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21/01/2025

Artigo - Multipropriedade imobiliária como instrumento de planejamento sucessório

A multipropriedade imobiliária, regulamentada no Brasil pela Lei nº 13.777/2018, permite dividir imóveis em frações de tempo, garantindo a cada proprietário o uso exclusivo durante períodos específicos. Conforme se verá, trata-se de uma ferramenta eficiente para o planejamento sucessório, modulando o uso do imóvel e preservando-o no núcleo familiar, evitando, assim, conflitos e assegurando uma gestão patrimonial organizada e flexível, com apoio, caso necessário, de um administrador especializado.

O maior crescimento na indústria do turismo mundial reside no ramo de imóveis compartilhados. Para se ter ideia, quase 6% da população norte-americana fazem uso de imóveis no sistema da multipropriedade. Proporcionalmente, segue a porcentagem do share mundial: América do Norte (31%), Europa (25%), América Latina (16%) e Ásia (14%) [1].

Mas o que significa a multipropriedade imobiliária no Brasil? Concebida no pós-guerra na França na década de 60, ingressou no Brasil na década de 80 com regularização formal, tão somente, em 2018, através da Lei 13.777/2018, que alterou o Código Civil (artigos 1.358-B a 1.358-U) e a Lei de Registros Públicos (artigos 176 e 178) [2].

Dispõe o artigo 1.358-C do CC, que a “multipropriedade é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada.”

Uso da multipropriedade

A multipropriedade não se confunde com os condomínios edilício ou ordinário. O bem imóvel é dividido em módulos semanais com período mínimo de sete dias e sua repetição acontece anualmente. É preciso muita atenção ao fato de que a instituição da multipropriedade em condomínio edilício exige aprovação em assembleia, conforme o artigo 1.358-O, II, do Código Civil.

De grande valia, por outro lado, é o artigo 1.358-E do Código Civil que estabelece que as frações de tempo em um regime de multipropriedade são indivisíveis e devem ter, no mínimo, sete dias de duração, consecutivos ou intercalados.

Os períodos de uso podem ser fixos e determinados (repetindo-se anualmente no mesmo período), flutuantes (variáveis, definidos periodicamente com critérios objetivos e isonômicos), ou mistos (combinando elementos fixos e flutuantes). Essa flexibilidade permite adaptar o regime às diferentes necessidades dos multiproprietários, garantindo organização e previsibilidade no uso do imóvel.

Além disso, todos os multiproprietários têm direito a uma quantidade mínima de dias consecutivos por ano, podendo adquirir frações maiores que lhes garantam períodos mais extensos de uso. Essas regras asseguram a equidade entre os titulares e promovem a eficiência na gestão do imóvel, prevenindo conflitos e proporcionando uma administração harmoniosa e racional do bem compartilhado.

Administrador é obrigatório na multipropriedade

João, por exemplo, poderá ser proprietário do apto. 201 na primeira semana do mês de fevereiro. Neste caso, a matrícula é autônoma e cada unidade será responsável por um fato gerador.

Em resumo, cada imóvel poderá ter até cinquenta e duas matrículas autônomas.

A figura do administrador é obrigatória na multipropriedade inserida em condomínio edilício (artigo 1.358-R do CC). Além das funções de síndico, coordena o uso das frações de tempo pelos multiproprietários, controla check-in e check-out, define períodos de uso exclusivo, e cuida da manutenção, conservação e substituição de instalações e mobiliário, conforme previsto na convenção condominial [3].

Quais as possíveis penalidades que os multiproprietários podem sofrer? O artigo 1.358-S do Código Civil dispõe que, em caso de inadimplência de despesas condominiais por parte do multiproprietário, sua fração de tempo pode ser adjudicada ao condomínio edilício. Se o imóvel fizer parte de um sistema de locação centralizada, a convenção condominial pode: proibir o uso da fração inadimplida até a quitação, integrar a fração ao pool de locação e autorizar a administradora a usar os rendimentos da locação para amortizar as dívidas, repassando eventual saldo ao titular.

Considerando que a multipropriedade pode ser instituída por ato inter vivos ou mortis causa (artigo 1.358-F do CC), ela se torna um instrumento jurídico para o exercício do planejamento sucessório que nada mais é do que um conjunto de medidas capaz de organizar previamente a sucessão hereditária [4].

Exemplo de multipropriedade

Vejamos o seguinte exemplo: João, um empresário, possui uma casa de praia localizada em uma área turística muito procurada, que ele deseja transmitir para seus três filhos, Ana, Pedro e Marcos, por meio de multipropriedade imobiliária.

