Introdução
Em brevíssima exposição, pretendo levantar algumas questões que me parecem substantivas para o Direito Registral, em especial sobre a impossibilidade deste caminhar ao largo da Teoria do Direito, da Filosofia, da Sociologia, e dos paradigmas apresentados e eventualmente já superados por estas áreas do conhecimento - como tenho feito neste ainda breve percurso acadêmico -, além de uma crítica para com a crise da simplificação. Comecemos por este último.
Simplificação
Vivemos tempos ansiosos e de imediatismo. Não houve, na história, tamanha perda da capacidade de compreender que certas coisas levam tempo. E o tempo, em maior ou menor grau, passa a ser ressignificado. Isso me remete à Mujica que, ao contrariar o brocardo de que "tempo é dinheiro", assevera que não compramos coisas com dinheiro e, isto sim, com o tempo que gastamos para conseguir o dinheiro. Assim, dinheiro é tempo. Tudo é tempo.
Nesta linha de aceleração, com a advento e evolução das redes sociais e outros meios eletrônicos de informação, acentuados pelo período de distanciamento imposto pela pandemia da Covid-19, o ensino a distância (EAD) ganhou espaço e força. Este, ao mesmo tempo que democratiza e, em certa medida, capilariza o acesso ao estudo, traz consigo uma questão que Streck identifica como crise: a simplificação do Direito, como consequência da simplificação da própria linguagem.
Surgem, então, os resumos dos resumos, os esquemas dos esquemas, os cursos que supostamente simplificam e/ou descomplicam o Direito e que prometem retorno financeiro elevado e rápido. Em uma simples analogia, é provável que não nos operaríamos com um cirurgião formado no curso "Cirúrgica Cardíaca Simplicada". Há de se admitir que estudar demanda esforço sem atalhos.
Embora não se trate de uma crítica direta aos incontáveis programas/cursos no Direito eventualmente denominados com o adjetivo citado - até porque é possível que, em alguns destes, refiram-se tão somente a uma nominata que chame a atenção para o produto vendido -, há um compromisso assumido, mesmo que velado, de que os tópicos abordados serão 'mastigados' aos adquirentes. Tal qual algo que se mastiga, após o ato de mastigar, de tão deformado o objeto em questão, já não é mais o mesmo; de modo semelhante, é o que ocorre com o fenômeno da simplificação. A percepção deixada é de não ser (mais) necessário estudar a sério para exercer uma profissão.1
Ainda que consigamos desembaraçar alguns conceitos para que atinjam um alcance compreensivo maior, não é correto reduzirmos as coisas, as ideias, as teses, sob pena de uma simplificação que, ao fim e ao cabo, resulte em uma metamorfose: uma teoria (ou um conceito), de tão abreviada que foi, deixou de ser.
Interdisciplinaridade e fomento
É neste contexto que surge a ideia que denomino dialógica registral, como o diálogo necessário do Direito Registral com outras disciplinas fundamentais, em uma direção diametralmente inversa ao predadorismo da simplificação e suas implacáveis consequências. Quanto ao diálogo, não me refiro a outras áreas do Direito, pois a prática registral está intimamente conectada, por sua própria natureza, com o Direito de Família, das Sucessões, Tributário, etc; refiro-me, isto sim, às matérias alheias ao Direito - no sentido de não serem derivadas do Direito - que participam da sua própria construção.
Importa dizer, então, que além de pensarmos em, por exemplo, Filosofia do Direito, precisamos fazer Teoria, Filosofia, Sociologia, Psicanálise no Direito (Registral), desvelando e evidenciando o aspecto interdisciplinar que recai sobre o estudo do Registro de Imóveis, ou seja, um caráter preponderantemente pluralista. Temos, assim, a ideia de interdisciplinaridade registral.
A questão posta já é enfrentada por notáveis juristas do meio registral que abordam temas da área a partir de paradigmas relevantes assentados na Teoria do Direito, Filosofia e Sociologia. Cito os seguintes: (i) Jéverson Luís Bottega, com a paradigmática Teoria Hermenêutica da Qualificação que dialoga com Lenio Streck (e a Crítica Hermenêutica do Direito), Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer; e (ii) Izaías Gomes Ferro Júnior e Márcia do Amaral2, com estudos sobre o Registro de Imóveis a partir do sociólogo Niklas Luhmann e sua teoria dos sistemas sociais.
Estes são exemplos de estudos e teses que fogem de uma atuação costumeira da academia registral e que dão novo fôlego a um pensamento - crítico ou não - estrutural e estruturante do Registro de Imóveis enquanto instituição indispensável ao bom funcionamento da sociedade.
Com o exposto, não parece adequado que a temática dogmático-procedimental, mesmo inquestionavelmente necessária, seja objeto majoritário de quase a totalidade dos trabalhos acadêmicos produzidos no círculo registral.
É mais ou menos uma repetida (re)produção do que já-está-aí de cima para baixo, depois de baixo para cima e, por fim, da direita para a esquerda - ou vice-versa -, alcançando o mesmo resultado, uma vez que a ordem dos fatores não altera o produto. Não há, em maior ou menor grau, propostas minimamente críticas que procurem se afastar do senso comum teórico solidamente estabelecido.
Em um caminho no mínimo vanguardista, destaco também uma relevante iniciativa do IRIB - Instituto de Registro Imobiliário do Brasil na condição de fomentador da academia registral. Refiro-me ao "RDI em Debate", que se propõe a convocar autores de artigos científicos publicados na Revista de Direito Imobiliário3 para apresentarem seus trabalhos e discorrerem sobre suas pesquisas em uma live com os coordenadores da revista. Este programa está na sua quinta edição e, por suas acertadas virtudes, deve(rá) permanecer em execução por um longo período.
O projeto é um excelente cânone gerador de ambientes de debate - finalidade substantiva da academia - e de produção acadêmica em si, que, ao fim e ao cabo, redunda no desenvolvimento do próprio Direito Registral e reflete diretamente na atuação dos registradores e na prestação do serviço aos usuários e sociedade como um todo.
Outro exemplo que não poderia deixar de ser mencionado, em razão das tantas contribuições que fez e faz (e fará), é do registrador Sérgio Jacomino com o blog de sua autoria denominado "Observatório do Registro", onde publica valiosas crônicas e colunas sobre os mais variados assuntos em Direito Registral.
Através de uma abordagem diferente, dissemina com precisão a história do Registro de Imóveis e efetua o resgate da memória de registradores que contribuíram sobremaneira para a formação e progressão dos registros.
Considerações finais
Assim, recomendo a qualquer estudioso do Registro de Imóveis e do Direito Notarial e Registral em sua plenitude que se debruce acerca das questões aqui levantadas e acompanhe os trabalhos desenvolvidos pelas pessoas mencionadas neste breve escrito.
Por fim, fica o convite para contribuirmos em colunas como esta, em futuras edições da Revista de Direito Imobiliário e, quem sabe, em outros meios de produção acadêmica registral que surgirão (pois precisam despontar), buscando estabelecer um diálogo interdisciplinar profundo, isto é, pôr em evidência a dialógica registral como instrumento de desenvolvimento e compreensão da profundidade que esta seção do Direito necessita para ser adequadamente estudada.
Somente com a participação ativa dos mais diversos atores do meio registral será possível estabelecer debates que contribuirão substantivamente para o amadurecimento de ideias e paradigmas em sede de Direito Registral.
Fonte: Migalhas