Quando o assunto envolve o pedido de não incidência do ITBI, as variantes aumentam, e muito.
A constituição de sociedade holding patrimonialimobiliária, com a integralização de bens imóveis, costuma ser empregada como o passo inicial na implementação das variadas possibilidades de estruturas jurídicas, seja no âmbito da reestruturação operacional de ativos, como no âmbito de planejamento patrimonial esucessório, todas as quais na maioria das vezes objetivam atingir eficiência fiscal e governança.
Referida movimentação societária é resguardada pela CF/1988, que em seu artigo 156, ao delegar a competência dos municípios sobre a instituição do imposto de transmissão inter vivos de bens imóveis ("ITBI"), garante ao contribuinte a não incidência do imposto sobre bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.
Nesta linha, cabe ao município da situação do bem a regulamentação do ITBI e dos procedimentos de solicitação de aplicação da imunidade, que geralmente espelham em suas leis municipais a máxima estabelecida na CF/1988. Sendo assim, cada um dos aproximados 5.570 municípios do país possuem regras, com sistemas próprios de apuração e emissão de guias arrecadatórias, bem como equipes técnicas que avaliam e monitoram os pedidos de não incidência.
Importante reiterar neste primeiro momento que, não obstante a discricionariedade dos entes municipais na regulamentação da cobrança do ITBI, estes não podem ultrapassar ou inovar os preceitos previstos no artigo 156 da CF/1998, sob pena de inconstitucionalidade. Todavia, em muitos casos a imunidade não é respeitada na prática.
Quem atua no ramo conhece as dificuldades operacionais que podem ocorrer quando a operação envolve imóveis em municípios diversos. É comum se deparar com sistemas não padronizados e legislações municipais que muitas vezes divergem, de forma relevante, em termos de prazos e procedimentos operacionais. Alguns municípios exigem o envio prévio do ato societário e o número do CNPJ já emitido, por e-mail, para fins de emissão da guia arrecadatória. Já em outros, há sistemas digitais para inclusão da declaração de transmissão e emissão das guias. Isso tudo é realizado, ainda, sob a observância das leis municipais, que estipulam prazos diferentes para pagamento do ITBI, que variam desde a data de assinatura, até 30 dias contados da data do instrumento particular de conferência do imóvel. Por isso, a depender da estrutura sendo implementada, há quem prefira se antecipar e constituir a holding como passo preliminar, obtendo desde logo o número do CNPJ, dando flexibilidade às movimentações subsequentes.
Quando o assunto envolve o pedido de não incidência do ITBI, as variantes aumentam, e muito. Certos municípios, inclusive, preveem um prazo limite para apresentação do pedido de não incidência do ITBI (término do ano corrente da movimentação societária), sob pena de indeferimento deste. Em municípios grandes, é possível ter o deferimento provisório de não incidência de ITBI em uma semana, enquanto em municípios menores, o procedimento poderá levar meses.
Ainda, há certos cuidados e formalidades necessárias a serem observadas em relação à holding, pois muitos municípios vêm aplicando condições interpretativas em relação ao deferimento da não incidência do imposto, que a nosso ver extrapolam a razoabilidade e as imposições constitucionais.
Em regra, os municípios, após análise da documentação societária referente à transação, providenciam ao contribuinte uma "Declaração de Deferimento Provisório da Não Incidência de ITBI", a qual atesta que o órgão municipal foi devidamente informado da operação e que, até aquele momento, se encontram cumpridos os requisitos do art. 156 da CF/88 para aproveitamento da imunidade tributária. Com a referida declaração é possível ao contribuinte o registro da transferência do imóvel em seu respectivo cartório.
Referidas declarações, por serem provisórias, permitem que a Municipalidade, pelo prazo de 5 (cinco) anos, possa fiscalizar a observância das condições relacionadas à não incidência do ITBI, sendo a principal a verificação ou não de preponderância de atividade imobiliária nas operações do contribuinte.
Nos termos do art. 37 do Código Tributário Nacional ("CTN"), a verificação da preponderância é realizada mediante apuração de que as empresas não tenham receitas oriundas de atividade imobiliária superiores a 50% da totalidade de suas receitas operacionais, devendo ser examinados os dois anos anteriores e os dois anos posteriores ao pedido de não incidência, ou, para empresas constituídas a menos de dois anos do pedido, serão analisados os 3 (três) anos posteriores ao pleito de não incidência do imposto.
Deste modo, temos que o procedimento usual das Prefeituras é a solicitação, no período de 3 a 4 anos do pedido de não incidência, da documentação contábil da empresa (Demonstrativo de Resultado do Exercício, Balanço Patrimonial Analítico e Balancete) para o exame das receitas da empresa no período.
Ou, ao menos, é como deveria ser...
