Desde o direito romano, tem-se que a prescrição é um instituto que regula a perda do direito de acionar judicialmente, devido ao decurso do tempo, desde a contração da dívida. Há no direito, inclusive, a diferenciação entre prescrição e decadência, visando ao esclarecimento sobre tais institutos a fim de que não entrem em conflito. Enquanto um interrompe a possibilidade de se exigir judicialmente um direito, o outro, a decadência, extingue o próprio direito em si. É como se a prescrição tivesse um período de limitação para o seu ajuizamento da sua ação de cobrança ou execução.
Quando se estuda prescrição nos cursos de direito, os professores sempre ensinaram que a prescrição era a perda do direito do credor de perseguir judicialmente o seu crédito. Ocorre, contudo, que essa sempre foi uma interpretação estendida do que diz a lei no artigo 189 do Código Civil.
Isso porque o instituto da prescrição está previsto em nosso ordenamento jurídico, no Código Civil, que afirma que “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue pela prescrição nos prazos a que aludem os artigos 205 e 206”.[i] Os artigos 205 e 206 não trazem nenhuma definição complementar, tão somente os prazos que cada tipo de título tinha para ser cobrado. Os prazos prescricionais variam de acordo com o título, que pode ser de um até dez anos.
No sentido literal da palavra, a pretensão é o direito que se julga ter de alguma coisa. Logo, se a gente analisar apenas pela ótica do sentido literal da palavra, em momento algum se diz que a pretensão é o direito de exigir judicialmente. Isto porque o fato de a dívida estar prescrita não quer dizer que ela não exista, mas garante ao credor o direito de ajuizar ou não uma ação judicial daquele crédito.
Cabe a ele escolher a melhor forma de perseguir o seu crédito, pois não basta apenas o ato de “ajuizar a ação”. Existe toda uma cadeia a se desenvolver até a chegada da satisfação do crédito. Ou seja, exige-se o pagamento de custas ao judiciário, avaliação de risco, além do visível abarrotamento do judiciário com inúmeras demandas de execuções em curso que, na realidade, o judiciário brasileiro não está preparado para suportar. Isso sem pensar no tempo de espera do andamento da dita ação de execução, que, apenas para citar o devedor, anos se passam e lamentavelmente o credor pode ter o seu direito fulminado pela prescrição!
Ocorre, todavia, que as normas não devem ser analisadas apenas pelo sentido literal. Muito pelo contrário. Cada vez mais, o que se vê é a necessidade de se analisar as normas de acordo com a necessidade e o momento histórico de transformação da sociedade.
Feita essa reflexão inicial, é preciso trazer ao leitor, ainda, uma informação relevante. No Brasil, existem inúmeras ações de execução frustradas. Ou seja, ações que buscam receber um valor que se tem direito, todavia, o devedor se furta de sua obrigação de pagar.
Ainda é preciso esclarecer que existem diversos princípios norteadores do direito, e muitos deles, pasmem, visam à proteção justamente do devedor. Ou seja, o que se conclui é que, para muitos, a dívida compensa. E mais que isso, há aqueles que se apegam à ideia de que “depois de cinco anos fica livre da dívida” e com isso, se torna um devedor despreocupado que vive num ciclo vicioso de adquirir dívidas que após cinco anos serão “perdoadas”. Com isso, é muito fácil ser devedor no Brasil. Existe uma proteção a esse tipo de comportamento reiterado e que agora é chancelado pelo judiciário.
Muitos credores, irresignados com essa situação, ainda que não pudessem mais contar com a ajuda da justiça, em razão da prescrição de seus créditos, seguiam em uma incessante tentativa de receber os valores extrajudicialmente. Assim, contratavam empresas ou determinavam que seus departamentos de cobranças fizessem contatos por telefone ou e-mail para tentar reaver seus valores e diminuir seus prejuízos. E neste caso, entramos novamente na pauta anterior: o devedor não tem medo de ser cobrado, não faz o mínimo esforço para pagar o que deve, pois ele se agarra na expectativa futura do “perdão” da sua dívida em cinco anos e esperam tranquilamente esse tempo passar a fim de adquirir novas dívidas.
Acreditem, ou não, muitos devedores, que até então não eram encontrados para pagarem suas dívidas, procuravam a justiça por se sentirem lesados pela cobrança extrajudicial. Alegavam que a dívida já tinha “caducado”, como se diz no jargão popular, e que a cobrança feria a sua moral. Ocorre que, até então, esse era um tema pacificado. Afinal, beira as raias da má fé a pessoa não pagar o que deve e, ainda assim, pedir indenização por ter sua moral abalada com a cobrança dessa dívida.