Utilizando as regras previstas no Código Civil, João pode, em vida ou através de testamento, utilizar esse regime, dividindo-o em frações temporais, garantindo a todos o direito de uso exclusivo em períodos diferentes.

Ana, que tem filhos em idade escolar, recebe o direito de usar o imóvel nas férias escolares (janeiro e julho), em um calendário fixo e determinado. Pedro, que prefere flexibilidade, utiliza a modalidade flutuante, com períodos de alta temporada definidos por sorteio anual. Já Marcos, que prefere combinar estabilidade e variação, opta pelo regime misto, usufruindo um período fixo no Carnaval e alternando outras semanas no restante do ano.

Assim, cada herdeiro utiliza a casa de acordo com suas preferências, evitando os conflitos comuns em regimes de copropriedade e permitindo uma administração mais eficiente e justa do imóvel.

Outro exemplo de calendário flutuante: “imagine-se que cada herdeiro será titular do imóvel durante o período de dois meses, que varia anualmente. Assim, no primeiro ano, o filho 1 será proprietário da casa de veraneio durante os meses de janeiro e fevereiro; no ano seguinte, não mais destes meses, mas de novembro e dezembro, já que aprecia altas temporadas – e esses bimestres podem se alternar anualmente” [5].

Adaptação a diferentes configurações familiares

A multipropriedade demonstra grande adaptabilidade às diferentes configurações familiares, atendendo aos interesses do titular e dos herdeiros, permitindo que o imóvel permaneça no patrimônio de herdeiros, inclusive menores, evitando sua alienação total em caso de partilha. Cada herdeiro pode dispor livremente de sua fração temporal, preservando a unidade do imóvel e garantindo flexibilidade na gestão do bem.

Essas medidas facilitam a definição prévia das responsabilidades financeiras de cada herdeiro, como IPTU e custos de manutenção, organizando o uso do imóvel de forma eficiente e racional, eliminando a necessidade de administração conjunta típica do condomínio ordinário, minimizando conflitos e permitindo que cada herdeiro disponha livremente de sua fração, seja por venda, locação ou outros arranjos [6].

Outro ponto de destaque é que o alienante ou testador pode nomear um administrador especializado para gerenciar a multipropriedade, ampliando suas funções legais para atender melhor os interesses dos herdeiros. Assim, o administrador cuidará da manutenção do imóvel e da prevenção de conflitos, garantindo o uso eficiente do bem. Nesse contexto, cada herdeiro multiproprietário terá o direito exclusivo de usar, fruir e dispor de sua fração, respeitando os direitos dos demais, e eventuais disputas serão resolvidas com base nas normas específicas da multipropriedade, não no direito sucessório [7].

A multipropriedade imobiliária no Brasil destaca-se como um modelo prático e eficiente para o planejamento sucessório e a gestão de imóveis compartilhados, pois ao permitir a divisão do uso do bem em frações de tempo autônomas, oferece uma solução que equilibra os interesses dos herdeiros, promove a organização patrimonial e evita conflitos comuns em regimes de copropriedade.

A flexibilidade na definição de períodos de uso e a possibilidade de adaptação às necessidades familiares garantem uma administração eficiente. Além disso, ao assegurar que cada herdeiro possa dispor livremente de sua fração, o regime acaba favorecendo a preservação do imóvel no núcleo familiar. Com isso, a multipropriedade se apresenta como um instrumento jurídico prático, capaz de atender às demandas do mercado e às especificidades do direito sucessório.

[1] CÂMERA, Maya Garcia. Breves considerações sobre a Lei n.º 13.777/18 na evolução do instituto da Multipropriedade Imobiliária. Disponível em: [https://ibradim.org.br/breves-consideracoes-sobre-a-lei-n-o-13-777-18-na-evolucao-do-instituto-da-multipropriedade-imobiliaria]. Acesso em: 13.01.2025

[2] Para maior profundidade no tema: Oliva, Milena Donato; Vasconcellos, Mariana Maia de?. Multipropriedade imobiliária e planejamento sucessório. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 41. ano 11. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2024.

[3] VASCONCELLOS, Mariana Maia de. Multipropriedade Imobiliária: análise funcional das restrições ao direito de propriedade à luz da Lei nº 13.777/18. Rio de Janeiro: Processo, 2024. p. 75-144.

[4] Oliva, Milena Donato. op. cit.

[5] Oliva, Milena Donato. op. cit. p. 65.

[6] Oliva, Milena Donato. op. cit.

[7] Oliva, Milena Donato. op. cit.

é advogado, doutorando em Direito (Fadisp), mestre em Direito (UFPB) e especialista em Direito Civil e Processo Civil (Unipê).

Fonte: Conjur


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