Na perspectiva do constitucionalismo social, que tem por base solidariedade e fraternidade, passa a pulsar valores como a verdade (as Constituições não contemplam promessas impossíveis nem consagram mentiras); consenso (a Constituição é fruto de uma construção social); solidariedade (são erradicadas todas as formas de discriminação); continuidade (a Constituição tem sempre por base a lógica dos antecedentes); integração (previsão expressa de órgãos supranacionais) e universalização (os direitos fundamentais internacionais estão previstos).
Essa nova ordem constitucional decorre, entre outros fatores, da ideia da globalização permeada por uma mescla de culturas em contato dentro de uma unidade mundial, contexto este em que os Estados paulatinamente abandonam sua posição de centros de poder e ao ceder espaço aos mercados, colocando em choque enormes diferenças culturais, que acabam incorporadas aos respectivos ordenamentos jurídicos. Destarte, em vista do direito como elemento da cultura dos povos e da transformação deste com a crise da pós-modernidade, houve uma explosão legislativa em benefício da proteção aos valores e direitos humanos consagrados, a qual, por conseguinte, gerou a ampliação dos conflitos e dúvidas normativas, sob os riscos da desdiferenciação. Não à toa, motivado pelo contexto apontado, Erik Jayme, professor da Universidade de Heidelberg, desenvolveu a tese do Diálogo das Fontes na Alemanha, trazida, mais tarde, ao Brasil por Cláudia Lima Marques, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
É bom mencionar um elemento paradoxal na medida em que o pós-positivismo surge como uma nova teoria concernente à normatividade dos princípios, de forma que a norma passa a ser constituída por princípio e regra, em tese deveria implicar numa redução do arcabouço legislativo, porém tal não ocorreu.
Eduardo Bittar define a pós-modernidade como um estado reflexivo da sociedade ante suas próprias mazelas, apto a motivar um revisionismo completo de seu modus actuandi et faciendi. O que ocorre é um amadurecimento social, político, econômico e cultural, inaugurando antes de um encerramento com a modernidade, uma miscigenação entre passado e presente, com resquícios de antigas aquisições positivas e inovações exigidas diante das transformações geracionais1. É desse modo que se opera uma revisitação das premissas da razão pura, por meio da análise da realidade dos conceitos da dita modernidade2. Entre idas e vindas, com codificações, descodificações e microrrecodificações, surge então a discussão sobre o fenômeno da revogação de normas, que nada mais é que a supressão (perda de validade) da força obrigatória de uma lei, retirando-lhe em última análise sua eficácia. A revogação abrange um termo genérico, que indica a cessação da validade norma como já mencionado. Ela pode se dar por meio de ab-rogação (revogação total), derrogação (revogação parcial), bem como por declaração de inconstitucionalidade; pode ser expressa ou tácita, neste caso por uma incompatibilidade de normas mais recentes com as antigas. No positivismo era fácil entender o fenômeno da revogação na medida em que a supressão de validade era regra até para a manutenção da dita pureza ontológica do sistema. Tanto isso é verdade que resta até hoje consagrado o art. 2 º da LINDB. Com a mudança dos tempos a ruptura e a supressão permanente de uma norma vigente já não parecem mais ser tão indiscutível assim na medida em que uma norma possa incidir sem exatamente suprimir a outra incompatível, por força inclusive de uma força necessária entre as normas.
Ainda em relação aos conflitos intertemporais, segundo o §2º, do artigo 2º da LINDB, a lei nova que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior, nesse sentido o próprio sistema dispõe sobre a possibilidade da coexistência das normas de caráter geral e especial, muito embora não seja a regra no modelo revogador. De fato, a incompatibilidade entre ambas apontaria no sentido de sua revogação. Contudo, pode ser que a norma especial apenas introduza uma exceção ao princípio geral, de modo que ambas coexistam. A lei é uma ordem dirigida à vontade geral, portanto, uma vez em vigor, ela se torna obrigatória para todos (art. 3º LINDB).
Quando duas normas conflitantes incidem sobre um mesmo caso, aplicando soluções incompatíveis, temos as famosas antinomias, simples ou de segundo grau (incompatibilidade entre os critérios de aplicação). Para a resolução de antinomias aparentes, utilizam-se critérios pautados na cronologia, na especialidade e na hierarquia de normas e, caso estes não resolvam o problema, estaremos diante de uma antinomia real, para a qual os artigo 4º e 5º da LINDB preveem o uso de analogias, costumes, bem como dos princípios gerais do direito, em vista dos fins sociais aos quais a norma se dirige à exigência do bem comum. Estes são modos de explicitação da integridade ou plenitude lógica do sistema jurídico positivista. Por fim, importante não esquecer que o sistema de direito intertemporal funda-se no princípio da não repristinação das normas, o que significa que uma norma revogada jamais volta a viger.
