Recentemente, o STF submeteu ao regime de repercussão geral o Tema nº 1.348 [1] para decidir o “alcance da imunidade do ITBI, prevista no inciso I do § 2º do artigo 156 da Constituição, para a transferência de bens e direitos em integralização de capital social, quando a atividade preponderante da empresa é compra e venda ou locação de bens imóveis”.
Trata-se de mais um desdobramento das discussões acerca da imunidade prevista no artigo 156, §2º, I, da Constituição, vinculado ao Tema de repercussão geral nº 796.
Porém, o principal ponto da controvérsia relacionada à imunidade do artigo 156, §2º. I, da Constituição não foi e nem será decidido nesses temas. Trata-se da interpretação sobre a possibilidade ou não de os municípios cobrarem o ITBI sobre a diferença entre o valor de mercado (valor venal) do imóvel usado na integralização e o valor atribuído para pagamento das cotas.
O artigo 23 da Lei nº 9.249/95 permite que os contribuintes optem pela integralização de imóveis utilizando seu valor histórico, o que posterga o cálculo de eventual ganho de capital para uma venda futura. Os municípios, entretanto, avaliam os imóveis pelo valor de mercado e, com base nisso, lançam o ITBI sobre a diferença entre o valor histórico e o valor de mercado.
De um lado, os contribuintes sustentam que, sendo a imunidade sobre a operação de integralização, não haveria que se falar em constituição de imposto sobre diferença de valor, vez que toda a operação está sujeita à imunidade. Isso porque, atuando sobre a descrição do critério material da hipótese de incidência para retirar da competência para instituição do imposto[2], não faria sentido avaliar a base de cálculo de um fato sobre o qual o município não possui competência para tributar. É possível encontrar alguns acórdãos acolhendo essa interpretação[3].
Por outro lado, os municípios defendem que a imunidade recai apenas sobre a parcela do valor correspondente às cotas integralizadas, de modo que, sobre a diferença entre o valor correspondente à cota e o valor de mercado do imóvel, o município está autorizado a fazer o lançamento do imposto. A imunidade atuaria de forma análoga a uma redução de base de cálculo, já que, sobre o mesmo fato jurídico, parte do valor que seria a base de cálculo não será tributado. Este é o entendimento que tem prevalecido em alguns tribunais. No TJ-PR, a jurisprudência é sólida nesse sentido há algum tempo [4].
Entendimento dos municípios ganha força
A partir do julgamento do Tema 796, o entendimento defendido pelos municípios ganhou força, tendo em vista a redação da tese firmada: “A imunidade em relação ITBI, prevista no inciso I do § 2º do artigo 156 da Constituição, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”.
Contudo, a leitura do inteiro teor do acórdão e do caso em julgamento demonstra que o caso tratava de uma situação bastante específica, em que o contribuinte constituiu reserva de capital quando da integralização, e sobre essa reserva constituída é que estava sendo cobrado o ITBI.
Inclusive o STF, em decisões posteriores reconhece os limites do tema 796, que não deve ser aplicado indiscriminadamente à hipótese de cobrança de ITBI sobre diferença entre valor de mercado do imóvel e valor integralizado. Nesse sentido:
Depreende-se do trecho acima que a questão dos autos trata de matéria diversa do RE-RG 796.376 (Tema 796), tendo em vista que discute a incidência, ou não, da imunidade prevista no § 2º do art. 156 da Constituição Federal sobre a diferença entre o valor venal do imóvel, atribuído pelo Fisco, e o valor declarado e integralizado ao patrimônio da pessoa jurídica para fins de subscrição do capital social.
Com efeito, a controvérsia trazida na espécie não é mesma que conduziu à tese firmada no referido paradigma, no sentido de que a imunidade do § 2º do art. 156 da Constituição da Federal não alcança a diferença entre o valor do imóvel e o do capital integralizado, uma vez que, naquele processo discutia-se o valor excedente destinado à criação de capital de reserva.
(RE 1.448.120, Dec. Mon. Min. Gilmar Mendes, DJe 13/06/2024)
Ou seja, a controvérsia a respeito da interpretação da regra de imunidade acabou não sendo resolvida.
