário é realizada pelos tribunais de todo o Brasil para oferecer assistência jurídica, emissão de documentos referentes ao registro civil, audiências de conciliação, atendimento médico, odontológico e psicossocial, além de serviços como banho solidário, corte de cabelo, café da manhã e doação de roupas. “Eu agradeço à Justiça do Brasil por não desamparar o povo, até mesmo estrangeiros, como eu, que chegamos nesse país com a esperança de viver dias melhores”, afirmou Antônio Feliciano.

Os mutirões Pop Rua Jud fazem parte da Política Judiciária de Atenção a Pessoas em Situação de Rua, que já obteve avanços desde sua instituição, em 2021, para garantir a plena efetivação dos direitos dessa população vulnerável. Segundo o relatório mais recentes sobre a política, até 2024, 178 desses mutirões foram realizados. Os serviços foram oferecidos, em sua maioria, por meio de parcerias com instituições do Poder Executivo, com a Defensoria Pública e o Ministério Público, cartórios de registro civil e entidades da sociedade civil. De acordo com Resolução 425/2021, os mutirões devem ser realizados ao menos a cada seis meses.

Nesse contexto, é válido ressaltar que o CNJ criou, por meio da Portaria nº 180/2022, o Comitê Nacional PopRuaJud para discutir acerca da execução da Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua por todos os tribunais. A comissão conta com a participação da própria população de rua para que contribuam na formulação das políticas públicas do Poder Judiciário relacionadas ao tema.

Além disso, a Resolução CNJ nº 605/2024 tornou obrigatória a criação de comitês locais PopRuaJud pelos tribunais do país. O ato normativo instituiu também o Prêmio Nacional PopRuaJud, para incentivar a adequada execução da política para a população em situação de rua, de acordo com os princípios e as diretrizes previstas na regulação. Foi estabelecido ainda o Índice PopRuaJud para gerenciamento, avaliação e monitoramento da execução da política nacional de atenção às pessoas em situação de rua pelos tribunais.

Moradia fixa

Não ter uma casa para proteger-se é uma condição que atinge não apenas adultos vulneráveis. Centenas de crianças no Brasil vivem o mesmo tormento. Uma delas é a pequena Miriam, 7 anos, que vive há um ano nas ruas de Brasília ao lado de sua mãe, Verônica Lopes, 48 anos.

“Estou vivendo o pior dos pesadelos junto com a minha filha, depois que o meu ex-marido teve mais uma recaída, por causa das drogas, e vendeu absolutamente tudo o que tínhamos. As famílias dele e minha desistiram de nos ajudar, porque já não acreditam em um novo começo para nós”, disse.

Verônica lamenta por ter que expor a própria filha a tantos perigos, mas mantém a expectativa de conseguir mudar de rota. “Já dei entrada na emissão das carteiras de identidade, minha e da minha filha. Espero conseguir o benefício governamental que vai me ajudar recomeçar. A partir do momento em que eu estiver com endereço fixo, pretendo voltar a trabalhar”, garantiu. “Se fosse só por mim, eu já não lutaria mais. Mas a minha filha é a fonte da força que tenho para prosseguir. O meu desejo é vê-la crescer e viver uma vida bem diferente dessa que estamos vivendo agora”, declarou.

Com a evolução da política judiciária para pessoas em situação de rua, o CNJ avançou para a definição de protocolos específicos de atendimento por perfil específico. Até o final deste semestre, está prevista a disponibilidade do protocolo para atendimento a meninas e mulheres em situação de rua. Já está no ar o protocolo voltado para o tratamento de questões referentes a adolescentes em conflito com a lei.

Casa e trabalho

Diferentemente da pequena Miriam, que conta com a presença da mãe, Antônio Duarte, 40 anos, relata que cresceu sozinho nesse ambiente desde os 8 anos de idade. “Logo após a morte dos pais, lá no Maranhão, eu acabei vindo morar na rua. Nunca tive ninguém para cuidar de mim depois da partida deles. Sempre fui sozinho. Com o passar dos anos, aprendi como a realidade das ruas funciona”, disse.

Atualmente na capital federal, Duarte expõe que para sobreviver nas ruas, é preciso conhecer as regras. “A rua não é mole para ninguém. Se você quer dormir, tem que fazer parte de um grupo de pessoas. Na rua você não tem amigo. A pessoa que você acha que é sua amiga, é a mesma que pode te roubar, se você estiver com algo de valor. O amigo da rua é Deus”, detalhou.

Duarte obteve auxílio governamental com a ajuda da Defensoria Pública. Durante sua trajetória, buscou outras fontes de renda, mas a escassez de oportunidades de trabalho é uma barreira para pessoas em situação de rua no país. Recentemente, ele conseguiu laudo para aposentadoria por transtorno mental.

A dificuldade de recolocação profissional é um desafio enfrentado também por Geysa Carvalho, 43 anos, que vive nas ruas há mais de quatro anos. “Quando você mora na rua, você se vê completamente invisível, sem valor nenhum. As pessoas te olham, mas não te enxergam”, desabafou. Recentemente, ela participou como aluna do curso RenovaDF, oferecido pelo governo distrital para capacitação profissional.

Mesmo depois de muitas portas fechadas, Geysa afirma que não perdeu a fé de que uma delas se abrirá no tempo oportuno. “Eu bem sei que sair das ruas é um caminho que poucos trilharam. Mas eu sigo acreditando que a minha vez vai chegar. Vou poder me olhar no espelho e sentir orgulho. Vou poder me arrumar e sentir bonita outra vez. Quem vive nas ruas pode ter perdido muita coisa, mas não a capacidade de sonhar”, afirmou.

Fonte: CNJ


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