Dito isto, vamos ao problema. Com a evolução dos direitos fundamentais em sua primeira, segunda, terceira e, hoje, quarta e quinta gerações, com a garantia não apenas da liberdade, igualdade e fraternidade social, vindas das primeiras gerações, mas também do patrimônio genético com a intimidade biológica e do direito eletrônico no mundo digital ou cibernético, houve a chamada explosão normativa. Nesse contexto, há uma pluralidade de sujeitos a proteger, por vezes difusos. Na realidade extrajudicial notarial e registral, não é diferente a intensificação da valorização dos direitos humanos e das liberdades, bem como a tutela dos valores colocados à disposição da pessoa e sua qualidade de vida. Há uma abundância de gêneros e espécies normativas, dentro de uma pluralidade de sujeitos e de direitos, com um excesso de fatores que influenciam as relações jurídicas, o que incorre na eclosão sucessiva de leis, provimentos, decisões administrativas e jurisprudenciais, além de Consolidações Normativas díspares em cada Estado da Federação.
Temos então um Big Bang legislativo3, que desnorteia o aplicador no que toca à incidência do tipo normativo, a dita fattispecie. A situação é de dúvida constante sobre qual norma jurídica incide no caso concreto. É nessa linha que Erik Jayme aponta como características da cultura pós-moderna o pluralismo, a comunicação, a narração, que chama de les retour des sentiments, enquanto que a valorização dos direitos humanos é o leitmotiv da pós-modernidade. Tudo isso resulta na multiplicidade de fontes a regular um mesmo fato, em meio à codificação e descodificação e à implosão de sistemas normativos genéricos (zerplieterung)4. Os valores e princípios passam a atuar com uma dupla função, trata-se do "double coding", com valores muitas vezes antinômicos. É justamente esse duplo sentido das coisas que se choca com a antiga visão maniqueísta do Direito.
Como exemplo fático, pegamos o regime de separação absoluta de bens introduzido pelo Código Civil de 2002. Na realidade concreta do antigo direito positivado, ele enfoca o regime de separação convencional, o regime de separação obrigatória ou ambos? No caso do regime de separação obrigatória, incidiria ainda a súmula 377do STJ em vista da comunicabilidade dos bens? Destarte, neste contexto, deve o tabelião controlar ou não a outorga uxória em regime de separação de bens obrigatória ou convencional? Sem dúvida, a problemática do direito intertemporal é fator agravante diante da pluralidade normativa.
Para solucionar a expressiva rigidez das regras, no contexto pós-positivista recorre-se aos princípios, hoje positivados na norma. Pelo princípio da juridicidade, o tabelião, como operador do direito, pautado pelas normas no ordenamento, exerce uma atividade tanto técnica quanto jurídica ao instrumentalizar a vontade das partes em uma atividade meio à concreção de negócios jurídicos. Nesse espectro, como deve ele se pautar na confecção de uma escritura pública? Apesar da técnica principiológica que permeia a atuação do operador do direito, deve o tabelião estar jungido à regulação normativa, não obstante a mesma sendo difusa. A proibição não é à toa. A hipertrofia dos princípios também se mostra desdiferenciante, pois possuem uma textura excessivamente aberta criando espaços para decisões com fundamentação moral, o que gera grandes problemas em uma sociedade na qual as perspectivas de observação do direito mais é a mais variável possíveil, com enquadramentos diverso, levando à fragilidade ou subcomplexidade da teoria dos princípios desenvolvidas por autores como Dworkin e Alexy. É por isso que hoje os princípios são utilizados mais diretamente para o balizamento e para a construção de regras5.
Enquanto os princípios, como diria Marcelo Neves, são normas de normas, que abrem a cadeia argumentativa substantiva aos diálogos interdisciplinares – o que acaba deixando a relação entre antecedente e consequente normativo extremamente maleável e flexível –, as regras orientam-se por argumentos formais que fecham a cadeia normativa, apesar do modelo excessivamente formalista que tende à inflexibilidade6.
