No ano em que se celebra 13 anos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal – STF, no julgamento conjunto da ADI 4277 com a ADPF 132 que equiparou, para todos os fins, as uniões estáveis homoafetivas às uniões estáveis heteroafetivas, casais homoafetivos ainda se deparam com estigmas e preconceitos. A recusa de uma loja a fabricar convites de casamento para um casal homossexual fomentou o debate sobre o tema nas redes sociais nas últimas semanas.
No caso que viralizou na internet, a empresa se negou a fabricar os convites de casamento sob a justificativa de que não fazem produções "homossexuais". O advogado Paulo Iotti, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, reconhece a importância da discussão na semana do aniversário do reconhecimento da união estável homoafetiva como núcleo familiar.
O IBDFAM atuou como amicus curiae no julgamento do STF, que conferiu interpretação conforme a Constituição ao artigo 1.723 do Código Civil, assegurando que “o sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica”.
O julgamento, segundo o advogado, abriu caminho para o reconhecimento do direito ao casamento civil homoafetivo no STJ (REsp 1.183.378/RS, j. 25.10.2011) e no CNJ (Resolução 175/2013). “Algo também reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando decidiu que não se pode impor um estereótipo de heteronormatividade ao casamento civil, de sorte que casais do mesmo sexo/gênero têm o direito a se casarem civilmente por força dos direitos humanos à igualdade e à não discriminação, pela Convenção Americana de Direitos Humanos também não proteger apenas a dita ‘família tradicional’, entre um homem e uma mulher (OC 24/17, segunda parte).”
Na visão do especialista, as discussões são inter-relacionadas. “Os Tribunais Superiores e o Conselho Nacional de Justiça já atestaram que casais homoafetivos não podem ter a si negados direitos garantidos aos casais heteroafetivos.”
“A Constituição Federal proíbe a discriminação homotransfóbica, o que reforça a proibição de negar a venda de produtos ou a prestação de serviços no mercado consumidor por preconceito homotransfóbico, qualquer o nome que se dê a isso. Ou seja, disfarcem terminologicamente como quiserem, chamando de ‘condenação religiosa’, ‘discordância moral/filosófica’, como muitas vezes fazem. São tergiversações que querem defender, de forma teratológica, que o preconceito da pessoa, ainda que de origem religiosa, filosófica ou moral, lhe daria o direito de discriminar pessoas LGBTI+)”, explica.
De acordo com o advogado, a Constituição proíbe quaisquer formas de discriminação (art. 3º, IV), bem como toda e qualquer discriminação atentatória a direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI), “hipóteses que obviamente abarcam o direito à não discriminação pelo exercício regular do direito à livre orientação sexual não heteroafetiva e à livre identidade de gênero não cisgênera (transgênera)”.
Ele acrescenta: “A Constituição ainda determina a punição de todas as formas de racismo (art. 5º, XLII), já que o STF corretamente reconheceu a homotransfobia como forma de racismo social em 2019 (ADO 26/MI 4733, j. 13.06.2019)”.
Limite constitucional
Paulo Iotti esclarece que a legislação proíbe a recusa de atendimento a consumidores por razões discriminatórias. “Na lei, temos o artigo 39, II e IX, do Código de Defesa do Consumidor, que proíbem que vendedor de produtos ou fornecedor de serviços recuse realizar serviço ou vender produto quando consumidor se propuser a pagar a vista (ou da forma parcelada que a empresa admite, ela só não é obrigada a aceitar algo distinto do dinheiro).”
“O intuito da lei foi precisamente proibir que discriminações do passado, contra pessoas negras e LGBTI+, inclusive, por se entender que a partir do momento que a pessoa se dispõe a ser empresária e prestar serviços ao mercado consumidor, tem que agir com impessoalidade, sem poder selecionar quem quer atender”, pondera.
O especialista também lembra que a Constituição Federal prevê o direito à não discriminação (art 3º, IV, e art. 5º, XLI e XLII) e o dever de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que busque a justiça social, para superar discriminações de quaisquer naturezas, inclusive como limite constitucional à própria livre iniciativa (art. 3º, I a IV, e 170, caput e incisos).
“É preciso uma concordância prática entre os direitos fundamentais à não discriminação e à laicidade do Estado, de um lado, e à liberdade religiosa e de consciência, de outro. A liberdade religiosa e de consciência não garante às pessoas um ‘pseudodireito’ de discriminar minorias sociais em razão de ideologias filosóficas, morais ou religiosas que a pessoa adote”, destaca.
Segundo Iotti, a liberdade de consciência, crença e religião permite que a pessoa professe sua fé sem perseguição do Estado. Ressalta, porém: “Isso é muito diferente de pautar o Estado laico pela religião ou crença dessa pessoa, ou querer ‘liberdade’ para discriminar pessoas no mercado consumidor, neste caso”.