Posteriormente ao julgamento do tema 796 de repercussão geral, os tribunais continuaram a aplicar os seus entendimentos a respeito da incidência do ITBI. Quem entendia pela possibilidade de tributação, a tese firmada na repercussão geral teria resolvido a controvérsia, ex:
APELAÇÃO CÍVEL – MANDADO DE SEGURANÇA – IMPOSTO SOBRE A TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS (ITBI) – INTEGRALIZAÇÃO DE IMÓVEIS PARA CONSTITUIÇÃO DE CAPITAL SOCIAL DE PESSOA JURÍDICA – IMUNIDADE DO ARTIGO 156, § 2º, INCISO I, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – INCIDÊNCIA SOMENTE QUANTO AO VALOR CORRESPONDENTE ÀS QUOTAS INTEGRALIZADAS – TESE FIXADA NO TEMA 796 DO EXCELSO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – BASE DE CÁLCULO – VALOR VENAL DO IMÓVEL – INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 38, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL – PRECEDENTES DESTA CÂMARA CÍVEL – RECURSO DESPROVIDO.
(TJPR – 1ª Câmara Cível – 0028735-43.2024.8.16.0014 – Londrina – Rel.: DESEMBARGADOR GUILHERME LUIZ GOMES – J. 14.10.2024)
Contudo, quem entendia pelo reconhecimento da imunidade como impeditivo à cobrança do ITBI, também continuou decidindo do mesmo modo, por reconhecer que o tema 796 não é aplicável ao caso, ex:
[…] 2. Na incorporação de imóvel ao patrimônio de pessoa jurídica, para integralização do capital social, não há incidência do ITBI (art. 156, §2º, inciso I, da CF). 2. A imunidade da operação de integralização de capital pelo sócio é incondicionada, ou seja, atinge todo o valor da operação, independentemente do valor do imóvel a ser incorporado ser o declarado no imposto de renda ou o valor de mercado, bem como independe se atividade preponderante da empresa é formada, em sua maioria, de receita proveniente de atividades imobiliárias (TEMA 796, STF). 3. Demonstra a presença dos requisitos necessários à concessão da liminar, deve ser autorizada a transferência do imóvel para fins de integralização do capital social bem como suspender a exigência tributária até o julgamento do mérito do processo de origem. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E PROVIDO.
(TJ-GO – Agravo de Instrumento: 5743454-16.2023.8.09.0051 GOIÂNIA, Relator: Des(a). ALEXANDRE DE MORAIS KAFURI, 8ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ 15/03/2024)
Em resumo, atualmente existem tribunais com decisões opostas a respeito da interpretação do artigo 156, §2º, I, da Constituição, bem como possuem interpretações diversas quanto ao precedente firmado no Tema 796 para a resolução de casos análogos.
Contudo, quando casos versando a respeito da possibilidade de cobrança de ITBI sobre a diferença entre valor venal e valor das cotas chega ao STF, a Suprema Corte não admite o processamento dos recursos, se valendo do argumento de que o julgamento do recurso ensejaria o reexame de provas. Por exemplo, mantendo acórdão do TJ-MS favorável ao contribuinte:
Trata-se de recurso extraordinário em face de acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, cuja ementa transcrevo:
“EMENTA – APELAÇÃO CÍVEL – MANDADO DE SEGURANÇA – INTEGRALIZAÇÃO DE IMÓVEL AO CAPITAL SOCIAL DA EMPRESA – IMUNIDADE – ITBI – ANULAÇÃO DO LANÇAMENTO – SENTENÇA MODIFICADA – RECURSO PROVIDO. A imunidade de ITBI abrange a diferença entre o valor de incorporação e o valor de mercado, mormente quando todo o valor é destinado à realização de capital, sem formação de reserva, nos termos do art. 156, §2º, I, da Constituição Federal”. (eDOC 7, p. 1)
[…]
Além disso, divergir do entendimento do Tribunal de origem em relação à cobrança do Imposto de Transmissão Inter Vivos de Bens Imóveis – ITBI sobre a diferença entre o valor do capital social integralizado com o imóvel e do valor venal do bem transferido para a pessoa jurídica, seria necessário analisar cláusulas contratuais e reexaminar o acervo fático-probatório dos autos, providência inviável no âmbito do recurso extraordinário. Nesses termos, incidem, no caso, as Súmulas 279 e 454 do Supremo Tribunal Federal.
(RE 1.448.120, Dec. Mon. Min. Gilmar Mendes, DJe 13/06/2024)
Por exemplo, mantendo acórdão do TJ-MT desfavorável ao contribuinte:
Trata-se de recurso extraordinário interposto em face de acórdão proferido pela Primeira Câmara de Direito Público e Coletivo do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, com fulcro no artigo 102, inciso III, alínea ‘a’ da Constituição Federal, assim ementado (e-doc n° 10):
“RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL COM REMESSA NECESSÁRIA — DIREITO TRIBUTÁRIO — ITBI — IMUNIDADE DO TRIBUTO — LIMITE SOBRE O VALOR DOS BENS ATÉ O LIMITE DO CAPITAL SOCIAL A SER INTEGRALIZADO — TEMA 796 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL — BASE DE CÁLCULO PARA ITBI — VALOR VENAL — IDENTIDADE NECESSÁRIA — RECURSO NÃO PROVIDO — SENTENÇA RATIFICADA.