Os problemas da rigidez de um ordenamento com base exclusivamente em regras gravitam em torno da presença de inconsistências normativas, de lacunas em sentido estrito e da indeterminação semântica em função de vaguezas e penumbras (lacunas semânticas). A lacuna ocorre quando não há qualquer norma regulamentando certo comportamento, ou quando a norma que existe não está em consonância com o próprio ordenamento (lacuna axiológica), gerando o vazio incômodo no sistema.
Vejamos, por exemplo, o antigo instituto da Constituição de Renda sobre imóveis, de origem romanística, frequentemente utilizado no passado para a prevenção da usura. As rendas constituídas sobre imóveis eram regulamentadas pelo Código de Beviláqua em seus artigos 749 a 754 e constituíam direito de natureza real, portanto erga omnes, que gravava determinado bem em raiz, obrigando seu proprietário a pagar prestações periódicas. O instituto fora amplamente utilizado para a aplicação de capitais, em vista da frutificação do capital imobiliário, sem o risco de ser condenado como negócio usurário. Nele, o censuário ou rendeiro recebia o capital com o encargo de pagar certa renda, logo, era tanto o devedor da renda como o adquirente do capital; já o censuísta ou instituidor era o responsável pela entrega do capital, além de constituidor de renda em benefício próprio ou alheio, portanto o credor da renda. Hoje, contudo, com a estabilização econômica do país e a evolução jurídica ele caiu em desuso em benefício de institutos mais eficientes, de menor complexidade e com resultados equiparáveis. Nesse contexto, o atual Código acabou por não contemplá-lo no rol dos direitos reais do artigo 1.225, embora antigamente presente no artigo 674 do Código de 1916, em meio aos direitos reais.
Hoje, o Código atual aborda o instituto da Constituição de Renda que pode ser sobre móveis ou imóveis, em seus artigos 803 a 813, isto é, no rol dos direitos contratuais, portando em uma relação específica entre privados, não mais erga omnes. Contudo, aqui insurge a problemática, na medida em que a antiga Constituição de Renda sobre imóveis ainda consta no rol de títulos registráveis do artigo 167 da Lei dos Registros Públicos. Daí a discussão: cabe registro? Os civilistas dirão que não, uma vez que não está presente no rol dos direitos reais do código. Os registradores, por sua vez, dirão que, uma vez presente no artigo 167 da lei vigente, o instituto ainda está em vigor, portanto entre os títulos registráveis. De fato, o que ocorre aqui é uma antinomia de segundo grau, ou seja, uma incompatibilidade da norma geral posterior com a norma especial anterior. À maneira do legislador racional, a deliberação civilista não é exaustiva ou exauriente, contudo as alternativas não são uniformes. Temos então um incômodo universal gerado pela exigência de uniformidade no ordenamento no que diz respeito à escolha do legislador racional. Para a averiguação do critério sintático caberia então avaliar todas as combinações possíveis de propriedades relevantes a serem consideradas. No entanto, o que notamos de fato é o double sense, em que duas normas incidem sobre um único contexto, gerando ao mesmo tempo uma antinomia quanto à registrabilidade do título. Diante da famosa tese da completude necessária do ordenamento, Kelsen diria: não pode haver incompletude! Mas, e agora, José? Caso o usuário se apresente com um título de Constituição de Renda sobre Imóveis a registro, qual a atitude deve ser adotada pelo oficial de imóveis operador do direito?
A base da teoria do Diálogo das Fontes de Erik Jayme é de que as normas jurídicas não se excluem apenas porque supostamente pertencem a ramos jurídicos distintos, elas, na verdade, se completariam, integrando o sistema misto e interagindo entre si. Neste caso, do ponto de vista legal, a comunicação se dá entre o Código Civil e a LRP, como dito, especificamente entre o rol do artigo 167 da LRP e o art. 1.225 Código Civil, em vista da transmutação da Renda Constituída sobre Imóveis do lócus dos direitos reais aos contratos privados em espécie. Repise-se que, os títulos registráveis previstos na legislação civilista não obedecem a um rol taxativo exauriente, sendo apto a registros outros títulos não previstos. Assim, a solução para a aproximação entre o Código Civil e a LRP é principiológica, com a superação da interpretação insular do Direito, em benefício da funcionalidade do sistema.