Tem-se verificado uma movimentação das Prefeituras nos últimos anos para a restrição da concessão da não incidência de ITBI na integralização de imóveis em realização de capital, de forma que algumas municipalidades têm sido bastante criteriosas na análise dos pedidos, examinando em detalhes a contabilidade e as operações das holdings.
Referida abordagem resulta, em muitas oportunidades, no indeferimento dos pedidos em razão de questões que podem ser consideradas corriqueiras (ou negligenciadas)pela habitualidade dos empresários/consultores no âmbito de estruturas que envolvem a conferência de imóveis, em especial no contexto do ITBI, como passo inicial de uma operação mais complexa e que demandaria atenção em outros aspectos fiscais/operacionais. A consequência disso é a lavratura de auto de infração com multa (em regra, de 50% do valor do imposto), acrescido de juros e correção monetária contados desde o ato da conferência.
Neste sentido, existem diversas decisões administrativas, proferidas na última década, com o entendimento de que o estrito cumprimento da determinação do art. 36, inciso I, do CTN não é suficiente para que seja reconhecida a não incidência de ITBI. Ou seja, não basta que a contabilidade demonstre a ausência de atividade imobiliária preponderante, e sim que se comprove contabilmente a efetiva administração do imóvel pela holding.
Ainda nesta linha, temos manifestações dos municípios indeferindo o pleito das holdings indicando que a ausência de receitas por parte das empresas, ou o não lançamento de algumas despesas na contabilidade, maculam a verificação da sua atividade preponderante e são fundamento suficiente para o não reconhecimento da imunidade tributária ora tratada.
Exemplificamos abaixo trechos de duas manifestações recentes de uma das maiores prefeituras do país sobre estatemática:
Durante o período de análise, 2018 a 2021, a empresa não demonstrou nenhuma receita, ou seja, manteve se praticamente inativa sem quaisquer alterações em seu patrimônio. O legislador constituinte, ao imunizar a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica em integralização de capital (art.156, § 2º, I, da CF), pretendeu exclusivamente incentivar o crescimento da empresa, evitando que o recolhimento de valores a título de ITBI se transformasse num estímulo contrário à formulação de negócios. Qualquer desvio de finalidade da norma constitucional, direcionada a beneficiar diretamente os sócios, deve ser coibida. A prova documental revela, na situação examinada, mais que a mera realização de capital em prol das finalidades da pessoa jurídica, evidenciando que a integralização dos imóveis ao patrimônio da empresa jurídica teve, ao fim e ao cabo, o propósito de transmitir os bens sem o pagamento do imposto municipal. (...) A empresa, ademais, não contabilizou quaisquer despesas relacionadas aos imóveis integralizados em 08/06/2018, o que aponta que a contabilidade, não apresentada, não reflete, com fidedignidade, as alterações ocorridas no patrimônio da pessoa jurídica, no período analisado. As despesas são incompatíveis com o seu patrimônio imobiliário. Não encontramos despesas, tais como água, energia elétrica, IPTU, despesas condominiais, despesas com os registros nas matrículas dos imóveis, depreciações etc. Desta forma, a SEFAZ entende que a contabilidade apresentada não reflete, corretamente, a evolução patrimonial da contribuinte no período analisado e assim lavrou 2 autos de infração para a cobrança de valores devidos a título de ITBI referentes ao imóvel conferidos através do Instrumento Particular (Contrato Social) (...).
8. Tem-se, assim, que a norma constitucional imunizante objetiva promover o desenvolvimento econômico por meio da livre iniciativa e da neutralidade fiscal, o que significa dizer que o constituinte almejou incentivar os proprietários de imóveis a investirem tais bens em capital produtivo ao invés de destiná-los à locação, ao arrendamento mercantil ou à compra/venda.
9. Pois bem. Os balanços patrimoniais e as DREs de 2014 a 2018 comprovam que as únicas despesas contabilizadas foram de honorários contábeis. Não foram registradas despesas com IPTU ou qualquer outra ínsita à conservação e manutenção do imóvel. 10. Ao não contabilizar tais despesas, a Recorrente deixou de registrar a origem de recursos utilizados para quitá-las e o consequente impacto patrimonial causado no resultado que deveria ter sido apurado pela sociedade. 11. Ausente tais informações, pode-se cogitar que tais despesas podem ter sido pagas com receitas não contabilizadas, pois os registros contábeis não refletiram a realidade das movimentações patrimoniais da Recorrente. 12. Nos termos do art. 226, do Código Civil, a contabilidade eivada de vícios faz prova contra a sociedade e não reflete fielmente as alterações ocorridas no patrimônio da Recorrente no período analisado. 13. Cumpre consignar que a ausência de qualquer receita caracteriza o desvirtuamento de propósito da benesse constitucional consistente em promover a livre iniciativa, o desenvolvimento econômico mediante a neutralidade fiscal para incentivar os proprietários de imóveis a aplicá-los em capital produtivo. 14. Ademais, conforme declarado pela própria Recorrente, a finalidade do imóvel é residencial e não é utilizado para a consecução do seu objeto social.