“Liberdade é o direito de se fazer tudo aquilo que não prejudique terceiros, é o sentido liberal do direito de liberdade desde as Revoluções Liberais contra o Absolutismo, que culminaram com a Revolução Francesa, cuja Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão adotou esse conceito de liberdade nos seus artigos 4º e 5º. Logo, é uma deturpação do conceito histórico e do conceito jurídico atual de liberdade querer que a liberdade de consciência, crença e religião garanta um ‘pseudodireito’ de discriminar. Isso é teratológico (é uma monstruosidade que transcende o absurdo que é inconstitucional por isso)”, observa.
De acordo com o advogado, é plenamente constitucional o artigo 39, II e IX, do CDC, tanto em geral quanto em sua aplicação para coibir discriminações homotransfóbicas no mercado consumidor. Ele acrescenta que o STF entendeu que a homotransfobia é forma de racismo à luz dos conceitos antropológicos de raça social e racismo social, por interpretação literal nos crimes “por raça”.
“Isso reforça um argumento muito comum, mas que é independente da homotransfobia ser forma de racismo: da mesma forma que pessoas adeptas de uma religião não podem se recusar a atender pessoas adeptas de outras religiões (como as pessoas judias) ou pessoas negras por acharem elas ‘pecadoras’ (e no passado isso era muito forte e negava-se atendimento a negros/as e judeus/judias por isso), não pode também recusar atender pessoas LGBTI+ com produtos ou serviços que forneceria às pessoas cishétero”, afirma.
Garantia de direitos
Para Paulo Iotti, a positivação das decisões do STF em leis é necessária para a garantia de segurança jurídica. Ele também percebe a necessidade de capacitação e sensibilização da mídia e de integrantes do Sistema de Justiça em geral (Judiciário, Ministérios Públicos, Defensorias Públicas e Advocacia) e da Administração Pública.
“Também precisamos de políticas públicas de conscientização da sociedade. Pessoas LGBTI+ são merecedores do mesmo respeito e consideração que pessoas cishétero, diferenciando-se apenas por amarem pessoa do mesmo sexo, de forma exclusiva ou não (pessoas LGB+) ou apenas por se identificarem com sexo/gênero distinto daquele atribuído ao nascer (pessoas T+)”, aponta.
Paulo Iotti proferiu a sustentação oral do julgamento que reconheceu a homotransfobia como crime de racismo (ADO 26 e MI 4333) – o IBDFAM também atuou como amicus curiae nesse julgamento, com sustentação oral do presidente, Rodrigo da Cunha Pereira. Na ocasião, Iotti falou sobre “concordar em discordar”.
“Significa tratar como igual, ainda que discorde de algo, ou, no mínimo, tolerância. Não agredir, ofender, discriminar ou matar. Ainda que alguém ache que ser LGBTI+ seria um ‘pecado’ em si, do que eu discordo e muitas pessoas cishétero também discordam, isso não permite que discriminem pessoas LGBTI+ apenas por essa crença religiosa”, observa o especialista.
Iotti ressalta que a lei brasileira e a correta interpretação da Constituição proíbem a discriminação de pessoas LGBTI+ no mercado consumidor. “Quem fizer isso se submete a ser processado criminalmente, por crime de racismo homotransfóbico (crime de discriminação racial homotransfóbica, do art. 5º da Lei 7.716/1989 ou, no mínimo, do art. 20 da mesma lei), além de indenização por dano moral em razão da discriminação, advertência ou multa em caso de Estados ou Municípios que têm leis estaduais administrativas antidiscriminatórias.”
O mesmo vale para discriminações homotransfóbicas no mercado de trabalho, lembra o advogado. “O Tribunal Superior do Trabalho – TST diz corretamente que é abuso de direito enquanto ato ilícito (art. 187 do Código Civil) demitir por razões discriminatórias, pois isso deturpa a finalidade social do direito à demissão sem justa causa, que não foi criado para permitir discriminação, mas para que a empresa possa se reorganizar).”
O especialista pontua que o tema já foi afirmado até mesmo “pela ultraconservadora Suprema Corte dos EUA”. Em 2020, no caso Bostock vs. Clayton County, a Corte americana proibiu a demissão de alguém por homotransfobia, por considerá-la uma forma de discriminação por sexo, legalmente proibida.
“A lógica é essa: se Paulo é discriminado ao se relacionar com Pedro, mas Joana não o é, Paulo está sendo discriminado pelo seu sexo, pois se fosse do sexo oposto, não estaria sendo discriminado; de forma equivalente, a pessoa trans está sendo discriminada por se identificar com sexo distinto daquele que lhe foi atribuído ao nascer, daí a tese aceita em muitos julgamentos internacionais, no sentido de que a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero são formas de discriminação por sexo)”, complementa.
Por Débora Anunciação
Fonte: Migalhas