Com a multiplicação entrópica da pluralidade de normas, o diálogo das fontes direciona o operador em meio à tempestade normativa, em vista da necessidade de coordenação das leis dentro de um mesmo ordenamento jurídico. A monossolução é anacrônica. Requer-se a efetividade dentro de paradigmas éticos para solução de hipertrofias, pois em um sistema plural e hipercomplexo é vital que as soluções também sejam fluídas e flexíveis, com enfoques diferentes a situações diferentes, com mobilidade e fina distinção casuística7. Nesse contexto, a ruptura e quebra de determinados paradigmas em detrimento de outros é substituída pela convivência entre os mesmos, consubstanciado no princípio da tolerância.
Por fim, o diálogo entre as normas ocorre diante de influências recíprocas, com a aplicação concomitante de normas em um sistema misto, seja de forma complementar ou subsidiária. Logo, temos uma solução flexível e aberta, com a interpenetração e a busca pela norma mais favorável ou vulnerável, sempre tendo por suporte máximo a eticidade.. Voltando ao nosso exemplo, é perfeitamente possível o registro do título de constituição de renda sobre imóvel sem prejudicar a coerência do sistema. Nessa linha, para que ocorra o diálogo, são possíveis três situações: (i) a aplicação simultânea de duas leis, sendo que uma é a base conceitual para a outra; (ii) a aplicação coordenada de duas leis quando uma norma completa a outra, de modo que pode ser direta no diálogo de complementariedade ou indireta no diálogo de subsidiariedade; e, por fim, (iii) o diálogo de influências recíprocas sistemáticas, em vista de conceitos estruturais interligados8. A constituição de renda sobre imóveis incidiria no item ii, em função da coordenação, complementariedade e até subsidiariedade existente entre o Código Civil e a LRP.
O diálogo das fontes surge para substituir e superar os critérios clássicos das antinomias jurídicas. A comunicação normativa é perfeitamente harmonizável junto ao direito notarial e registral repleto de provimentos, decisões administrativas e jurisprudenciais, consolidações normativas, leis, codificações e princípios jurídicos a serviço do operador e do usuário das serventias. Conclui-se, dessa forma, que, ao adotar a ideia do diálogo, temos exatamente uma facilitação da operacionalização do sistema, pois, como no caso apontado, embora a renda constituída sobre imóvel não incida para o direito material como um direito real, é um título perfeitamente apresentável a registro. Cabe apenas ao tabelião a orientação ao usuário, prudencialmente, diante do instituto que melhor instrumentalizaria a vontade das partes para a concreção de atos perfeitos e seguros. Contudo, a escolha é do usuário, em vista da tolerância do ordenamento e da possibilidade de se aplicar uma norma em um caso e norma diversa em outro, em benefício da funcionalidade sistêmica. Nessa alinha de raciocínio, é bom concluir que em última análise o Big Bang legislativo está aí e compete em primeiro lugar ás Corregedorias da Justiça dos Estados sorver boa parte dos problemas notariais e registrais, bem como ao CNJ com seu poder normativo, porém em última análise cabe ao operador do direito sob o paradigma ético garantir efetividade ao usuário e cidadão.
Referências Bibliográficas :
Cláudia Lima Marques; Antonio Herman Benjamin; Leonardo Roscoe Bessa. Manual do Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed, 2010, p. 91
Daniel Amorim Assumpção Neves; Flávio Tartuce. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Método. 3ª ed. 2014. P. 3-22
Eduardo Bianca Bittar. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2005. P.97-100
Marcelo Neves. Entre Hidra e Hércules – Princípios e Regras Constitucionais. São Paulo: Martins Fontes. 2013
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1Eduardo Bianca Bittar. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2005. P.97-100
2Daniel Amorim Assumpção Neves; Flávio Tartuce. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Método. 3ª ed. 2014. P. 3-22
3Expressão simbolizada pelo jurista argentino Ricardo Lorenzetti em sua obra Teoria da Decisão Judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2ª ed. 2014.
4Daniel Amorim Assumpção Neves; Flávio Tartuce. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Método. 3ª ed. 2014. P. 3-22
5Marcelo Neves. Entre Hidra e Hércules – Princípios e Regras Constitucionais. São Paulo: Martins Fontes. 2013
6Marcelo Neves. Entre Hidra e Hércules – Princípios e Regras Constitucionais. São Paulo: Martins Fontes. 2013
7Cláudia Lima Marques; Antonio Herman Benjamin; Leonardo Roscoe Bessa. Manual do Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed, 2010, p. 91
8Daniel Amorim Assumpção Neves; Flávio Tartuce. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Método. 3ª ed. 2014. P. 3-22
*Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito pela USP e coordenador da pós-graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário na EPD - Escola Paulista de Direito.