1. Introdução
Neste artigo, apontamos estes três parâmetros a serem observados para a flexibilização do direito real de habitação vidual1, previsto no art. 1.831 do CC:
Para facilitar, transcrevemos o referido dispositivo:
Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.
A reflexão vem em momento oportuno. É que, na terça-feira passada (24/9/24), fruto de elevada sensibilidade e da vasta experiência que singularizam os ministros da 3ª turma do STJ, nasceu interessantíssimo julgado sobre o tema (STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª turma, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 24/9/24).
O julgado tratou de uma situação absolutamente excepcional de flexibilização do referido direito vidual, a demonstrar que, por vezes, o magistrado precisa imprimir interpretação restritiva a dispositivos pelo fato de a lei dizer mais do que queria (plus dixit quam voluit).
O caso foi relatado pela experiente ministra Nancy Andrighi e contou com a adesão unânime dos igualmente experientes ministros Humberto Martins, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro.
À vista disso, é extremamente conveniente aprofundar o debate sobre a mitigação do direito real de habitação vidual, especialmente para afastar eventual ilação que leitores mais eufóricos e incautos poderiam tirar no sentido de que o STJ teria infertilizado esse instituto.
A esses mais afoitos reportamos uma advertência feita pela ministra Nancy Andrighi durante o seu voto. Após realçar que a flexibilização feita no caso é absolutamente excepcional, fruto das particularidades do caso concreto, a ministra alertou, in verbis:
.... eu procurei gravar e fixar bem a excepcionalidade. Para não dizerem que eu estou rechaçando o direito de habitação, (...) eu repeti na ementa duas vezes [a excepcionalidade]. Logo, na excepcional situação examinada, deve-se flexibilizar o direito real de habitação em favor dos herdeiros2.
Passamos a expor os parâmetros a serem observados para a flexibilização do direito real de habitação vidual, levando em conta o recente julgado do STJ. Além da leitura do julgado e de acompanhar a sessão de julgamento, consultamos o inteiro teor dos autos para maior precisão da base fática julgada pelo STJ.
Por fim, embora não seja o foco deste artigo, apontamos que, em casos de flexibilização do direito real de habitação vidual, parece-nos absolutamente necessário respeitar o ambiente de dúvida jurídica razoável. Desse modo, somente após a decisão judicial definitiva, é que se poderá invocar qualquer efeito decorrente de posse de boa-fé. Sobre o tema, reportamo-nos a outro artigo nosso3.
2. Parâmetros para a flexibilização do direito real de habitação vidual
De modo extremamente excepcional, o direito real de habitação vidual pode ser flexibilizado quando, à luz das particularidades do caso concreto, não coadunar com seu caráter humanitário e social.
É preciso verificar cada caso concreto, pois o afastamento do direito real de habitação vidual é excepcionalíssimo. Não se pode esvaziar hermeneuticamente o texto do art. 1.831 do CC banalizando essa flexibilização, sem que haja uma mudança legislativa efetiva4.
Entendemos que três parâmetros devem ser levados em conta:
O parâmetro da proteção do viúvo de idade avançada veda a mitigação do direito real de habitação quando o viúvo tiver idade avançada, independentemente da condição financeira sua ou dos demais herdeiros.
Para tal efeito, consideramos pessoa de idade avançada aquela com idade superior a 55 anos. Isso, porque essa idade é fruto da média aritmética de três referências legislativas indicativas de idade avançada: a idade mínima do viúvo para a vitaliciedade da pensão por morte5, a idade mínima para aposentadoria6 e a idade indicada pelo Estatuto da Pessoa Idosa7. Trata-se da idade em que a pessoa presumidamente já reclama maior estabilidade patrimonial por conta do próprio ciclo natural da vida.
De fato, a proteção da pessoa de idade avançada não é apenas por razões patrimoniais, mas também emocionais e psicológicas. Afastar o direito real de habitação do art. 1.831 do CC para sujeitar uma pessoa de avançada idade ao transtorno de ter de buscar uma nova moradia contraria o próprio caráter humanitário desse direito. Não é razoável acrescer a uma pessoa de idade avançada já combalida pela perda do cônjuge mais uma dor: a de ter de sair da casa em que vivia.
Além disso, considerando que o direito real de habitação se extingue com a morte e tendo em vista a expectativa de vida média dos indivíduos, a verdade é que esse direito do viúvo não representará grande peso aos demais herdeiros. Diferente seria se o viúvo fosse jovem.
Por fim, temos ainda de levar em conta que estamos a tratar de sucessão mortis causa: os demais herdeiros nada estariam a receber se o falecido tivesse sobrevivido mais tempo. Não é razoável forçar interpretação restritiva do art. 1.831 do CC para beneficiá-los em detrimento de quem viveu mais intimamente com o falecido até seu último dia, dedicando-se com trabalhos de cuidado em seu favor. Aliás, a própria conservação do imóvel deve também ser atribuído a esse trabalho invisível (o trabalho de cuidado) exercido pelo viúvo, ainda mais quando se tratar de mulher, que ainda cumula as tarefas de cuidado na prática social brasileira.