[…]
Constata-se que a controvérsia trazida na espécie não prescinde da análise da diferença entre o valor declarado e integralizado ao patrimônio da pessoa jurídica, para fins de subscrição do capital social, e o valor venal, atribuído pelo município, o que não se ajusta ao Tema 796 da Repercussão Geral e não apresenta estatura constitucional.
Com efeito, para rever o entendimento firmado pelo Tribunal de origem sobre o tema seria necessário analisar cláusulas contratuais e reexaminar o acervo fático-probatório dos autos, providências que esbarram nos óbices das Súmulas n° 454 e 279 do Supremo Tribunal Federal.
(RE 1.520.765, Dec. Mon. Min. Dias Toffoli, DJE 12/11/2024)
Ou seja, o STF decidiu que não irá decidir a respeito da possibilidade de cobrança do ITBI sobre a diferença do valor venal e valor da cota integralizada. O que o tribunal de origem decidir, interpretando o artigo 156, §2º, I, da Constituição e Tema 796, será mantido, ainda que as conclusões sejam opostas.
Discussão no STF
Além disso, é curioso o fundamento de que a discussão não deve ser admitida no STF por demandar o reexame de provas, considerando que o caso adotado como paradigma do Tema 796 apresentava uma situação fática mais complexa do que a discussão envolvendo diferença de valores.
No RE 796.376, o STF precisou analisar a forma como a integralização, valor atribuído às cotas, formação de reserva de capital, para chegar à sua conclusão. Já nos casos apresentados acima, a discussão centrava na possibilidade de se tributar ou não a diferença entre valor venal e valor das cotas a partir das correntes interpretativas do artigo 156, §2º, I, da Constituição:
(1) ou a imunidade retira da competência dos municípios a capacidade de cobrança de ITBI sobre o fato jurídico “integralização de imóveis ao capital social”, ou;
(2) a imunidade atua como redutor da base de cálculo, autorizando a cobrança sobre a diferença entre valor venal e valor integralizado.
Da forma como a controvérsia é tratada hoje, a situação é ruim tanto para os contribuintes, que não conseguem planejar com segurança o ato de integralização de imóveis ao capital social, e é ruim para os municípios, que terão a isonomia violada na medida em que a cobrança do seu imposto, sobre o mesmo fato, irá variar a depender do Tribunal de Justiça do seu estado, da interpretação que ele dá à regra de imunidade.
Nem mesmo com a afetação do Rema de repercussão geral nº 1348 a situação deve melhorar, vez que o caso em análise versa sobre a aplicação da imunidade para empresas com atividades imobiliárias e não tem por objetivo decidir sobre a tributação de diferença de valores.
Dessa forma, a insegurança jurídica, na matéria em análise, poderia ser resolvida facilmente pelo STF. Basta decidir: o artigo 156, §2º, I, da Constituição autoriza a cobrança de imposto sobre a diferença entre valor venal e valor integralizado?
[1] RE 1495108 RG, Relator(a): MINISTRO PRESIDENTE, Tribunal Pleno, julgado em 05-11-2024.
[2] Nesse sentido cf. COELHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária. 4 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 158.
[3] Cf. TJ-GO – Agravo de Instrumento: 5743454-16.2023.8.09.0051 GOIÂNIA, Relator: Des(a). ALEXANDRE DE MORAIS KAFURI, 8ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ 15/03/2024. TJMS. Apelação Cível n. 0800750-49.2021.8.12.0025, Bandeirantes, 4ª Câmara Cível, Relator (a): Des. Vladimir Abreu da Silva, j: 24/01/2023, p: 25/01/2023.
[4] Cf. TJPR – 2ª Câmara Cível – 0043893-85.2017.8.16.0014 – Londrina – Rel.: DESEMBARGADOR SILVIO VERICUNDO FERNANDES DIAS – J. 18.07.2018; e TJPR – 2ª Câmara Cível – 0001550-94.2023.8.16.0004 – Curitiba – Rel.: DESEMBARGADOR ROGÉRIO LUIS NIELSEN KANAYAMA – J. 07.10.2024.
Ailton José de Andrade Junior: é advogado tributarista no Marcos Diniz, Faraco e Arruda Advogados.
Fonte: Conjur