Observa-se que, nos casos acima, a municipalidade compreendeu que a falta de lançamentos das despesas do imóvel na contabilidade é causa para indeferimento do pedido de não incidência de ITBI, prejudicando a finalidade do art. 156, §2°, I, da CF/88 e a confiabilidade das demonstrações contábeis.
Já em outro caso, uma decisão administrativa de outra municipalidade escancara, em seu próprio parecer, a intervenção municipal nas relações dos contribuintes, ao passo que argumentam que "os sócios pertencem ao mesmo núcleo familiar, tendo indícios de planejamento patrimonial". Sobre esse ponto, é importante frisar que planejamento patrimonial não é (e jamais deveria ser) um impeditivo de se obter o reconhecimento da não incidência do ITBI. Aliás, ela é justamente uma das razões de se obter o pedido de não incidência do ITBI, já que a holding não auferirá receita de atividade imobiliária, e a operação se fundamenta por um objeto maior em relação ao grupo econômico/sócio conferente.
Apesar dos recentes posicionamentos dos Municípios, os tribunais estaduais tem apresentado, em quantidade relevante, entendimentos favoráveis aos contribuintes, conforme trechos a seguir de julgamentos realizados pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP"): "Ainda que de responsabilidade da nua-proprietária, as despesas não são critérios aptos a atrair a incidência do tributo, já que o art. 37 do CTN prevê apenas a análise da receita operacional como critério para verificar a atividade preponderante (Apelação n° 1047646-29.2020.8.26.0053 - Sessão de Julgamento de 21/11/2022)"; "Pretensão de Não Incidência de ITBI sobre a integralização de capital social por meio de transferência de imóvel - Cabimento - Imunidade Tributária (Cf, Art. 156, §2º, Inc. I) que deve ser reconhecida - Empresa que não obteve faturamento desde sua constituição - Mera inatividade da sociedade não impede o reconhecimento da imunidade - Inteligência do art. 37, §2º, do CTN ( Apelação n° 1007470-03.2023.8.26.0053 - Sessão de Julgamento de 06/11/2023). Importante destacar, todavia, que também existem Câmaras/Juízes com entendimentos mais restritivos.
Portanto, os contribuintes precisam se atentar a detalhes que antes eram negligenciados, no sentido de afastar eventuais investidas arrecadatórias de certas municipalidades. Vale observar, ainda, que as decisões administrativas municipais desfavoráveis são reversíveis no âmbito da justiça estadual, mas vale a reflexão de agir preventivamente, a fim de evitar futuras demandas judiciais por conta de movimentação societária não trivial.
Isto posto, é de extrema importância registrar desde a incorporação do imóvel todas as despesas imobiliárias como IPTU, condomínio e demais contas de uso, conforme aplicável, na contabilidade da empresa, demonstrando regularidade contábil na transferência efetivada e na administração do imóvel. Caso as despesas sejam efetuadas diretamente pelos sócios da holding, uma alternativa seria a disposição de tais valores como empréstimo/crédito do sócio em relação à sociedade.
Outro ponto importante é a atualização da propriedade perante a municipalidade para fins de atualização do carnê de IPTU, bem como o registro da transferência à margem da matrícula imobiliária.
Em se tratando de municípios com sistema de Domicílio Eletrônico do Contribuinte ("DEC"), como por exemplo o município de São Paulo, as notificações referentes ao pedido de não incidência de ITBI são realizadas exclusivamente por lá, o qual somente pode ser acessado por meio do certificado digital da empresa. É importantíssimo o acompanhamento semanal do referido sistema e atenção ao e-mail vinculado ao DEC, tendo em vista que, em eventual fiscalização, a ausência de resposta poderá dar causa à lavratura de auto de infração, conforme verifica-se de trecho extraído de recente autuação municipal:
Conforme se verifica no processo, regularmente notificada via DEC, não apresentou a documentação solicitada, restando prejudicada, portanto, a análise.
Face ao exposto, e considerando ainda o disposto nos artigos 28, 34 e 79 da Lei n° 14.107/05, providenciamos a emissão dos autos de infração de ITBI-IV a que esse relatório acompanha, relativos às transmissões imobiliárias realizadas, uma vez que prejudicada a análise da atividade preponderante da pessoa jurídica e devido, portanto, o imposto.
Para concluir, ressalte-se que a conferência de imóvel é ato comum e importantíssimo para o desenvolvimento das atividades econômicas dos contribuintes. Ademais, é necessário que os entes Municipais respeitem os requisitos constitucionais na aplicação da imunidade do ITBI na integralização de imóveis, sem a criação de entraves arrecadatórios.
Fonte: Migalhas