Todavia, no começo deste ano, em 27 de junho, a corte paulistana, que é de grande relevância, proferiu uma decisão dizendo que não se podia cobrar uma dívida, ainda que extrajudicialmente, pois ela estava prescrita. Acreditou-se que essa era uma decisão isolada. Infelizmente, não era.
Tempos depois, a mesma corte proferiu outra decisão nesse sentido, mas o pior ainda estava por vir.
Na data de 17 de outubro de 2023, o tema finalmente bateu às portas do Superior Tribunal de Justiça, que, pela primeira vez, discutiu se a prescrição impediria ou não a cobrança extrajudicial.
Para a relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, quando o credor busca o recebimento dos valores pela cobrança extrajudicial, ele ainda está exercendo sua pretensão. Desse modo, para a ministra, quando ocorre a prescrição, finda a pretensão do credor, que não poderá mais ter a pretensão de receber, seja judicialmente ou extrajudicialmente.
Assim disse a Ministra:
“Se a pretensão é o poder de exigir o cumprimento da prestação, uma vez paralisada em razão da prescrição, não será mais possível exigir o referido comportamento do devedor. Ou seja, não será mais possível cobrar a dívida.[ii]“
Com esse julgamento do STJ, acredita-se que haverá uma avalanche de decisões que irão, agora, acompanhar o entendimento da Corte Superior. Porém, cabe a nós batalharmos para manter o entendimento majoritário e mudar o que pensa essa Corte.
Ora, não se pode ter um sistema que protege apenas um polo das ações, tampouco um sistema judiciário que, com todo acatamento devido, acaba por incentivar a inadimplência.
Recentemente, tivemos a edição da Lei 14.181/2021, que é conhecida como a Lei do Superendividamento que, novamente, protege o descontrole financeiro e incentiva a prática de dívidas sob o argumento posterior de repactuação da dívida por afetar o mínimo existencial do devedor.
Ao nosso ver, não é assim que se resolve o problema, protegendo o devedor, por ser em regra o polo mais fraco da ação. Contudo, novamente, tivemos uma inversão de valores, pois a Lei do Superendividamento transferia a responsabilidade da educação financeira para o fornecedor. Será que passar a mão na cabeça é a solução?
Será que, ao invés de se editar leis, editassem cursos, palestras gratuitas e acessíveis a todos, de educação financeira, não seria melhor? Educar, desde à época da alfabetização, inclusive, como já acontece ao redor do mundo? Com certeza esse é o caminho.
Iniciativas de educação financeira desde a infância podem preparar os jovens brasileiros desde cedo a ter responsabilidade com as suas finanças, pois a causa do alto índice de endividamento no Brasil é apenas um reflexo da deficiência desses adultos quando jovens pela falta de informação, aprendizado e planejamento financeiro. A educação financeira é transformadora, e aprender a lidar com dinheiro desde cedo tende a trazer grandes benefícios para uma vida adulta.
Por fim, como devem as empresas agir a partir de agora, com essa mudança de entendimento da Corte Superior? O que se aconselha é que, nesse momento, se tenha muito cuidado na realização das cobranças extrajudiciais. Se torna ainda mais necessário que a empresa esteja assessorada por um corpo jurídico especializado para evitar ser surpreendida com um pedido de indenização moral de um devedor, que além de já ter lhe dado prejuízo no passado, agora, visa um prejuízo futuro.
Não se recomenda que apenas cessem as cobranças extrajudiciais, mas novamente se faz necessário que essa cobrança seja feita por advogados negociadores, que saibam como tocar a conversa e evitar que o devedor sinta a necessidade de procurar pela justiça.
Serão tempos tortuosos e temerosos para as empresas, mas o tempo tem o poder de acalmar e mudar os rumos, como fomos surpreendidos nesta oportunidade.
Arina Vale: é advogada e atua nas áreas de Contencioso e Recuperação de Créditos do escritório Albuquerque Melo Advogados.
Renata Martins Belmonte: é líder de equipe do escritório Albuquerque Melo nas áreas de Recuperação de Crédito e Direito Aeronáutico, generalista em Direito Civil e Processo Civil e especialista em recuperação de créditos e Direito do Consumidor.
Fonte: ConJur