O segundo parâmetro é o da proteção a longos relacionamentos more uxorio (conjugais ou convivenciais), segundo o qual não se deve flexibilizar o direito real de habitação do art. 1.831 do CC quando o viúvo tiver mantido um longo relacionamento com o falecido.
Consideramos longo relacionamento aquele com mais de 21 (vinte e um) anos. Isso, porque, presumidamente nesse lapso de tempo, o casal terá dedicado os seus maiores esforços em prol da família, com eventual criação de filho. O tempo de 21 anos é tomado emprestado da legislação previdenciária, que estima essa idade como parâmetro para extinção da pensão devida a filhos menores do casal8.
Nesses casos, é irrelevante se o viúvo tem ou não condições financeiras de arcar com outra moradia.
Isso, por dois principais motivos.
De um lado, o direito real de habitação do art. 1.831 do CC protege o vínculo afetivo com um local que guarda memórias profundas da família. Nas palavras de Flávio Tartuce, citado pela ministra Nancy Andrighi, esse direito resguarda o "vínculo afetivo e psicológico estabelecido pelos cônjuges ou companheiros com o imóvel em que, no transcurso de sua convivência, constituíram não apenas uma residência, mas um lar" (voto neste julgado: STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª turma, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 24/9/24).
De outro lado, o direito legal é um reconhecimento da sua longa dedicação ao falecido e ao lar. Essa dedicação, inclusive, pode ter colaborado até mesmo para o falecido ter conseguido preservar ou conquistar o patrimônio. De fato, os trabalhos de cuidado não podem ser desprezados pelo direito das sucessões, dentro do paradigma atual de prestígio à economia do cuidado9. Eventual desventura financeira dos demais herdeiros - que presumidamente decorre de suas escolhas ou de sua falta de sorte - não pode ser invocada para derrubar o direito de quem, por longos anos, às custas de sacrifícios pessoais, dedicou-se ao cuidado mais íntimo do falecido.
O terceiro parâmetro é o da proteção do viúvo diante de caprichos dos demais herdeiros.
À luz desse parâmetro, a flexibilização do direito real de habitação não deve acontecer quando os demais herdeiros dispuserem de situação financeira confortável ou quando esses herdeiros estiverem em situação de vulnerabilidade por conta de uma escolha por uma vida de poucas responsabilidades (como no caso de filhos que desprezaram as oportunidades de estudos e de trabalho que receberam de seus pais por preferirem um caminho de menor responsabilidade).
Isso, porque não soa condizente com a equidade forçar uma interpretação restritiva do art. 1.831 do CC para beneficiar o capricho dos demais herdeiros em detrimento do viúvo. É irrelevante se o viúvo também está em condições financeiras confortáveis. Esse parâmetro dialoga com o princípio da proteção simplificada do luxo10, com o princípio de amparo às pessoas vulneráveis11 e com os primados de autonomia privada.
3. Compatibilidade da jurisprudência do STJ com os três parâmetros de flexibilização do direito real de habitação vidual
O STJ caminha no sentido acima, conforme o único julgado do STJ que flexibilizou o direito real de habitação (STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª turma, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 24/9/24).
Não é possível generalizar nada, porque só há um julgado do STJ, e a 4ª turma ainda haverá de se manifestar. Seja como for, enxergamos que o referido julgado indica um pendor do STJ em seguir os três parâmetros que indicamos acima.
Nesse julgado, por unanimidade, os ministros rejeitaram o direito real de habitação vidual sobre um imóvel de classe média12 em que a viúva residia com o falecido.
A viúva era uma jovem senhora de 52 anos que não tinha filhos e que havia ficado com uma expressiva e vitalícia pensão por morte (o falecido era procurador Federal) após 16 anos de casamento.
O único bem financeiramente relevante no espólio era esse imóvel, adquirido pelo falecido por herança no curso do casamento13.
Com isso, o STJ beneficiou os dois únicos filhos do falecido, que ficaram com a propriedade plena da integralidade do imóvel14. Eles não dispunham de imóvel próprio e viviam de aluguel com os 5 netos (ainda menores de idade à época do falecimento).
Foi decisivo, no julgamento, o fato de, ao tempo da abertura da sucessão, tanto o fato de os filhos estarem em situação patrimonial vulnerável quanto o fato de a viúva ser uma jovem senhora com uma pensão vitalícia elevada e com idade próxima aos filhos unilaterais do falecido. Em princípio, como o direito real de habitação só se extinguiria com a morte da viúva, os filhos do falecido dificilmente fruiriam efetivamente do bem que receberam por herança.
Entendemos que a flexibilização do direito real de habitação vidual aí observou os três parâmetros que defendemos: (1) a viúva não era pessoa de idade avançada, ou seja, não tinha mais de 55 anos; (2) o seu casamento durou menos de 21 anos; e (3) os demais herdeiros estavam em situação de vulnerabilidade financeira sem que tenha havido capricho deles.
Fonte: Migalhas